O VASO BRANCO

Contos

Fábio Campos

Dedico este Conto aos meus irmãos: Francisco, Fernando, Selma, Simone e Sérgio de Campos

E aos meus pais: Dneusa e João Soares Campos (in memorian)

Ele parece um jarro, se presta divinamente bem, para enfeite de mesa ou centro. Não é de porcelana. É de cimento branco, esmaltado. Não é raridade. Nem relíquia o é. Valor? Estima, de família. É um Vaso Branco e só. Um vestígio: Pozanni & Inco Chine -1917 Brasil - SP . Traz essa inscrição, imprimida ao fundo, por fora. Em forma de brasão, ladeada por dois leões. Essa informação, pode nada dizer, sob as vistas de um observador comum. Não é esse o nosso caso.

A família Pozzani chegou da Itália em 1912. Fugiam da primeira guerra mundial. Chegaram no porto de Santos. Trazendo na bagagem, muita esperança pela nova pátria escolhida pra morar. Dali, foram pra capital paulista, destino, hospedaria dos Imigrantes. Tempos depois, o interior do estado de São Paulo. Foram se instalar, na região onde hoje, fica São Bernardo do Campo. Conheceram uma pequena colônia de imigrantes chineses. E constituíram uma parceria, para a produção de peças de cerâmica: Xícaras, pratos, vasos, escarradeiras, urinóis, etc. Foi exatamente ali, confeccionado pelas mãos dos irmãos, Dominni e Rafaelle Pozzani, com os filhos, esposas e famílias de colonos chineses, da descendência Jun Ming, que nosso Vaso Branco nasceu. Estamos em 1917.

Uma vez por mês, o agricultor paulistano, Antonio Donizeti, vai a capital paulista, na sua caminhonete Ford, leva, a cada vez, uma carga de peças de cerâmicas dos Pozzanis & Jun Ming. Numa dessas cargas, seguiu forrado com pó de serra, em caixas de madeira, o Vaso Branco. As peças chegaram a capital paulista. Mais precisamente no bairro do Bixiga. Dali, vão parar nas prateleiras do Armarinho “Dragão Chinês”, do senhor Lee Jun Fan, um japonês que chegou em São Paulo, faz tempo, nos porões dos navios. Veio sozinho, depois chegaria os demais membros da família. E vários armarinhos, a família próspera abriria. No bairro da Liberdade, no Braz, na Mooca e na Estação da Luz. Onde existe até hoje. Talvez a terceira geração do senhor Lee.

O nosso Vaso Branco. Ficou só quinze dias, de sua recente existência, encalhado na prateleira do armarinho do japonês, na filial da Estação da Luz. Um jovem rapaz jornaleiro chamado de Paulo Jorge, que morava num velho casarão próximo a entrada da Consolação, comprou-o para dar de presente a sua tia, Doralice. Que viera embora da Bahia com a família, marido e filhos, pra morar no Vale do Angabaú. Seu marido José Pedro, um pedreiro alagoano. Veio disposto a trabalhar nas lavouras de café, ou quem sabe na produção de vinho no interior do estado. Três anos se passariam, até que Doralice ficou viúva. E com seus três filhos resolveu fazer o caminho de volta pra Bahia. Um irmão dela que era comerciante, na Vinte e Cinco de Março, foi solicitado pra levá-la, no seu caminhão Chevrolet, com sua mudança. Conseguiu o combustível com um compadre deputado estadual. Uma troca de favor. E o Vaso Branco muito bem acomodado, num baú de madeira, sobre dois travesseiros enrolado de cobertor. Faz o longo percurso do sudeste até o nordeste. Vai parar numa casinha de taipa na zona rural de Feira de Santana. É Abril de 1920.

Doralice não ficou muito tempo sozinha, arranjou outro companheiro. Desta vez um agricultor sexagenário. Com ele teria mais três filhos. Um dos filhos de Doralice do primeiro casamento, chamado de Paulo Roberto, o mais velho dos três, com dezoito anos agora, casou-se com uma sergipana chamada de Rosalina. O jovem casal vai morar na terra natal de Rosalina. Na cidade de São Cistovão. Sua mãe deu ao filho como presente de casamento, o Vaso Branco. Estamos em 1928. Rosalina viveu só dois anos com Paulo Roberto. Por causa dos ciúmes dele, o casal brigava muito. Só tiveram um filho. Paulo Roberto voltou pra Bahia. Foi pra região de Ilhéus, trabalhar nas lavouras de cacau. E Rosalina foi pra casa de uma tia em Neópolis. Levou consigo, o filho, e os cacarecos que possuía. Coube tudo num carro de boi. Enrolado no colchão, ia as coisas frágeis: pratos, garrafas e o Vaso Branco. Corría o ano de 1930.

Em Neópolis a tia de Rosalina é dona de um bordel. O filho dela, foi adotado por uma amiga da sua tia que não tinha filhos, era estéril. A tia de Rosalina, que chamava-se Isaura, admite sua sobrinha, agora sem marido e sem filho, como meretriz no seu bordel. O Vaso Branco foi parar na prateleira do Bar do Bordel. Ficou ali até 1934. Como foi que saiu dali? Assim: Um soldado da polícia sergipana, que era natural de Alagoas. Mais precisamente da cidade de Porto Calvo. Fez uma aposta com dona Isaura numa partida de pôquer. Se ele perdesse, daria seu revólver pela dívida monstruosa, de bebidas e fornicações, feitas fiado e à muito sem quitação. Caso ele ganhasse, sua dívida deveria ser perdoada, com crédito pra novas farras. E olhando pra prateleira exigiu: - Se eu ganhar quero também, como troféu, aquele Vaso Branco. Isaura falou que não era dela, pertencia a Rosalina. Ele não se fez de rogado, complementou, pois, é com ela que passarei a noite hoje, se ganhar. E o Vaso Branco foi, numa manhã de um dia de domingo, no banco traseiro, da viatura da polícia, parar em Porto Calvo. Na casa do soldado de polícia Rogério que trabalhava em Sergipe. Estamos em 1935.

Com a intenção de capturar Virgulino Ferreira “O Lampião”, as polícias de Alagoas e Sergipe se unem. E o soldado Rogério, é transferido para o sertão de Alagoas. Vai parar em Delmiro Gouveia. Levou a família e tudo que possuía. E acomodado no meio de uma trouxa de roupas, o Vaso Branco. E Rogério continuou no novo endereço, com os velhos hábitos. A dona do Bordel de Delmiro Gouveia, chamava-se Marcolina. Também a ela, o soldado de polícia contraiu uma dívida considerável. O soldado observou uma particularidade ali. Dona Marcolina era colecionadora de peças de porcelanas e cerâmicas de todo tipo, formato, cor, estilos e raridades. Lembrando-se do episódio de Neópolis. Vai em casa e resgata o Vaso Branco, e nova (mas antiga pra ele) proposta de aposta. Desafio aceito. Desta vez o soldado perdeu. E ele, o Vaso Branco. Foi fazer parte do acervo da colecionadora Marcolina. É verão de 1936.

Certo dia chega ali naquele bordel um homem bem trajado. Paletó, gravata, chapéu Panamá. É jogador de baralho profissional. Aventurando no carteado suas reservas, era assim que mantinha sua vida boêmia. Conhecem-no por Jota Campos de Santana. Ganha, uma boa soma de dinheiro, na mesa de jogo. Uma semana depois que estava ali, resolve ir embora. Desde que vira a coleção de Marcolina ficara fascinado. Propõe comprar várias peças, mas Marcolina frustra sua intenção dizendo que, não estão à venda, todas, têm valor de estima. Menos uma, a que ganhara em aposta de um soldado: O Vaso Branco. J. Campos de Santana compra-o então, pra dar a uma pessoa especial que conhecera em Olho D’agua das Flores. E o Vaso Branco foi parar na casa de Dona Amântia de Sá, mãe de D’neuza, uma menina de treze anos, por quem Campos de Santana estava apaixonado. Já é janeiro de 1937.

Certo dia, Seu Tomázio, o pai de D’neuza ficou sabendo que Virgulino Ferreira “O Lampião” estaria chegando para saquear a cidade de Olho D’agua das Flores. E eles fogem de casa para uma trincheira na caatinga ali próximo. D’neuza, antes de sair, pega alguns pertences seus, e lembrando-se de J.C. de Santana, leva também o Vaso Branco. O Lampião foi-se embora, não sem deixar seu rastro de sangue de inocentes. E o Vaso Branco voltou pra casa de Dona Amântia, com um pequeno desfalque, tudo culpa de Lampião. Em vão a menina D’neuza, voltou ao lugar pra procurar, o puxador da pequena tampa do Vaso Branco. Novembro de 1937.

J. Campos de Santana, tornou-se comerciante, casou-se com D’neuza, e foram morar em Santana do Ipanema. Era o ano de 1942. Muitos anos se passaram. Em 1976 D’neuza ficou viúva. Em sua casa, na Praça da Bandeira, na estante, como a se perguntar: Quanto tempo mais permanecerei aqui? O Vaso Branco. Estamos em maio de 2010.

Fabio Campos 06/05/2010. É professor em S. do Ipanema- AL.
Contato: fabiosoacam@yahoo.com

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