Nas manhãs preguiçosas de domingo, o ensaio do reizado de Seu Miranda, enche de uma zoada alegre o cortiço da Lagoa do Junco. A voz estridente das meninas no ritmo cadenciado do baticum da zabumba. De lá longe, no Lago do Bode, dava pra ouvir:
Ô de casa Ô de fora
Ô de casa Ô de fora
Seu Miranda vem dançar...
O espelho d’água do Lago do Bode cenário magnífico. Nuvens alvíssimas! Bailam num céu azul anil. Cisnes bailando, ora na água, ora no ar. A colina da Camonga ao fundo, assemelha-se a um ciclope gigante emergido da relva. Seu único olho de pedra no meio da testa. A montanha testemunha calada, os atos das criaturas daqueles arredores, entregues a tarefa de viver. Abraão o filho de Seu Davi, pastoreia as ovelhas do pai na relva ciliar do lago. Outro chega também pra atuar naquele cenário colossal, é Jacó. Os dois amigos brincam, divertem-se e tomam banho. Jacó acende um cigarro de maconha, oferece a Abraão. E os dois se entregam aos delírios da diamba. Acabam adormecendo na relva. O sol já ia pelo meio do céu quando Jacó acordou, vê o amigo ainda no sono letárgico. E põe-se a praticar um ato vil planejado de si, em véspera. Arrasta o que está inerte até o lago e afoga-o. E parte furtivamente levando umas marrãs de ovelha. Seu Davi ainda naquela tarde dominical, alheio ao ato sinistro contra sua descendência e herança, com uma ruma de crentes como ele, pregava no largo do junco:
“Salmo 22 (Heb.23) Salmo de Davi
O Senhor é meu pastor, nada me faltará
Em verdes prados ele me faz repousar.
Conduz-me junto às águas refrescantes,
restaura as forças de minha alma.
Pelos caminhos retos ele me leva,
por amor do seu nome.”
A tarde agora se faz crepuscular, a estrela D’alva num céu escarlate mirava Maria banhando-se numa grota por trás de casa. Dedicava zelo ao colo e as suas intimidades. Perfuma-se e toma vinho, aguarda alguém que não demoraria a chegar pelos fundos da casa. Era Judá seu amante, os dois entregam-se a um amor avassalador, voluptuoso na cama do pecado. José seu marido tinha um carrinho de doces que ele todo dia, punha na porta da Escola Municipal Maria José de Carvalho. Pela tarde ia ele com o carrinho adaptado a um triciclo, pelas ruas de Santana do Ipanema pra vender mungunzá, tapioca, bolo de macaxeira e suco de frutas. Aos domingos, como aquele, o ponto era o campinho do jogo de futebol. Com um amigo seu da rua Tertuliano Nepomuceno, conversava sobre um passarinho que tinha e interessava-se àquele, propôs ir buscar na mesma hora a ave canora pra comércio. Deixou o amigo olhando seu carro de quitutes e foi. Desconfiou da porta da frente fechada e furtivamente foi pelos fundos. Flagrou de sorrate a nudez do casal no coito de infidelidade, desnudou seu coração do amor que tinha, preenchendo imediatamente o vazio que ficou com ódio enfuricedor. De posse de um facão matou os dois entrelaçados no leito da traição.
“Ainda que eu atravesse o vale escuro,
nada temerei, pois estais comigo.
Vosso bordão e vosso báculo
são o meu amparo.
Preparais para mim a mesa
à vista de meus inimigos.”
Quando Justino doido chegou da cidade ainda não findara o domingo, faltava pouco pra meia-noite, ninguém mais na rua. O barba azul morava naquela casa afastada da ruela na subida pra entrada da pedreira do junco. Sua passagem pelo cortiço atiçava os cachorros que avançavam contra ele. Odiavam-no, pelo seu cheiro de imundícies. Sua sombra se projetando agigantada sobre as casas. Ninguém tinha coragem de fitá-lo nos olhos. Por certo qualquer vivente que o encarasse congelaria o coração. À porta de casa ele deu um bramido tão horrendo que fez esvoaçar a névoa que resvalou na luz do poste e nas trevas. Avançando agarrou um dos cachorros e com uma única mordida, quase lhe apartou a cabeça do corpo e avançou pra outro cão. Nesse momento do véu negro da noite surgiu um lobo de olhos de fogo, de seus dentes uma baba viscosa, uivou e avançou pra Justino que buscou abrigo em casa. O lobo foi em seu encalço e albergados do nevoeiro noturno travou-se dentro daquele casebre, luta que resultou de morte contra seu único morador.
“Derramai o perfume sobre minha cabeça,
e transborda minha taça.
A vossa bondade e misericórdia hão de seguir-me
por todos os dias de minha vida.
E habitarei na casa do Senhor
por longos dias.”
Abraão virou fatalidade, Maria caso de polícia, Justino Lenda...
Fabio Campos 20/06/2010 É professor em S. do Ipanema – AL.
Contato: Fabio soacam@yahoo.com
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