Meu pai havia dito, aquele ia ser um São João diferente. Não tínhamos ideia do quão seria. Acordar-me-ia com alarido vindo da cozinha, um frango, estaria a dar trabalho a sinha Tonha pra ir à panela. A preta velha que a muito morava em casa, cedo engendrava-se no comércio de quitutes e pratos especialmente preparados praquela ocasião. Adocicado cheiro de milho verde, tirado da palha – se espalhara no ar – a aguçar narinas. Indo fazer com que corpo e mente desse de avisar alma, o que dantes esperado chegara, os festejos joaninos.
Olha pro céu meu amor
Veja como ele está lindo
Olha pra aquele balão multicor
Que lá no céu vai subindo...
O largo do Monumento amanhecera colorido. As professoras, do Grupo Escolar Padre Francisco Correia, com a ajuda dos meninos, enchera a praça de alegre colorido, das pontiagudas bandeirolas de papel crepon. Balões belamente estampados, lembrando lamparinas de filme chinês, pendidas num cordel. As hastes das luminárias ganharam vistosas palhas de coqueiro. Carroças puxadas à mula se anunciavam no tilintar das campainhas. Rua a fora, iam vendendo madeira pra fazer fogueira. Seu Benedito, fiscal da prefeitura, de porta em porta, cobrava dos compradores de lenha que colocassem uma camada de areia sob o fecho, pra não queimar o paralelepípedo. Não sendo tomada tal providencia a rua depois ficava feia, com uma mancha preta que nunca mais saía. Toscas barraquinhas cobertas de farrapos ao largo São Francisco. Fervilhadas de meninos pra comprar fogos de artifícios. Afastadas do casario, precavidas dum acidente. Exposto aos olhos ávidos da molecada, feito verdadeiras guloseimas: traques, beijos-de-moça, chumbinhos, chuvinhas, diabinhos, rojões e foguetes. Perto dali, só os casebres de Luzia e de Zuza fogueteiro. Vez outra, um estouro duma bomba de cordão, punha mais alvoroço na meninada.
O Balão vai subindo
Vem caindo a garoa
O céu é tão lindo
E a noite é tão boa
São João São João
Acende a fogueira
Do meu coração
A noite viria se esticando por cima do mundo. Com ela o ribombar de foguetões, quebrando incólume a sinfonia silenciosa do firmamento. Fumaça liberta das fogueiras, pondo a lacrimejar os tristes olhos da morena. A invadir casas, a enxotar os mosquitos debaixo das camas. Num bailado doido, ia o negro fumo ganhando o ar, se elevando mais e mais, indo se ajuntar as nuvens rajadas de clarão, no céu do meu sertão. “Logo mais, teremos, apresentação da quadrilha do Ginásio Santana formada por estudantes e professores!” anunciava o locutor ao serviço de som de Seu Leô cego, especialmente instalado praquele evento. Acre doce cheiro de resina queimada da madeira tornando ainda mais sertanejo o anoitecer. O diretor do educandario, Doutor João Yoyô Filho, chegava e logo assumia o microfone, em sua retórica elevada, dava uma aula sobre a tradicional dança folclórica. Diria que originalmente chamava-se quadrinha, e que havia chegado ao Brasil, trazida pela corte portuguesa, os negros africanos fizeram o arremedo da dança clássica, e acabaria chegando aos nossos dias conhecida como quadrilha. Dançada especialmente nas festas de casamento, para tanto, os citadinos a introduziria aos festejos juninos, por ser a comemoração da colheita do nosso cereal rei, o milho. Deu ele mesmo início as apresentações.
Que noite tão colorida
É a noite de São João
No terreiro tem fogueira
No céu estrela e balão...
Depois das apresentações iam todos pra porta lá de casa, os meninos e meninas ganhavam refrigerantes e pão com fiambre e queijo. O trio de sanfoneiro, zabumbeiro e tocador de triângulo, de cedo, já havia se iniciado a beber aguardente. Dali por diante teriam a escolher entre quentão, licor, e vinho de jurubeba. A cada hora de sanfona, um intervalo era anunciado, no próprio instrumento o desavergonhado refrão: “o tocador quer beber!” Pra tira-gosto carne de bode assada, guisado de galinha de capoeira, peru e guiné, ovo de codorna, torresmo, tripa e carne de porco. Dava pra se ouvir o burburinho por cima das casas, vindo lá da Rua de São Pedro, o pipocar dos fogos e o clarão do fogaréu. Seu Carlito organizava diversos folguedos na comunidade, pau de sebo, corrida atrás do bacurinho. E o tradicional quebra pote. Se acaso um dos fogos falhava, os meninos desmanchavam o artifício, e com um tição de lenha tacava fogo no trilho de pólvora. A isso apelidavam de bufa de véia. Mamãe falava pra gente evitar se expor ao cheiro de pólvora queimada. Pois provocava “barriga inchada” o que nos causava flatulências mal cheirosas.
A fogueira está queimando
Em homenagem a São João
O forró já começou
Vamos gente arrasta o pé neste salão...
A garota passava a noite de São João, soltando fogos, brincando em torno da fogueira, tomando refrigerante, comendo milho, assado na fogueira, milho cozido tirado na panela ainda no fogo. Pamonha deliciosamente enrolada na palha de milho verde, e canjica que num lugar distante chamavam de polenta. Pipoca boiava no tacho, essa a gente comia o ano inteiro. Os meninos pediam as mães pra coser uns remendos nos fundilhos da calça. Pintavam um bigode a lápis. As moças em lindos vestidos cheios de babados faziam franjas e tranças no cabelo. Providenciavam uma bacia dágua pra fazer adivinhação. Davam-se as mãos e saltavam a fogueira firmando compromisso: “São Pedro disse! Santo Antonio confirmou! Vamos ser comadres que São João mandou!” Mamãe dizia pra gente não se aproximar muito do fogo se não iríamos acabar urinando na cama. E pra ter certeza que íamos obedecer, ameaçava dizer quem mijou na cama no ano que passou. Ninguém queira ser motivo de chacota pro resto do ano, obedecíamos. Só enquanto mamãe estivesse a vista.
Aí que saudade que eu tenho
Das noites de São João
Das noites tão brasileiras da fogueira
Sob o luar do sertão
Meninos brincados de roda...
A promessa de meu pai, de um São João diferente, foi muito antes de tudo isso. Nem eu, nem meus irmãos tínhamos ainda nascido. Recém-casados, moravam na Camoxinga por trás da Usina de Beneficiar Algodão. Enquanto os vizinhos faziam preparativos pra noite festiva do santinho batista, o jovem casal botou roupas de festa. Fechou as portas e foram passar a noite de São João na roça. De canoa atravessaram o rio Ipanema. Na boléia dum caminhão chegaram até a estrada que dava acesso ao sítio Gavião. Caminhariam cerca de uma hora a pé. De tardezinha chegariam à casa de comadre Maria e compadre Antonio, padrinhos de casamento. À noite, os quatro, ao pé da fogueira. Sacudiam conversa as estrelas, que lhes devolviam sorrindo. Também eles sorriam. Sorrisos molhados de quentão. E sonhavam, e como sonhavam.
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