Colaboração: Goretti Brandão
Saí de casa para ir ao evento que homenageia Elinaldo Barros ao mesmo tempo em que lança a segunda edição (tardia, diga-se) de seu inestimável livro, Panorama do Cinema Alagoano (1983), o apanhado de tudo o que foi feito pela cinematografia local, agora acrescido de novas informações sobre filmes e cineastas que surgiram depois do ano de lançamento da obra. A surpresa e o deslumbramento a respeito de Elinaldo se dá principalmente a partir da mitologia de sua imagem solitária, de crítico e homem de cinema, aquela imagem que já conhecemos há tanto tempo da TV e, no meu caso, da sala de aula e das diversas e agradáveis conversas fora dela. O mito nos atrai a todos: no Cine SESI Pajuçara, local do evento, encontro pessoas as mais variadas, de antigos professores a amigos de turma da faculdade de jornalismo; de pessoas que conheço de vista, habitués destes eventos “de cinema” de Maceió, aos colegas do Filmologia – cara surpresa agradável – Nuno e Bruno Rafael.
Mas a questão primordial, para além do lançamento do livro, era a da possibilidade de, finalmente, assistir a um documentário sobre uma figura conhecida que, de certa forma, tento entender e ler sempre bem: Elinaldo no filme de Pedro da Rocha, O Catador de Fotogramas, um filme que chega, novamente, a isto, a uma outra imagem de uma só dimensão. Sobreviveria Elinaldo fora da imagem que todos estes anos de TV criaram para ele? O filme de Pedro da Rocha avança no sentido de construção de uma imagem particular, mas, ainda assim, sugestiva de que o que veremos nos próximos vinte minutos é o rito de uma passagem do mito para outro mito, talvez tão prejudicial quanto o anterior porque ao mesmo tempo que se aproxima para ultrapassar a imagem televisiva, constrói aquela do homem apaixonado, diametralmente, por tudo aquilo que me parece um pouco chapado demais – a noção de um cinema simplório e maior, verdadeiramente salvador, mas talvez mostrado corriqueiramente demais em O Catador de Fotogramas e pela sua forma usual de crer na emoção fácil (e de fato o filme tem seus momentos, sobretudo quando o próprio Elinaldo discursa, pois ele parece saber de sua própria imagem e do segredo de seu amor mais do que ninguém). O discurso de Elinaldo acaba um tanto diluído, porque quase toda palavra dos que lhe falam é um pouco como um mau encaixe perfeito (todos dizem o mesmo, é tudo uma ode) à sua grande figura que, aqui, recebe, afinal, as mesmas palavras que necessariamente precisam salvá-lo – e, a meu ver, Elinaldo não precisa disso; me parece que Elinaldo precisa apenas que todos vejam os bons filmes que ele exibe, esta é sua forma de salvação da vida. Não é esta sua luta na Sessão de Arte do Iguatemi, todo sábado de manhã?
É que o que vemos é o velho processo da homenagem, do esforço tardio do olhar merecido e da tomada de posição que já nos é esperada, a de “Elinaldo, o grande homem” (de cinema, apenas? Claro que não) – que, por sinal, já conhecemos há muito, já que ele é puro amor e, como vimos com beleza após a exibição do documentário, é acima de tudo humano demais. Encontramos o desejo de um resgate, quando na verdade a dimensão humana é toda construída pelas velhas falas conhecidas, que decerto não mentem, mas que, também decerto, vêm a reforçar que a legitimação só pode existir se, antes de qualquer coisa, o que se fala seja dito por quem tem, também, um nome legitimado. Algumas falas nos tocam de fato (a de Socorrinho Lamenha sobre o amor intenso de Elinaldo pelo cinema; a de alguns velhos amigos que parecem conhecê-lo e situá-lo humanamente antes de qualquer imagem fabricada); outras, sublimam um processo curioso da homenagem burocrática “de bom coração” e de cumprimento automático de um dever (Douglas Aprato legitima a imagem de Elinaldo ao mesmo tempo em que, no curso de jornalismo do CESMAC, após a aposentadoria do nosso professor, a disciplina de cinema “sai de cartaz” para se fundir à outras e perder sua importante individualidade e aprofundamento e para não prosseguir com esse legado precioso que ele nos deixou).
Entretanto, o mais belo momento acontece quando a verdadeira figura de Elinaldo aparece frente à tela de cinema, após a exibição do filme, emocionado, acompanhado de amigos e familiares, com e por puro mérito aplaudido de pé, e vemos que todo o uso por parte de Pedro da Rocha demasiadamente prático do cinema como objeto afetivo (alguns encontram isso como uma afetação em A Noite Americana, de Truffaut, filme que aliás é usado para fazer um paralelo do menino que rouba stills de Cidadão Kane com o nosso Elinaldo, “catador de fotogramas” que, de fato, é um apreciador e divulgador destes) é algo como um porto seguro um tanto simplista e que revela um pouco de falta de coragem e ousadia ao filmar este homem e as imagens que podem surgir a partir dele (da comédia, da alegria, das galhofas e não só da luta e da paixão). Afinal, o que é mais fácil do que construir uma imagem que já está construída desde Cinema Paradiso, aquela a do cinéfilo-amante inveterado, algo doentio, que vê a vida através do cinema e que a enxerga, sobretudo e talvez, como um bom filme ruim?
Encontramos então o que se pode chamar de amor, para além da paixão segura e controlada pela noção de emoção e homenagem tradicional filmada por Pedro da Rocha, que provavelmente pode ter a ver com tempo talvez reduzido de produção do filme e, mais ainda, de duração que suprime uma vida somente ao tempo da perseverança e da obsessão pelo registro da superfície e dos resultados imediatos ao seu toque. E o amor, todos sabemos, é bem mais duradouro, verdadeiro e, mais importante, abrangente – isto porque até numa homenagem há aqueles que devem, como que obrigatoriamente, falar sobre o homenageado; os que podem fugir à normalidade do discurso, ou não têm nome que os legitime e legalize ou as suas palavras simplesmente não importam. Elinaldo, o meu amigo, certamente aprovou o filme, daquela mesma forma sua, afetiva, que jamais envelhece e que O Catador de Fotogramas, num de seus depoimentos, diz muito bem que nosso crítico acolhia filmes bons ou ruins, buscando apenas dar-lhes um verdadeiro e merecido destaque pelo esforço que foi desprendido ao fazê-lo. É assim que, aprendendo esta solidária lição, o filme de Pedro da Rocha merece grande destaque aqui e em qualquer outro site, pois versa, se bem ou mal, sobre um grande homem que, afinal, ainda não foi descoberto nem pela TV nem pelo cinema, porque só conhecemos, assim como em Cristo, a sua Paixão. Não tivemos ainda a chance de conhecer seu quebra-cabeça particular de felicidades e tristezas, o que é muitas vezes aquilo que constrói o homem e a homenagem. Que se façam mais filmes, então. Elinaldo merece todos eles.
Ranieri Brandão
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