Aquele domingo parecia igual a tantos outros! Acordei cedo. Mas, sabe daquelas coisas que nos acossam sem nos dar trégua? Esse fato foi um deles! Há dias vinham imaginando esse momento. Peguei o carro e segui a estrada ruma a Lagoa da Canoa. Íamos para a fazenda de um amigo e, de lá, ia desvendar algo que me atormentava o pensamento naqueles dias. No caminho, a estrada estava deserta. Algumas árvores se apresentavam rapidamente. Ao longe, um flamboyant em plena florada, solitariamente se apresentava exuberante! Passamos por Lagoa da Canoa e nos dirigimos para a zona rural pela estrada vicinal de piçarra, cuja poeira amarelada se misturava com o intenso brilho do sol vespertino. Na primeira curva, cruzamos os trilhos rurais, pois os trilhos urbanos são de Caetano Veloso. É o título de uma composição. Deixe-me explicar: A região de Lagoa da Canoa é cortada pela velha estrada de ferro desativada que termina em Porto Real de Colégio, na divisa dos estados de Alagoas e Sergipe. Lembrei-me que por ali, na infância, passei algumas vezes com a minha mãe viajando para Própria. E agora, estava ali, diante do passado e futuro ao mesmo tempo. A gente saia de Palmeira dos Índios com destino a Porto Real, de trem, e de lá seguia de canoa, atravessando o Rio São Francisco. Naquela época não havia a ponte.
A poeira se avolumava a cada curva. A cada metro percorrido minha cabeça ia imaginando o que dizer quando chegasse ao meu destino. Passei a recordar o porquê daquela viagem! Durante as comemorações da festa da padroeira N.Sra. da Conceição, um amigo, sem ter nem pra quê, confidenciou-me que conhecia um rapaz deficiente mental que morava na sua região, do Sítio Jenipapo, que vivia acorrentado. -O quê, perguntei surpreso! Como é possível que alguém ainda viva nessas condições!! Mas ele asseverou: -É verdade! Posso levar você para ver! Depois disso não tive mais sossego. Como é que pode uma coisa dessas, pensei comigo! Tenho que fazer alguma coisa para constatar a veracidade das informações. E assim, passei dias tentando obter dados que me fizessem chegar àquela família. Mais uma curva e atravessamos mais uma vez os trilhos rurais e a lembrança do trem Maria Fumaça. O calor era intenso!
Chegamos ao Sítio Jenipapo onde moravam D. Maria e Seu José. Cheguei devagar, perguntando se havia um rapaz que tinha problemas de saúde e pedi autorização para vê-lo. Seu José olhou pra mim meio desconfiado, porém consentiu e me convidou para adentrar à casa. Dona Maria também se apresentou. Da sala, chamou o Carlinhos para eu conhecer. Carlos tem 25 anos e, em decorrência de problemas mentais genéticos ou congênitos; não falava, não ouvia e não tinha convivência social, exceto a família. Puxa vida! Isso me deu uma tristeza, um aperto no peito, que não encontrei nenhuma palavra para descrever aquela situação. A natureza fora-lhe impiedosa! Que fatalidade! Carlos dirigiu-se pra mim e me cumprimentou pegando na minha mão. Eu estava diante de um homem puro, pois embora ele não tenha consciência disso, presumo, não fora contaminado pela sujeira da nossa sociedade decadente.
O Carlos é totalmente inquieto: fica divagando de um lado para o outro, sem trégua. Vive frequentemente sobre efeitos de medicamentos. Nunca teve nenhuma ajuda psico-social. A sociedade deve-lhe muito. Sua mãe, D. Maria afirmou que sente um amor sem fim por ele. Preocupa-se, pois se morrer antes dele, quem o assistirá? Disse-lhe, na minha insignificância, parodiando um autor de um conto que li há algum tempo que “ao homem não é permitido conhecer o que lhe será dado”. Portando, não se preocupasse! Afinal, não havia chegado o momento. Acho que D. Maria não entendeu nada do que lhe falei, nem fiz questão de explicar mais nada. Só eu sabia a que estava me referindo...
Seu Pai, vendo nossa intenção de ajudar, foi discorrendo outras revelações. Afirmou que a casa era pequena e que não era cercada por muro. O Carlos, frequentemente inquieto e saindo a todo instante da casa, poderia se perder nas estradas ou mesmo ser atropelado. Por essa razão, os pais acorrentaram-no ao tronco de uma mangueira para que ela não saísse. Em virtude disso, chegou a ser denunciado na delegacia de polícia da cidade por maus tratos ao jovem, tendo que responder inquérito policial. Agora, a situação havia melhorado, pois construíra um muro em redor da casa e o Carlos não precisava mais ser amarrado. Ficava livre nas cercanias. Não me cabe fazer nenhum juízo de valor do caso! Aprendi mais uma lição: Para se julgar uma pessoa e seus atos, faz-se mister que se tenha iguais princípios! Ao vê-lo pude refletir sobre a vida a sua importância. Será que temos alguma razão para ficar reclamando das coisas? Imagine-se sem poder ouvir ou falar durante toda a existência? Não importa se se tem ou não consciência disso. A verdade é que temos uma dívida social para com o Carlos. É direito constitucional do cidadão, mesmos os excepcionais, condições dignas de vida. Nunca alguém me disse tanto sobre a alegria de viver e o sofrimento, sem ter falado uma palavra sequer... Na saída, ainda meio pensativo, olhei ao derredor e vi uma árvore morta, cujo resto de tronco seco ainda permanecia fincado ao chão, denunciando que outrora fora uma árvore frondosa. Cheguei mais perto! Imediatamente o vento, o sol e a sombra acalentados pelo entardecer, associaram-se a esperança e, num segundo, agruparam-se ao tronco e seus galhos formando uma imagem de Cristo Crucificado anunciando a ressurreição. O céu me revelou mais um segredo...
Arapiraca-AL, Março/2007
Conto Publicado em 02/04/2007
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