METAMORFOSE DO ESPAÇO SERTANEJO: SIGNOS EVIDENTES NA MEMÓRIA CULTURAL DE SANTANA DO IPANEMA

Outras Peças Literárias

José Marques de Melo

Confluência simbólica

Cidade alagoana que tipifica nitidamente a pujança da vida sertaneja, Santana do Ipanema caracteriza-se como espaço de confluência simbólica.

O confinamento a que foi condicionada pela geografia, sem dispor de fontes naturais de água potável, converteu sua agricultura em atividade de risco, ensejando colheitas incertas, sujeitas a chuvas e estiagens. Por isso mesmo, a economia foi semeada em território irrigado pelo comércio, gerando fluxos permanentes de mercadorias e mercadores.

Desta maneira, sua história favoreceu a germinação de uma cultura mestiça, matizada pela diversidade de signos, oriundos das zonas de influência sócio-cultural donde chegam as manufaturas consumidas e por onde transitam os produtos gerados na sociedade.

Memória cultural

Trata-se, portanto, de um amálgama cultural, em constante mudança, sem prejuízo de tradições preservadas pelas gerações nativas ou adotivas. Esse emaranhado de ícones vem sofrendo descontinuidades, como reflexo das inovações carreadas pelos contingentes migratórios.

A memória cultural santanense está devidamente registrada na literatura produzida por três dos seus intelectuais emblemáticos: a ficção de Breno Accioly cobre satisfatoriamente o período 1900-1930, o memorialismo de Oscar Silva dá conta do período 1930-1950 e o ensaismo de Tadeu Rocha resgata as conjunturas que vão de 1940 a 1960.

Mas quem quiser discernir as fases correspondentes à segunda metade do século XX terá necessariamente que enveredar pelo jornalismo de Djalma de Melo Carvalho. Desde 1959, ele comparece regularmente às páginas da imprensa de Maceió, relatando episódios que vivenciou ou foram assimilados através da narrativa de terceiros. Reunidos sob a forma de livros, tais registros constituem uma obra estimada em meia dúzia de volumes, lidos e apreciados pela comunidade hoje aglutinada às margens do Ipanema.

Intelectual rurbano

Nascido em 1938, Djalma Carvalho viveu na roça até os 15 anos de idade, mudando-se para a cidade afim de completar o curso primário. Presta o exame de admissão ao Ginásio Santana, posteriormente cursando contabilidade na Escola de Comércio Santo Thomaz de Aquino. Faz concurso para o Banco do Brasil, onde desenvolve ascendente carreira, no período 1961-1991, aposentando-se como gerente geral da agência de Santana do Ipanema. Mas continuou a estudar, graduando-se em Direito pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió (Cesmac – 1980).

A publicação de matérias assinadas, nas páginas dos jornais alagoanos, garantiu o seu registro como jornalista-colaborador (Mtb 246/85-AL) e o ingresso na Associação Alagoana de Imprensa (AAI). Tornou-se depois sócio honorário do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas e membro da Academia Maceioense de Letras.

Funcionário aposentado do Banco do Brasil, reside hoje em Maceió, onde publicou os seguintes títulos: Festas de Santana (1977), e Caminhada (1994), bem como a sequência Chuviscos de Prata (2000), Chuvas Passageiras (2004), Chuvas do Gravatá (2007) e Ventos e Trovoadas (2009). É também co-autor de duas coletâneas editadas em Santana do Ipanema: À Sombra do Umbuzeiro (2008) e À Sombra do Juazeiro (2009). Trata-se de obras publicadas pela Editora Maltanet, onde o autor mantém uma coluna digital, comentando fatos ocorridos em Santana do Ipanema ou de interesse da comunidade local.


Hegemonia, contra-hegemonia

Festejando o seu “triunfo literário”, Luiz Nogueira Barros, hoje o secretário perpétuo do Instituto Histórico e Geográfico Alagoano, mas que, nos anos 50, habitou o espaço santanense, proclama que Djalma de Melo Carvalho “já pode ser lido e reconhecido pelos seus contemporâneos”.

Seu argumento é o seguinte: o autor nascido em Santana do Ipanema, “cidade que sempre viveu tutelada pelos fenômenos da natureza”, não se limita aos “heróis e heroínas da casta dominante”, resgatando de forma “linear” a “pequena tragédia” dos “heróis-párias, por vezes trágicos e por vezes ridículos”.


Essa tese contrasta com o julgamento feito por Divaldo Suruagy, em 1977, ao prefaciar o livro de estréia de Djalma de Melo Carvalho, louvando a sua recusa ao papel de “pretensioso historiador” para retratar “com maestria os fatos picarescos e hilariantes da sua comunidade.” E não hesita em tipificá-lo, na galeria literária, como um “sério contador de histórias” capaz de aguçar a imaginação do leitor. Exalta sua postura como “talentoso escriba, minucioso e mestre na faceirice da linguagem popular”, sem menosprezar o “aspecto mais sério da vida santanense”.

Apesar da autoridade desfrutada pelo ilustre membro da Academia Alagoana de Letras, torna-se verossímel a tese sustentada pelo historiador Nogueira Barros, permitindo identificar o escritor Djalma de Melo Carvalho como fonte relevante para quem quiser compreender e interpretar a riqueza da nossa cultura municipal. A revisão crítica da sua obra publicada traz evidências suficientes para justificar essa opção.

Contradições sociais

Esta é a razão pelo qual, em artigo sobre a diáspora intelectual santanense, publicado na seção Espaço, editada por Luiz Sávio de Almeida, em O Jornal (Maceió, 6/9/2009), qualifiquei Djalma Carvalho como legatário do acervo desvelado por Oscar Silva, protótipo dos nossos intelectuais contra-hegemônicos.

Seu mérito principal é justamente o de haver ultrapassado o universo elitista da cultura erigida na matriz, no comércio e nos sobrados, tarefa a que se dedicaram, com esmero, intelectuais orgânicos como Valdemar Lima e Tadeu Rocha. A narrativa por ele construída, durante meio século, mapeia o universo da nossa cultura popular. Incorporando relatos de protagonistas situados na periferia da nossa cidade, ou melhor, nos botecos, feiras, bordéis, becos e esquinas, o escritor dá vida a pessoas que se assumem como sujeitos da sua própria História.

Se, nos tempos de Oscar, era ostensiva a distância entre ricos e pobres, na época de Djalma a malha social apresentava-se matizada pela emergência da classe média, segmento que ele representa sensivelmente. Não obstante freqüente a alta roda, cooptado pela ascensão educacional e pelo avanço profissional, não desdenha, nem tampouco evita, os espaços cultivados pelos humildes ou subalternos.

Da mesma forma, não minimiza o protagonismo dos nossos escritores contra-hegemônicos. Sem deixar de render homenagens, na abertura do seu livro de estréia (1977), ao historiador Tadeu Rocha, nosso “príncipe dos intelectuais”, enaltece, na obra em que celebra sua caminhada, ou melhor, sua ascensão social (1994), os méritos do “subalterno” Oscar Silva. Mais adiante, respinga “chuviscos de prata” (2000) sobre o “subversivo” Aguinaldo Nepomuceno Marques, reconhecendo-o como “homem de esquerda, progressista” e descrevendo suas “trajetórias ao socialismo”.

Festejos e diversões

O livro Festas de Santana (1977) já contém signos evidentes dessa atitude pluralista assumida por Djalma de Melo Carvalho, que expressa tanto as maneiras de ver, sentir e agir dos que mandam quanto os acenos codificados astuciosamente pelos que obedecem, numa sociedade de classes.

Se os textos “O patriarca da cidade”, “Velho casarão”, “A deposição do prefeito”, “Festas de Santana” e “Em tempo de retretas” dão conta da vida cotidiana dos poderosos e privilegiados, por sua vez, os capítulos intitulados “O contador de histórias”, “Bar do Tonho”, “Cantadores e violeiros”, “Evocação” e “O circo chegou” reproduzem situações vividas pelos estratos que transitam nos socavões da sociedade ou nos seus lugares malditos.

Quais são as personagens do primeiro bloco ? O Padre Bulhões, símbolo maior do poder sagrado; os Professores do Ginásio Santana, considerados os arautos do poder cognitivo; os Políticos que manejam as engrenagens do poder estatal; os Comerciantes e os Congregados, responsáveis pelo culto estamental à Padroeira; os Maestros e Músicos, que executam os acordes preferdos pelos iniciados nos meandros da arte erudita.

Quem compõe o segundo bloco ? Os poetas, boêmios, pinguços, artífices, saltimbancos, raparigueiros, entre outros do mesmo naipe. Em síntese, os que exercem funções obedientes ou praticam ofícios situados ao rés do chão.

Notáveis e bestificados

Em Caminhada (1994) opera-se a mesma dissonância simbólica, evocando personalidades bem nascidas e bem sucedidas na vida, mas também destacando os artesãos, os mascates e os biscateiros, “bestificados” diante das ações empreendidas pelos que “fazem” a História local. Não deixam de aparecer também personagens que atuam no meio do campo, transitando entre um segmento e outro.

Os figurões estão simbolizados pelos educadores João Yoyô, Alberto Agra e Mileno Ferreira, pelo vereador Abdon Marques, pela atriz Albertina Agra, pelo maestro Joel Tavares, pelo farmacêutico Moreninho. Os tarefeiros ou xeleléus aparecem sob a roupagem do topógrafo Bilu, do fotógrafo Zezinho, do faz-tudo Dionísio, do jogador Índio, do soldado Hortêncio ou da esmoler Mirindão.

Na coluna do meio, denotando mobilidade social, aparecem exemplos colecionados pelo próprio narrador, pertencente a uma família de agricultores remediados que prosperou nas sendas do comércio ou do setor terciário. Depois de evocar a mãe Lila e a avó Bilia, bem como os tios Zeca e Zé Constantino, descreve as proezas dos seus colegas bancários, fomentando as atividades produtivas. Resgata ainda as aventuras dos seus companheiros de turismo, ativos e inativos, porém munidos de talões de cheque que lastreiam andanças pelo circuito cultural do outrora chamado Velho Mundo.

Argonautas e internautas

As mais recentes obras de Djalma de Melo Carvalho, todas elas publicadas no século XXI, são reiterativas das anteriores, porém focalizando o universo hídrico que caracteriza o sertão glocal, estabelecendo uma ponte discursiva entre o polígono das secas e a sociedade irrigada pela informática. Desta maneira, seus escritos reificam a lenda do sertão que vira mar, transitando entre a aldeia e o planeta, entre a província e a metrópole, entre o mutismo retórico e a algaravia da rede conectada.

Chuviscos de Prata (2000), Chuvas Passageiras (2004), Chuvas do Gravatá (2007) e Ventos e Trovoadas (2009) enfeixam memoráveis relatos poéticos. Atestando em prosa a maturidade intelectual do menino “vindo de um sítio” e “sonhando ser escritor”, que afinal “domina a arte de escrever” registram as “lembranças do que foi lido” (Luiz Nogueira Barros, 2003).

Apetrechado por sedutor guarda-chuva discursivo, naturalmente enriquecendo a “literatura alagoana” (Tobias Medeiros, 2003), o escritor santanense prepara-se para alçar vôos por mares nunca dantes navegados.

Na atualidade, Djalma de Melo Carvalho está perfilando o papel de agente de ligação entre duas gerações.

De um lado, a geração dos argonautas, bloco que tem por abre-alas o fora-de-série Breno Accioly, cuja comissão de frente é formada pelo trio pioneiro, Valdemar, Oscar e Tadeu.

Do outro lado, a geração dos internautas, pilotada pelo intrépido José Malta Neto, oferecendo abrigo, entre a “sombra” do Umbuzeiro e do Juazeiro, aos novíssimos escritores santanenses.

O fundador do Portal Maltanet concedeu a Djalma de Melo Carvalho o privilégio de abrir a série de coletâneas que começa a editar, selecionando duas crônicas emblemáticas.

Uma sobre o patrimônio cultural da humanidade, simbolizado pela histórica cidade de Coimbra, fonte da cultura brasileira que embasou a mestiça cultura sertaneja e se reproduziu na singular cultura santanense .

Outra sobre a nova banda de música criada pela Prefeitura Municipal de Santana do Ipanema, com a finalidade de “difundir o gosto pela música”, despertando “talentos” e formando profissionais para o “mercado nacional”.


Sertão glocal

Trata-se de evidências que confirmam plenamente a metamorfose do espaço sertanejo, amalgamando as raízes “locais” à matriz “global”.

Com os ouvidos de “João Urso”, Breno Accioly auscultou com nitidez os gritos que ecoavam às margens do Ipanema, no início do século XX.

São os mesmos acordes que, no limiar do século XXI, a geração Djalma de Melo Carvalho preservou para estimular a trajetória dos que saboreiam os frutos agridoces do umbuzueiro.

Mas também dos que preferem encenar o ritual sagrado dos lendários fulniô, debaixo do virtual juazeiro, projetando e fortalecendo o mítico “sertão glocal”.

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Fontes

Accioly, Breno
2000 – Obra Reunida, São Paulo, Iluminuras

Barros, Luiz Nogueira
1994 – Prefácio, Caminhada, Maceió, Sergasa, p. 9-13
2003 – Orelha 2, Chuvas Passageiras, Maceió, Edufal

Fontes Neto, José Malta
2009 – Prefácio, À sombra do juazeiro, Santana do Ipanema, Portal Maltanet, p. 4-5

Medeiros, Tobias
2003 – Orelha 1, Chuvas Passageiras, Maceió, Edufal

Lima, Valdemar de Souza
1980 – O autor, Graciliano Ramos em Palmeira dos Índios, 2a. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 5-7

Marques de Melo, José
2009 – A diáspora intelectual santanense, Espaço editado por Luiz Sávio de Almeida, Caderno 2, O Jornal, Maceió, 6/9/2009.

Marques de Melo, José & Gaia, Rossana
2010 – Sertão Glocal, Maceió, EUFAL (no prelo)

Rocha, Tadeu
1964 – Modernismo e Regionalismo, Maceió, Depto. Estadual de Cultura

Silva, Oscar
1954 – Fruta de Palma, Maceió, Caetés

Suruagy, Divaldo
1977 – Prefácio, Festas de Santana, Maceió, Sergasa, p. 15-17


Glossário
Argonauta – navegador ousado, réplica dos tripulantes da nave Argos, imortalizada pela mitologia grega e pelos nossos republicanos de 1817.

Glocal – espaço híbrido que reúne signos locais, típicos da aldeia, e ícones globais, circulantes na vastidão do planeta.

Internauta – navegador convencional, típico usuário da internet.

Rurbano – categoria social composta por pessoas em transição cultural, vindas da zona rural; habitando a periferia urbana, sem perder inteiramente sua identidade nativa, assimila valores da terra adotiva.


O que faz Marques de Melo?
O intelectual alagoano José Marques de Melo integrou o corpo docente fundador da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde defendeu a primeira tese de doutorado em Jornalismo no Brasil. Como professor emérito daquela instituição, ocupa lugar de destaque na vanguarda das ciências da comunicação, tendo sido escolhido pelo Ministro Fernando Haddad para presidir, no MEC, a comissão nacional que elaborou as novas diretrizes curriculares para o Curso de Jornalismo. É autor de obra acadêmica composta por meia centena de livros que circulam nas universidades do país e do exterior. Atualmente dirige a Cátedra UNESCO de Comunicação, mantida pela Universidade Metodista de São Paulo e preside a Confederação Ibero-Americana de Associações de Ciências da Comunicação. Até os 15 anos de idade viveu em Santana do Ipanema, onde fez os estudos de primeiro grau, no Grupo Escolar Padre Francisco Correia e no Ginásio Santana. Nessa comunidade, a UFAL instala o pólo de economia e gestão do Campus Sertão, compartilhado com a também sertaneja cidade de Delmiro Gouveia. Para celebrar os 60 anos de fundação do Ginásio Santana e comemorar a chegada da UFAL na região, o Professor Marques de Melo, em parceria com a professora Rossana Gaia, mobilizou uma plêiade de escritores caetés para resgatar a trajetória cultural do sertão alagoano, tendo Santana do Ipanema como referente histórico. Com prefácio da reitora Ana Dayse Resende Dorea e prólogo do humanista Luiz Sávio de Almeida, a obra tem o título Sertão Glocal – um mar de idéias brota às margens do Ipanema. Os originais dessa coletânea estão sob os cuidados da equipe liderada pela Professora Sheila Diab Maluf, diretora da EDUFAL, que anunciará o seu lançamento no circuito universitário.
Umas poucas palavras

Luis Savio de Almeida
Marques Melo é um homem de expressão internacional, sendo fantástico o fato de não conseguido tirar os pés da beira do Panema e especialmente do Camoxinga. É uma espécie de migrante nordestino que faz o tradicional traçado do caminho posto por Zé Dantas, Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga. Vez em quando se dá a volta da Asa Branca, afinal de contas “já faz três noite que por norte relampeia”. Aí fica uma espécie de vai-vém de si mesmo ou a montagem de um dom difícil de ser encontrado: a ubiquidade.
No meio de tudo isto, o mais importante, é que o Marques jamais transformou sua pequena cidade em coisa menor, um objeto menor e vem se dedicando à montagem de uma visão sui generis para Alagoas que, à falta de melhor termo, vamos chamar de a discussão sobre a inteligência local. Aliás, nesta aventura andamos juntos e tudo – nesta juntada - começou na esticada de um almoço. Posteriormente, veio um seu artigo já publicado em Espaço, depois o livro que organizou sobre Santana e, agora, com este texto sobre Djalma Carvalho, um incansável escrevinhador sobre a vida de sua cidade, uma das formas de se ter a memória registrada, ligando recortes pessoais da vida ao futuro.
Espaço desejaria divulgar constantemente exercícios de memória e se encontra à disposição de todo aquele que procure os seus caminhos de vida e gerando o registro de suas lembranças em todos os nossos municípios. Tenho certeza de que o Marques pensa da mesma forma, tanto que está ajudando a convencer ao Audálio Dantas a escrever sobre o que seria a sua Tanque d’Arca.
Se as Secretarias de Cultura dos diversos municípios decidissem aproveitar o Espaço e trazer a lembrança da vida de seus conterrâneos, escritas por seu intelectuais, Espaço agradeceria;

Fonte: O Jornal. Maceió. 7/3/2010 (Caderno Espaço, p. 2-3)

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