Colocou uma bacia com vinagre em cima do apoio do tanque, pôs água para ferver num caldeirão, escolheu a galinha no quintal, e ela mesma foi buscá-la. Pela primeira vez, atreveu-se. Segurou-a, desajeitada, se esforçando pra mostrar-se a mim, o quanto era capaz de fazer aquilo. Começou do mesmo jeito que via Analice, a mãe dela, fazer: Arrancou-lhe algumas penas do pescoço, depois bateu, dando tapinhas de leve, esperando que a coragem se impusesse, e num rompante, aproveitou quando sentiu que podia, e sem verificar o lugar, quase fechando os olhos, meteu a faca em qualquer canto do pescoço da coitada. A galinha gritou. Zilma gritou também assustada, derrubou a bacia com o vinagre, soltou a ave que se debatia e saiu correndo com a faca na mão, como se tivesse fracassado à tentativa de um assassinato. A coitada da galinha conseguiu erguer-se, o pescoço pendido dum lado, cambaleando. Ela por sua vez afligiu-se, largou a faca, arregalou os olhos miúdos por trás dos óculos, correndo dum canto a outro da cozinha sem saber o que fizesse. Passava as mãos pela testa suada, querendo prestar socorro, acudir a ave, consertar as coisas. Sofria, tentando remendar aquilo, colocar o pescoço da galinha de volta ao lugar, inteirinho e salvo. Buscava desculpar-se... Reparar o desastre. Olhava para mim, se lamentando “Que pena”! “Que pena”! “Que Deus me perdoe essa malvadeza que fiz”! Os olhos cheios de lágrimas, o coração batendo descompassado... Àquelas alturas, queria um milagre... Via na ave um ser vivo sofrendo e prestes a morrer por sua causa. Compadecida que estava, passou para mim o mesmo sentimento. Senti dó. Da galinha e dela. Saí correndo, atravessei a rua e fui chamar a empregada da casa da frente.
__Acuda Maria, que a galinha está morrendo!
__O quê?!
__A galinha!
Maria calçou os chinelos, enxugou as mãos no avental, tirou-o e saiu às pressas atravessando a avenida. Enveredou pelo caminho da cozinha, curiosa, e quando deparou com a cena, se ria e eu tinha raiva dela não ter pena do sofrimento alheio. Como pode alguém rir-se em ver aquela tragédia? Que graça tinha aquilo?
Bem dizia Chico, acocorado num canto de parede: “Pimenta no “fundio” dos outros minha “cumade” é refresco” E a “cumade” parecendo entretida, sem tirar os olhos da atividade, debulhando feijão-de-corda... “Aquilo que a gente não quer pra gente, não dá aos outros, compadre”.
Provérbio ia, provérbio vinha. Comadre só respondia um provérbio com outro. Chamava aquilo de "adágio popular" e compadre que não tinha lá grande vocabulário, chamava de "No-dizer-dos-mais-velhos". Em horas como essas, o vai-e-vem das palavras choviam. Uma chuva interminável, fina, de flores miudinhas, que brotavam vertiginosamente das telhas e iam caindo, caindo, forrando o chão de sabedoria, enquanto eles trocavam provérbios... Findas as palavras, o telhado parava a chuva por dentro da casa, suspendia tudo quando era flor, mas o chão ficava coberto delas, a gente pisando, o aroma subindo, entrando pelas narinas. Convertiam-se numa lama de palavras e de letras boas, para ensinar a alma.
Maria segurou a galinha, e num movimento certeiro e rápido, torceu o pescoço dela. Soltei um gritinho de surpresa e desapontamento. Zilma refez-se: "Ai, ai... nunca mais outra dessas"! Conformou-se que galinha é galinha, que não tinha outro jeito senão aquele, para acabar com aquilo. Protestei porque achei seu proceder leviano: "Dessa galinha, não como"! Maria se ria me chamando de besta. "Besta é você"!
Ela foi saindo e eu fiquei procurando na memória, um provérbio para falar, porque eu não tinha jeito com as minhas próprias palavras, quando ia dizer o que sentia. Corri. Maria ia pelo meio da praça. Gritei:
__Ô Maria! "Quem ri por último, ri melhor"!
Ela olhou pra mim, fez careta e disse:
__ “Nada melhor do que um dia atrás do outro, e uma noite no meio"! “Ô mulherzinha besta”!
Lá dentro, Zilma já arrancava as penas da galinha amolecidas na água quente. "Ui, que estou queimando os dedos"! Depois amolou a faca. “Corra menina, venha ver”! “Você já viu uma galinha por dentro”? Estava tão refeita de tudo que me ofendia... Zilma estava refeita demais, tão harmoniosa novamente, que me desconsertava e ofendia. Se Chico estivesse aqui, se a comadre dele não estivesse passeando pelo Rio de Janeiro naqueles dias, eu amansaria, me sentiria menos atingida. Os dois se poriam a trocar adágios, a respeito do fato, e eu, escutando, justificaria a minha pena... Teria pano pras mangas...
Olhei para o chão cheio de penas espalhadas. Era preciso varrer, juntar, apanhar, sumir com elas.
"Corra menina, venha ver o fel da galinha como é! Isso aqui se estourar, bota a galinha a perder. Fica tudo amargando"!
A pena de cada um é de um jeito!
A pena de Zilma era tão fácil de enganar. Tão vulnerável! Ia embora num instante! A minha não!
Maceió, junho/2006
Conto Publicado em 04/06/06
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