ALÉM DA FILOSOFIA

Crônicas

João Neto Félix Mendes

“Vamos salvar as serras da beira do rio a Santana.
Serra do Mar, Serra da Remetedeira pra cantar eu sou madeira,
Cheguei da Serra do Poço, é um colosso.
Serra dos Dois Irmãos, Brejo, Brejão eu tô na Serra da Capela.
O catuaba tá doente da goela ficou de sentinela, se ele morrer vai pro céu.
Fiz um chapéu feito da palha do milho, Serra da Beira do Rio, Serra de Montevidéu.”

Nesse canto de domínio público atesta-se a beleza das serras no cantar de sua gente. Santana é arrodeada de serras. Paisagem estonteante. Elevar-se é preciso. Conheci-as todas. Ora sozinho, ora acompanhado. Compus minha única música instrumental ao violão inebriado desse mote “Canção às Serras”. Nessa melodia não há palavras. Apenas emoções díspares que a alma sente elevando-se ao cume das Serras Santanenses; Remetedeira, Pelado, Cruzeiro, Camonga e a Serra do Poço.
Na canção, assim como na vida real, o espírito contempla o mistério de sentimentos opostos; alegria e tristeza. Que seria um sem o outro? Os diversos aspectos se entrelaçam e se complementam. De modo que as coisas não devem ser compreendidas isoladamente. Tudo ter a ver com tudo. A interpenetração de contrários explicada dialeticamente pela filosofia é vivenciada simplesmente pela forma de viver do povo que ali habita sem necessidade de teorias complexas, apenas se vivendo o momento propício que a natureza reza.
De todas elas uma de destaca: Serra do Poço. Cadeia de montanhas grandiosa e bela. A maior de toda a região. De um lado da Serra, Poço das Trincheiras; do outro, Santana do Ipanema. No inverno, ao alvorecer, um manto prateado de neblina toca-lhe o chão em reverência. As noites são iluminadas por pontos de luz. Faróis na cerração dos grandes medos. Embevecimento aos olhos! De Santana, assistimos a esse capricho natural. Quem ali vive não quer sair. Pra quê? Tem tudo! Água em abundância, terras férteis, árvores frutíferas, flores, muitas flores e paz.
No terreiro da casa de Seu Léo e Dona Isabel um canteiro de cravos brancos que se espevita ao brilho dos primeiros raios de sol exalando inigualável aroma que remete ao êxtase! Vida em efervescência. Lá moram pessoas especiais das quais não esqueço! Compadres Biu e Doca e Seu Pedro, de quem agora peço permissão espiritual para falar. Assim como tudo na vida tem seu preço, lá não foge à regra. Sujeito doente precisando de urgência em atendimento tem que esperar. E se for inverno? Pior ainda. Estradas escorregadias e intransitáveis. Descida somente permitida se for carregado na rede por outras pessoas. Mas se salva! A natureza é generosa. Os que morrem não tinham jeito mesmo!
Mas no verão! Ah! No verão, a brisa suave toca-nos o rosto suavemente chamando para o tempo de viver. No fim da tarde, sentar na varanda, em qualquer direção, numa boa prosa, tomando um cafezinho, não tem explicação. Olhar o horizonte vendo o dia se entregar à noite vagarosamente. Aguardar o momento de ver todas as luzes da cidade de Santana se acenderem de uma só vez. É bonito demais! E a lua quando desponta no horizonte? Sorrateira, a lua chega divinamente nua, amansando a noite e os homens dos corações de pedra.
Tive o privilégio de trabalhar do Banco do Brasil de Poço das Trincheiras na companhia de tantos companheiros especiais. Minha reverência àquela gente. Do lado de lá, o panorama da Serra do Poço tem outra nuance. Imponência, ousadia e proximidade. Do lado de cá, nostalgia, contemplação e mistério. A vantagem de estar no alto do morro é que a vida, assim como a natureza, poder ser vista de muitos ângulos, sob inúmeras perspectivas. O Rio Ipanema compõe a paisagem, adicionando-lhe beleza incomensurável. Corre ao seu lado bravamente alardeando presença ao tocar imensidão de pedregulhos, contornando-os.
Naquele tempo comunicação era meio dificultosa. Recado pra quem morava na serra somente era possível boca a boca. Ou, então, anúncio nos programas da rádio transmissora Correio do Sertão de Santana e esperar no mínimo quinze dias. Havia região que nem mesmo o disposto fiscal Raimundo Aquino ousava arriscar-se no seu fusquinha turbinado. Ainda não havia chegado a facilidade da telefonia celular.
Precisando nos comunicar com o Seu Pedro para resolver problema pessoal bancário, mandamos-lhe recado por vizinhos próximos para comparecer ao banco. Além disso, também divulgamos chamamento através da rádio Correio do Sertão. Certo dia, chegou um cidadão franzino. Andar manso, chapéu à cabeça. Mãos calejadas pelo trabalho pesado da roça. Seu rosto envelhecido tinha tantas marcas que mais parecia um mapa cartográfico de tantas linhas que tinha. Por acaso, cheguei a conversar com ele naquele dia.
Perguntei-lhe onde morava.
-Ele me respondeu que era na Serra do Poço, na região de mais difícil acesso.
Interroguei-o, no intuito de conhecer mais sobre a Serra do Poço, dizendo-lhe que morava em Santana do Ipanema, indagando-lhe se conhecia a cidade.
Ele me respondeu prontamente:
- Meu filho, ouvi falar de Santana. Mas lá nunca fui. Moro há trinta e cinco anos na Serra do Poço, mas ainda não andei por lá. Estou bem na serra fazendo aquilo que sei fazer melhor do que Deus me deu: trabalhar na roça e viver do fruto do meu trabalho.
Fiquei abismado, sem entender como Seu Pedro há trinta e cinco anos morando na Serra do Poço nunca havia ido a Santana. Essa conversa ficou guardada na prateleira dos mistérios. Anos mais tarde, comecei a entender as razões dos seus argumentos. A plenitude e contentamento de se viver intensamente a vida com os dons que Deus havia lhe presenteado. A venda dos meus olhos foi se descerrando aos poucos e ainda continua, afinal tem coisas que se precisa de tempo para entender.
João Neto Felix Mendes/Primavera2011

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