Acordei-me com o som cadenciado e harmonioso da alvorada tocada pelo corneteiro do quartel. Eu era tenente do Exército Brasileiro servia na 2ª Companhia de Guardas, força de elite do IV Exército sediada no centro da cidade. Tropa altamente treinada contra distúrbios e guerrilha urbana. Uma luminosa manhã acordava a bela histórica cidade do Recife. A Companhia estava de prontidão há mais de uma semana, sem algum militar sair do quartel devido aos acontecimentos políticos da época. O presidente João Goulart acendia uma vela a Deus outra ao Diabo. Um processo de desgaste político se espalhou sobre a Nação. O que sustentava Jango era um suposto esquema militar, inclusive o General Justino Alves Bastos, comandante do IV Exército, jurou de pés juntos que defenderia a legalidade, quando a conjuntura mudou, ele também mudou. A situação ficou mais nebulosa depois do grande comício das reformas em frente ao Ministério do Exército, dia 13 de março, com muitos discursos provocativos às Forças Armadas. Era o pingo d’água que faltava para o copo transbordar. Jango estava cutucando a onça com vara curta.
Naquela bela manhã logo depois da formatura matinal, o capitão Luís Henrique Maia reuniu os 5 tenentes comandante de pelotão, fez uma preleção. Havia notícias confirmadas que a tropa do general Mourão Filho de Minas Gerais estava a caminho do Rio de Janeiro para levantar o I Exército, e depor o presidente João Goulart. O objetivo era restabelecer a ordem no país, garantir a eleição para presidente em 1965. Perguntou se alguém estava contra a deposição do presidente. Mandou preparar o pelotão para o enfrentamento, entrar em combate urbano a qualquer momento.
Dirigi-me ao alojamento de meu pelotão, com a cabeça a mil, sabia que haveria uma confrontação naquelas próximas horas. Ainda estava em divagações quando o comandante me chamou e deu as primeiras ordens: Dissolver uma manifestação no Sindicado dos Bancários, perto do quartel. Coloquei o pelotão em forma, passei em revista o armamento e equipamento, falei para os soldados sobre a missão, deixei bem esclarecido, tiro só com minha ordem. Formação em cunha o pelotão tomou a Rua do Príncipe em marcha. A batida uníssona do coturno no calçamento fazia um barulho assustador. Enquanto aqueles 44 soldados bem armados e equipados avançavam, eu vi mães colocando meninos para dentro das casas, ouvi algumas vaias, como também algumas palmas, era o povo dividido. Avançava, continha a emoção, pensava na informação que me passaram: os sindicalistas, os camponeses, os homens de Arraes, tinham sido treinados em guerrilha e possuíam armamento de primeira linha. Assim que avistamos ao longe a multidão em torno de 400 pessoas, tive que controlar um sargento, meu auxiliar, que pedia para dar um tiro a fim de dispersar a multidão. Mandei o sargento calar a boca, o comando era exclusivo meu, não queria que houvesse uma reação por parte dos manifestantes e terminar numa carnificina de balas dos dois lados. Tentaria um diálogo, se possível. O pelotão se aproximou, dava para ver as fisionomias dos manifestantes, o sargento insistindo, me pedindo para atirar; dei voz de comando ao pelotão “Acelerado marche!”, quando, de repente, tive a maior alegria de minha vida ao perceber a multidão se dispersando em todas as direções. Invadimos o sindicato a “manus militaris”, ficaram apenas 3 manifestantes, pedi para eles saírem ou teria que levá-los presos, era a ordem. Apenas um barbudo, corajoso, magro, me encarou: “Só saio morto ou preso”. Dei a ordem “Então têje preso, não vou lhe matar”. Mandei lacrar todos os móveis, deixei 5 soldados guarnecendo o sindicato, retornei com o resto do pelotão para Avenida Visconde de Suassuna, sede da Cia de Guardas. Durante o percurso, o pelotão marchava em duas colunas, e o barbudo, sindicalista, preso no meio. Encostei-me e cochichei no seu ouvido: “Estão matando tudo que é comunista, quando você chegar ao quartel vai ser fuzilado. Vou lhe dar uma chance, na próxima esquina lhe empurro e você se manda”! Ele encarou-me com olhar agradecido e suplicante. Puxei-o pelo braço e empurrei, ele deu um pique, se escafedeu na primeira rua. No quartel fiz um relatório verbal. Ainda no 1º do abril, meu pelotão tomou a sede dos Correios, patrulhou a cidade do Recife. À noite, cansado, dormi feito um menino, mal sabia que aquele era o primeiro dia de uma ditadura de 21 anos.
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