SANTANA RUAS QUE VÃO RIO QUE VEM

Contos

Fábio Campos

Ao Escritor Clerisvaldo B Chagas

RUA DE ZÉ QUIRINO
Seu Fernando vem tangendo o burro carregado com quatro ancoretas, cheias de água do Ipanema. Ao trote do animal a carga balança, emitindo um som característico, dentro dos cilindros de madeira. Seguem pela rua de Zé Quirino, deixando para trás um rastro, feito sangria desatada que pinta o leito da rua de rio. O sol se espreguiçando por cima das árvores e dos telhados das casas, enquanto os passarinhos engaiolados de Seu Carlitos, pendurados no pé de amêndoa esticam as cabeças tentando receber os primeiros raios de quentura da aurora. Dona Zefinha cumprimenta Seu Fernando, mas não é água que aguarda. Espera à porta, outro homem com outro jumento, que vem da Maniçoba, o vendedor de leite de Seu Zé Urbano. A buzina estridente anuncia, Seu Pedro, vindo do comércio à guisa de um carrinho de pão.

RUA DA CADEIA
Quando o vendedor de leite chegar Dona Edite vai perguntar como está Seu Zé Rosa, vigia do açude do Bode, se melhor de saúde. E irá reclamar do leite, pois quando cozido deixa uma crosta no fundo da panela. Tem achado estranho também o cheiro, vai querer saber o que as vacas estão comendo. Dona Carmelita, metida no seu roupão rosado, com suas chinelas fazendo chap-chap na calçada, está indo até a Mercearia de Seu João Frade, comprar fósforos, ovos e manteiga. Precisa preparar o café da manhã de Seu Otávio o marido, que vai pro mercado e dos três filhos que irão pra o grupo escolar Padre Francisco Correia. Seu Benigno trabalha no setor de Endemias da Secretaria Municipal de Saúde, falta pouco pra se aposentar. Enquanto não chega esse dia, cumpre rigorosamente seu ritual. De farda cáqui, e chapéu engraçado, de caçador de borboletas, vai visitando às casas, checa os depósitos d’água. Investiga, recomenda.

RUA NOVA
Interessante como as casas se parecem com seus donos. Na casa de Dona Cristália, As louças de porcelana, na cristaleira de Dona Cristália. Na casa do Mário Nambu o caçador, três biscuit na parede da sala, três gansos branquinhos voam pra canto nenhum, parados. Seu Tributino faz tarrafas feito o Pedro apóstolo, tem filho chamado Jesus, a esposa é Maria e as paredes repletas de imagens de santos. Dona Mariquinha mãe de Gilvan quando for perto de dez da manhã vai até a farmácia de Seu Aleixo comprar pílulas pra sua enxaqueca. O rádio, o tempo todo ligado pra seus três gatos angorás escutarem até meio-dia. À tarde eles dormem, quando acordam tomam leite ouvindo música à vitrola. Os meninos, Dionísio, Paulo e Manoel, filhos de Seu Zé Preto, de volta da escola passam direto pro panema. Vão jogar bola no campinho da ponte quebrada, até o sol ficar a pino, e só irão pra casa quando estiverem com muita fome. Chegarão em casa afobados e suarentos, deixarão roupas largadas por todo canto e Dona Celina a preta velha, em vão reclamará, como faz todos os dias. Enquanto os meninos sonham um dia ser jogador de futebol famoso.

Quando é dia de feira, a rua fica mais agitada. Do bebedouro passa agitado, um menino montado numa mula tangendo umas reses pra intendência e acaba fazendo a todos entrarem pra suas casas. Maria Lula que vinha do comércio trazendo uma cesta na cabeça teve que entrar na casa de Dona Antonia lavadeira até os bovinos se irem. Foram-se, mas deixaram um trilho de esterco enchendo a rua do cheiro de curral. No final da tarde, mais alvoroço. Suburbanos bêbados lavados, voltam pra seus quixós, balançam suspensa num dedo o que chamam de feira, os moleques apupam. Uma cachorra vira-lata no cio, passa com seis ou sete cachorros à reboque, um deles consegue o coito mas fica enganchado. Festa pros meninos, desespero pros cães enlaçados pelo sexo.

RUA SÃO PEDRO
O prédio da Perfuratriz de tão antigo tornou-se triste. Na festa de São Pedro barracas, bandeirolas coloridas e gambiarras de luzes em suas calçadas e fachada nem assim consegue alegrá-lo. Os festeiros, transeuntes noturnos beneficiados pela escuridão, aproveitam o ermo dos cantos do velho prédio e aliviam a bexiga. Meninos atiram contra suas paredes desbotadas todo tipo de sorte, riscos de carvão e giz, arremedam sexos, o do homem uma tesoura, o da mulher um triângulo, mais parece um remendo costurado. Uma propaganda eleitoral antiga, pinchada por Albertino das tatuagens desafia o tempo, “Vote em Oceano Carleal”, ao lado do dizer, o desenho de uma mão fechada, com o dedo polegar hirto. Hoje em dia nem existe mais aquele Oceano, nem Albertino. Só o prédio velho, a parede e a mão dizendo: Bacana! Que nunca se cansa. Jovens casais nos batentes centenários, beijam-se enamorados, fazendo pouco caso de que sentam-se, sobre parte da história daquela rua. No meio da festa uma briga. Dois amigos Alípio e preto Paulo, um é jogador do time do Ipanema o outro do Ipiranga, embriagados se desentenderam e trocaram sopapos. Falaram que a contenda iniciou-se motivada por futebol. Quase ninguém sabe a causa verdadeira, a mulata Albertina (Tina), bonita e namoradeira dera bola pros dois. Os Soldados Martins e “Caçador” levou-os, pra passar a noite na cela da Cadeia Pública no início da rua do sebo.


RUA DA PRAIA
Os meninos perseguem os saguis, bizungas e pardais do pomar de Seu Abdon Soares e Dona Pretinha. Pomar de belo coqueiral que acena pros quintais das casas, e os urubus vêm pousarem nas suas palhas. Os moleques se arriscam a roubar goiabas e maturis de caju no quintal de Lelé pai de Erasmo, Manoel e Tião, que tem um cachorro pastor alemão. Gritaria na rua, um palhaço equilibrando-se nas pernas de pau anuncia: – Hoje tem espetáculo! A molecada responde: -Tem sim senhor! As oito horas da noite... Foi-se o palhaço, rua em balbúrdia. Os meninos Ciço de Preta, Milton e “Quélo” engendrados na tarefa de desvencilhar umas pipas dos altos galhos de um pé de fícus, defronte a casa de Seu Pin pin. O funcionário da companhia de Luz alertou pra o perigo, mas menino só tem medo de alma penada e lobisomem, de descarga elétrica não. Um dia um cano d’água quebrou no meio da rua, bem na frente da casa de Seu Filemon. Água de festa, brincar de construir, barragens em miniaturas com barro e areia na sarjeta, festa que termina em resfriados, e despesas com xarope na farmácia de Seu Aleixo. As meninas brincam de roda e cantam:

Se essa rua, se essa rua fosse minha
Eu mandava, eu mandava ladrilhar...

RUA, TRISTEZA E ALEGRIA
O ano inteiro a rua é uma festa. No carnaval, os caretas mascarados, com seus gritos estridentes e os estalos de relho, em perseguição aos meninos medrosos, o mela-mela faz a rua brincar carnaval e sorri, os blocos e as troças emprestam idéia de bagunça ao passeio público, uma desordem boa, animada. Na quaresma a rua fica triste, macambúzia. Nos dias “grandes” da semana santa, o ápice da melancolia representada nos mendigos que angariam “um jejum” de porta em porta. E a sexta santa tediosa. Tirante a algazarra da malhada a Judas, a rua só volta a sorrir com a chegada dos festejos juninos, do bom São João, Santo Antonio e São Pedro, soltar fogos, enfeites e folguedos. A rua toda uma só família. Bandeirinhas, fogueiras, quadrinha, iguarias de milho. Na devoção ao dia de Corpus Christi vem a procissão, oratórios e plantas expostos, nas portas das casas, velas acesas e imagens de santos nas janelas abertas de batentes forrados com colchas coloridas. A procissão se vai, velhinhos sentados dão adeus à procissão, agora só ano que vem. E voltarão a alegrar-se no dia da pátria. Os meninos do grupo escolar, fardados, orgulhosos desfilam pra seus familiares que acenam das portas. Quando vem chegando o fim do ano, uma comissão de garis, passa pedindo “as festas”. Pedro Forte pintou a frente da casa, Mané Guarda, do DNER também. Uma aqui, outra ali, e vai ficando tudo bonito pra o fim de ano. Lá vem um féretro, Zé Rosa morreu, Quincas sapateiro e Juca Alfaiate, nas alças dianteiras. Consternação a rua para e olha. Toinho das Máquinas à calçada com Seu Sebastião, filosofa: -É o destino de nós todos...

A RUA E O RIO
E vêm as trovoadas. O passeio alagado, o mundo tingido de chumbo, o céu ameaça desabar sobre a cidade. Nos interiores das casas pouca luz, sobra umidade. As casas frágeis pra os rigores de muita água sucumbem a infiltrações. Sudorese nas paredes e nos cimentados. Tão bom tomar café dentro de casa, agasalhado, olhando a chuva da tarde pela janela. Desce a enxurrada pelo calçamento vai pro panema. O rio toma água nas cabeceiras e vem fazendo a festa, arrastando tudo onde antes era rio, mas o povo esqueceu. A cheia trás pra cidade, cheiro de rio. Cheiro de barro, cheiro de piaba, cheiro de lama. E o rio arrasta mato, leva um cavalo morto, trás muitas cobras, que atordoadas buscam nova moradia.

O FIM
Noutro dia, amanheceu bonito, de céu azul e alvas nuvens. Vicença foi comprar pão pro café da manhã na bodega de Seu Carlitos. O marido Zé fogueteiro e os três filhos, ficaram fabricando fogos, pra vender pelos festejos juninos. De repente um estrondo balançou a rua. Alarido, correria, Vicença na bodega também queria saber o que houve. E voltou pra casa pela mesma calçada. A rua, as casas, tudo igual, tudo no mesmo lugar, menos sua casa, virada numa imensa flor de horror despetalada, flor de escombros. E ela renegando a crudelíssima realidade, chama os meninos pra comer pão, já alienada de si, põe-se a cantar:

Se essa rua, se essa rua fosse minha...

Fabio Campos 07/06/2010 É professor em S. do Ipanema – AL.
Contato: fabiosoacam@yahoo.com

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