DIÁSPORA INTELECTUAL SANTANENSE: a vanguarda da terra espinhosa1

Outras Peças Literárias

José Marques de Melo

Ensaio escrito a pedido de Luiz Sávio de Almeida, editor da página “Espaço” de O Jornal, Maceió (AL), onde foi publicado na edição de 06/09/2009.


Na prosa metafórica de Graciliano Ramos, Santana do Ipanema constitui um espaço descrito como “terra espinhosa”, esculpida com “bárbara firmeza” e calcinada por “resistência agreste”.

Exatamente naquele território ornado por mandacarus a minha identidade sertaneja foi nutrida e retemperada. Ali permaneci até os 15 anos de idade, quando me tornei andarilho intelectual, buscando novas oportunidades cognitivas.

Procuro no baú da memória indícios do começo dessa jornada, como o fiz no livro Vestígios da Travessia: da imprensa à internet, 50 anos de jornalismo (Maceió, Edufal, 2009).


Progresso cultural

A formação de diásporas intelectuais só pode ser compreendida num quadro de penúria cultural, que induz os jovens à emigração. Seus integrantes preservam laços orgânicos muito tênues com a terra de origem. Mas ela permanece como fonte de inspiração ou matriz geradora dos componentes sociológicos e geográficos que configuram as suas criações em prosa ou verso.

Se a era da imprensa não foi auspiciosa para a cultura santanense, a idade da internet vem favorecendo e estimulando o florescimento literário.

Tais condições foram criadas no processo de transformação sócio-econômica que o município experimentou na segunda metade do século XX, ultrapassado o estágio agro-pastoril, para se converter em pólo terciário, dinamizando o setor de serviços.

Mas só o desenvolvimento do ensino superior favoreceria a instauração de um ambiente cultural balizado por critérios sintonizados com a criação literária.

O aparecimento de escritores inseridos na vida cotidiana da cidade só vai se dar na passagem deste século, beneficiados pelos índices de expansão do público leitor.


Contingente literário

Tomando como fonte as obras que lograram difusão mais ampla no mercado editorial, é possível dimensionar a plêiade santanense em três grupos espacialmente definidos:

Vanguarda sertaneja- composta por escritores que conservaram vínculos permanentes com o ambiente cultural que lhes marca a fisionomia intelectual e que determina o conteúdo das respectivas obras. A ela pertencem: Clerisvaldo Chagas, Francisca Soares Farias, Goretti Brandão, José Malta Neto, José Monteiro Pereira, Raul Monteiro Pereira, Remi Bastos e Valdemar de Sousa Lima.

Retaguarda litorânea - integrada por estudiosos que se locomoveram para metrópoles da região. Nunca se afastando do lócus santanense, cultivam relações diretas ou mediadas, o que se reflete no conteúdo das suas publicações. Dela participam: Djalma de Melo Carvalho, Helio e Fábio Rocha Cabral de Vasconcelos, José Geraldo Wanderley Marques, Lucia Nobre, Luiz Nogueira Barros, Manuel Constantino Filho, Rossana Gaia, Tadeu Rocha e Tobias Medeiros.

Diáspora nacional - constituída por intelectuais que migraram para regiões distantes, preservando as raízes culturais, mas só ocasionalmente voltando ao convívio pessoal no âmbito da sociedade onde foram intelectualmente nutridos. Em alguns casos, essa ligação tem sido retomada e intensificada por intermédio das telecomunicações; ou motivadas pela disponibilidade temporal e mobilidade espacial típica dos aposentados. Trata-se de um conjunto heterogêneo, constituído por: Aguinaldo Nepomuceno Marques, Breno Accioly, Emmanoel de Oliveira Cavalcante, Fernando Nepomuceno Filho, Floro de Araújo Melo, Ivone Bulhões, Luitgarde Cavalcante Barros, Marcello Ricardo Almeida, Maria do Socorro Farias Ricardo, Morche Ricardo Almeida, Nireu de Oliveira Cavalcante e Oscar Silva.


Diáspora nacional

A diáspora nacional apresenta fisionomia complexa, cobrindo universos oscilantes entre a história e a política, a antropologia cultural e a economia contábil, a medicina social e a etnografia regionalista.

Para ilustrar esse elenco dos representantes de Santana do Ipanema na geografia intelectual brasileira vamos esboçar os perfis bio-bibliográficos daqueles que ocupam a vanguarda santanense: Breno Accioly, Oscar Silva, Aguinaldo Marques e Luitgarde Cavalcanti Barros.


Breno Accioly

Apresentado como “figura singular” e ao mesmo tempo “controvertida”, Breno Rocha Accioly (1921-1966) tem biografia marcada por carências afetivas e crises existenciais.

Autor que agendou Santana do Ipanema no universo ficcional brasileiro, sua infância transcorreu no seio de uma “família altamente católica”, legando uma instigante obra literária. Se não é totalmente autobiográfica, Edilma Bomfim diz que “ficcionaliza (...) rico universo interiorano povoado de ladainhas e (...) novenas (...), velórios, padres, beatas, mistérios inconfessáveis, (...) histórias do cangaço, os fantasmas do casarão e, particularmente os loucos da cidade”, que hoje são componentes intrínsecos da “cultura local”

Ninguém melhor que o tio Tadeu Rocha percebeu com nitidez a simbiose existente entre a obra de Breno Accioly e o ambiente santanense.

“ Em nenhum dos modernos contistas brasileiros, a própria infância refletiu-se tão fortemente na sua obra de ficção como em Breno Accioly. Os nove primeiros anos de sua vida passados em Santana do Ipanema (Alagoas) impregnaram de tal maneira a sua memória que mais da metade dos seus contos enfeixados nos livros João Urso e Cogumelos possui cenários sertanejos ou personagens de nomes bem conhecidos em sua cidade natal.”

Breno foi ungido pela crítica como o “contista da loucura”, com a publicação da obra inicial João Urso (Rio de Janeiro, 1944). Os prêmios Graça Aranha e Afonso Arinos, legitimados pela Academia Brasileira de Letras, o consagram pela “qualidade literária” e pelo fato de ser “escritor jovem”.

Os contos do livro de estréia, quase todos “ambientados” em Santana do Ipanema, recriam “cenários e tipos da infância. Essa relação umbilical já fora notada por José Lins do Rego, no prefácio que escreveu para o seu livro de estréia:

“ Neste rapaz, que conheci ainda menino em Alagoas, há uma vocação indomável para a literatura. Lembro-me dele ainda criança, de corpanzil disforme, em Sant`Anna do Ipanema, terra áspera que tanto marcou a sua personalidade.”

Aparecem, a seguir, os demais livros de contos: Cogumelos (1949), ainda focalizando o universo santanense, Maria Pudim (1955) e Cataventos (1962), estes últimos ambientados em outros cenários, como também vai ocorrer com seu único romance: Dunas (1955).

O uso que Breno faz do “grotesco, disforme, horrível e ridículo” sinaliza o traço comum a toda a sua obra, segundo a perspicácia da exegeta alagoana Edilma A. Bonfim. Intérprete do “sentimento de incomunicabilidade humana”, é plausível que ele e sua obra tenham suscitado observações pungentes de alguns paradigmas da literatura brasileira.

Foi, porém, Gilberto Freyre quem identificou a universalidade da criação do escritor santanense e sua capacidade de enriquecimento da literatura brasileira. Desta forma, contribuiu para nos retirar da condição de subalternidade à arte cunhada pelos povos que mitificamos como mais cultos e mais avançados:

“ Breno Accioly pertence (...) a esse grupo de contistas ou romancistas complexos” (...), cujos contos “quase sempre nos levam à presença de alguma coisa pouco conhecida, de pouco confessado, de pouco revelado e até ignorado na turva condição humana”.

Oscar Silva

Integrando uma família de modestos, mas exímios artesãos, Oscar Silva (1913-1991) começou a atividade intelectual em Maceió, onde escreveu textos que mimetizavam o realismo socialista. Alguns anos depois publica Fruta de Palma (Maceió, Caeté, 1953), alcançando grande repercussão na comunidade santanense pelo resgate de episódios inusitados da vida cotidiana.

Transfere-se para o sudeste, habitando cidades mineiras, paulistas e paranaenses. Encontrou seu porto seguro em Toledo (PR), onde publicou o romance Água do Panema (1968) e outros títulos dedicados à terra adotiva.

Pertencente à geração que aderiu e deu sentido ao movimento denominado “regionalismo literário”, seu perfil intelectual é completamente distinto daquele protagonizado pelo contemporâneo Breno Accioly.

Isso está evidente no prefácio escrito por Tadeu Rocha (1953) para seu livro principal.

“ Entre os novos que o segundo regionalismo encorajou em Maceió estava o sertanejo Oscar Silva, cuja formação literária se fez através de ásperos caminhos, vencendo as mais terríveis barreiras econômicas, sociais e culturais que alguém possa imaginar. Menino pobre da Rua do Sebo, lá de Sant`Ana do Ipanema (...) fez muita coisa na vida para chegar a ser escritor: marceneiro, tecelão, soldado de Polícia. (...) As cicatrizes das suas lutas ficaram até bem visíveis: o sertanejo outrora adepto das verdades religiosas com que a Igreja civilizou as catingas de Sant`Ana da Ribeira do Panema andou tentando conciliar, na capital da Província, a materialização dos espíritos e o materialismo histórico.”( p. 15)

Oscar tinha, aliás, plena consciência das contradições que marcaram sua trajetória. Tanto assim que retardou, durante 40 anos, a publicação do romance que prometera ao povo de sua terra nativa.

Nem mesmo o incentivo que recebeu dos leitores privilegiados pelo acesso ao original da obra foi suficiente para demovê-lo da obstinação de continuar polindo o texto.

Tadeu Rocha cobrou solenemente a obra prometida. “Oscar Silva há tempos que anuncia o seu romance Água do Panema, porém só o mostrou a alguns amigos”. Entre eles Rubem Braga, que a considerou “muito interessante, por retratar, com força e originalidade, um setor de nossa pobre mas complexa vida brasileira”.

Quando finalmente decidiu publicar seu romance, a conjuntura não o favoreceu. Água do Panema só foi publicado em Toledo (PR), no ano de 1968, como edição custeada pelo próprio autor.

Fruta de Palma (1953), “livro humano e simples, na sua riqueza expressiva de valores naturais”, como foi descrito por Câmara Cascudo, conferiu mérito justificado a Oscar Silva: o pioneirismo como cronista municipal. Seu sucessor evidente, nesse gênero literário, tem sido Djalma de Melo Carvalho, autor de meia dúzia de títulos sobre o tema recorrente da chuva, cuja fartura ou escassez refletem a intensidade das emoções sertanejas.

Aguinaldo Marques

Aguinaldo Nepomuceno Marques (1920), contemporâneo de Breno e Oscar, estudou medicina na Universidade Federal Fluminense. Iniciou sua carreira como médico sanitarista, clinicando em Niterói, depois de uma curta experiência exercendo a pediatria em Santana do Ipanema.

Fez pós-graduação no Chile, como bolsista da Organização Mundial da Saúde, chefiando durante muitos anos a Clínica Pediátrica do Instituto Fernandes Figueiras, mantida pelo Ministério da Saúde, no Rio de Janeiro. Ali desenvolveu pesquisas sobre as doenças infantis, que embasaram o conteúdo dos livros destinados ao setor de saúde, principalmente Pediatria Social (Rio de Janeiro, Cultura Médica, 1986).

Mas foi, sobretudo, no campo político que o autor se destacou no cenário nacional. Os estudos sobre as enfermidades padecidas pelas crianças brasileiras o convenceram de que sua principal causa era a desnutrição provocada pelas carências alimentares, sem dúvida agravadas pela precariedade sanitária do ambiente em que sobreviviam. O diagnóstico dessa situação constitui, aliás, a matéria prima do seu livro-denúncia De que morre o nosso povo ? (1963), lançado na série “Cadernos do Povo Brasileiro”, publicada pela Editora Civilização Brasileira. Mais adiante, ele publicaria um ensaio amadurecido sobre essa temática, reunindo evidências científicas e argumentos sóciopolíticos no livro A infância no Brasil em Transformação (Petrópolis, Vozes, 1973).

A notoriedade de Aguinaldo N. Marques vem desde a publicação do clássico livro Fundamentos do Nacionalismo (São Paulo, Fulgor, 1960).

O lançamento da obra repercutiu em todo o país, obtendo escassa difusão em sua terra natal. Vivíamos, naquela conjuntura, uma exacerbação de ânimos políticos, como conseqüência da guerra fria, o que explica a cortina de silêncio em torno desse livro e dos posteriores, inclusive Origens & trajetória do socialismo (Rio de Janeiro, BVZ Edições, 1995).

Não se deixando abater pelo conformismo, Aguinaldo reconhece as dificuldades atuais: - “Os pesarosos acontecimentos dos últimos anos demonstraram até onde fomos. Quando um povo perde sua faculdade de indignação, está arruinado. Não é entretanto impossível a nossa reafirmação e isto podemos fazer. Outros povos já o fizeram.”

Luitgarde Cavalcanti Barros


Luitgarde Cavalcanti Barros (1941) encarna perfeitamente o ethos da diáspora nordestina. Atuando como cientista social, transita com desenvoltura entre a antropologia e a psicologia social; cruza os caminhos que interligam a sociologia e a política. Sua história de vida foi marcada por episódios dolorosos, que em certo sentido inspiraram os objetos que pesquisou em universidades do Rio de Janeiro.

Autora de obra densa, polêmica e multifacetada, ela vem privilegiando três eixos temáticos: violência, religiosidade e intelectualidade, cujo lócus é o território caeté.

Seu livro de maior impacto é sem dúvida Lampião e Nazarenos (Rio, Mauad, 2ª. ed., 2007), onde presta relevante serviço à memória nacional, desmistificando o suposto heroísmo do bando de Lampião.

Antes disso, Luitgarde havia comprovado sua capacidade de pesquisadora acadêmica, publicando o livro A terra da mãe de Deus (Rio, Francisco Alves, 1988), percorrendo o universo místico erigido pelo Padre Cícero Romão Batista, vítima dos poderosos da época, mas entronizado como “santo” pelos miseráveis e fanáticos que peregrinam ao Juazeiro.

Ela reafirma tal habilidade ao reconstituir a trajetória de intelectuais alagoanos tragados pela amnésia coletiva e pelo silencio dos seus conterrâneos.

Em Octávio Brandão, centenário de um militante na memória do Rio de Janeiro (Rio, UERJ, 1996), reencontra o visionário que “fazia parte” do seu “imaginário há muitos anos”, falando sem sotaque, mesmo depois de expatriado em Moscou por muitos anos, “como se nunca tivesse saído de Alagoas”.

Em Arthur Ramos e as dinâmicas sociais do seu tempo (Maceió, Edufal, 2ª. ed. 2005), documenta o “mundo fascinante em que viveu o médico e antropólogo, que faleceu no exílio, em Paris, quando ocupava o cargo de Diretor da Divisão de Ciências Sociais da UNESCO.

Em plena maturidade intelectual, Luitgarde vem percorrendo novas veredas cognitivas, que certamente vão ensejar futuras publicações.


Quem é Marques de Melo?

Nascido em Palmeira dos Índios, José Marques de Melo cresceu em Santana do Ipanema, iniciando sua carreira como jornalista, há 50 anos, em Maceió.. Graduou-se em Jornalismo e Direito no Recife, mas fez pós-graduação no centro internacional de estudos de jornalismo mantido pela UNESCO na cidade de Quito, Equador. Completou a formação acadêmica na Universidade de São Paulo, onde defendeu sua tese, tornando-se o primeiro doutor em Jornalismo diplomado por universidade brasileira. Realizou programas de pós-doutorado nas universidades de Wisconsin (EUA) e Complutense (Espanha), publicando meia centena de livros e duas centenas de artigos. Foi agraciado, em 2003, com o título de Doutor Honoris Causa pela UFAL e homenageado, em 2009, como Patrono da IV Bienal Internacional do Livro de Alagoas.

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