MANTA

Contos

Maria Goretti Brandão

Mal o sol ameaça aparecer, o galo já começa a cantar com toda a força, anunciando o dia. A mulher pula da cama, enfia os pés nos chinelos e passa a mão nos cabelos assanhados, tentando arrumá-los. Num gesto automático, se benze, fazendo o “pelo sinal” e começa a rezar; “Oh Virgem Santíssima não permitais, que eu viva nem morra em pecado mortal...” Depois, em cauteloso silêncio, para não acordar ninguém e não desperdiçar esta hora que é só sua vai ao banheiro, escova os dentes, lava o rosto e fica com ele molhado, porque leu na revista Seleções; que recebe pelo correio todos os meses; que não se deve esfregar a toalha no rosto, que estraga a pele. Ela, porém, faz melhor; não o enxuga nem de leve, para ver se consegue mantê-la por mais algum tempo, assim como está. Vaidosa, se olha sem pressa no espelho. Tenta ver se melhora o queixo duplo disfarçando as papadas, como ela mesma diz, usando os polegares em movimentos que começam da base do queixo até o pescoço. Faz isso diversas vezes. Pensando bem, não se lembra em que outra revista foi, mas leu sobre os milagres que pequenos exercícios diários podem fazer em benefício das mulheres. Observa atentamente as pálpebras enrugadas e em voz baixinha, quase inaudível, desabafa consigo mesma: ”O que não gosto na velhice, é estas pregas e babados, que a gente não sabe o que fazer com eles...”. Pondera acerca da liberdade que a idade lhe trouxe, o que considera um fato extraordinário e cheio de vantagens, e quase conformada resigna-se, como faz todos os dias, sempre a esta mesma hora.
Vai até a cozinha, acende o fogo, coloca a água para fazer o café, molha a farinha de milho para fazer o cuscus e deixa descansar. Caminha em passos curtos e ligeiros, em direção à porta do quintal. Está na hora de abri-la. Coloca-se escondida por trás dela e bem devagarzinho, como quem está de sobreaviso, vai deixando o primeiro ar entrar, sem ter contato com ela. O primeiro ar é perigoso! Pode trazer a tuberculose e não adianta dizer que isto é crendice tola, que a tuberculose já tem cura, que ela sabe, “ninguém pense que sou maluca, não...” Mas, por via das dúvidas, conserva os seus rituais. “O que não faz mal, faz bem...” __ “O que é que tem abrir a porta assim? Incomoda? Incomoda?”. Convencida de que o ar já passou, percorre o quintal todo com os olhos miúdos. Conta as galinhas, olha o galo, os cágados e as telhas quebradas dos quartinhos lá dos fundos. Precisa tomar providências antes do inverno chegar!. Fora disso, está tudo em paz... Hoje já é quinta-feira! Ai, ai meu Deus! Destaca do almanaque, a folhinha do dia vencido e lê a mensagem do dia iniciado, em voz alta, dando ênfase às palavras para convencer-se a si mesma a acreditar no que está escrito. Mas até agora, nunca perdeu tempo desconfiando das coisas que são boas e das que fazem bem. Sempre acreditou nelas. Mas também não é besta! Sabe a diferença entre o que é certo e o que é errado. Faz caridade, mas não dá esmola de dinheiro a mendigo bêbado, não tolera quem coloca apelidos nos outros; que é coisa de quem não tem educação. Não gosta de charadas; que é coisa de gente sem personalidade. O que tem de dizer, diz logo: é, Sim, sim. Não, não. Tem paciência, mas não tolera a insensata teimosia do afilhado, um matuto grosseirão, que chega todo dia de segunda-feira e acende o charuto fedorento dele. Aí já viu, perde as estribeiras, manda mesmo pouquíssima reserva de tolerância às favas e ordena cheia de direitos, que ele apague o charuto na mesma hora, "isto faz mal a você e aos outros!". Na casa dela, quem manda é ela.
Agora mesmo escutou a chaleira que anuncia que a água está fervendo. Quase ao mesmo tempo lá no quintal as galinhas se alvoroçam numa histeria medonha fazendo barulho. Diligente, ela côa o café, bota milho para as galinhas, e leva o cuscus ao fogo para cozinhar. Caminha pra lá e pra cá, fazendo tudo ao mesmo tempo. Quando o cuscus começar a cheirar é porque está bom! Enfim, fiscaliza o próprio trabalho e alegre de si, dá-se por satisfeita. Vai então se sentar numa cadeira de balanço que tem lá na copa. Fica séria, pega a Bíblia em cima da mesa, abre e se compenetra. Começa a ler. Aos poucos vai assumindo uma expressão de infinita tranqüilidade. Vez por outra, balança a cabeça afirmativamente, concordando com o que está lendo e esboça um meio sorriso que se alonga para os cantos da boca. Parece mergulhada em outro mundo, um mundo que lhe justifica os afazeres domésticos repetidos, as asperezas do cotidiano, as marcas do seu evidenciado envelhecimento e talvez, a resposta ás perguntas, para todos os mistérios da vida.


Maceió, agosto/2005.

Conto Publicado em 11/06/06

Comentários