Quero iniciar esta crônica ressaltando que não gosto da folia momesca, por opção, porém não desaprovo aqueles que gostam, uma vez que a tradição está incutida nos genes de muitas pessoas.
Resolvi, no período do Carnaval de 2020, mergulhar no mundo da leitura/literatura, e o que se apresentou para mim, no momento, foi a conclusão do livro “CAETÉS” do imortal Graciliano Ramos, o qual já havia iniciado a leitura. A obra foi editada pela Livraria Martins Editora S.A., em convênio com o Instituto Nacional do Livro/MEC – 11ª Edição – 1973.
Queridos leitores, concluí na terça-feira, quase na quarta-feira ingrata para alguns.
De posse de um bom dicionário eletrônico, para facilitar a pesquisa, pois ler o irreprochável Graça é uma tarefa que requer muitas pesquisas ao “pai dos inteligentes”. Desconsidero a expressão “pai dos burros”, asseverada por alguns. As palavras, na sua maioria, estão em desuso, o que é necessária a compreensão, senão as expressões ficam arrevesadas.
Fiquei encantado com riqueza de detalhes que o nosso Graciliano coloca na sua obra e a perspicácia do enredo. Numa bucólica cidade do interior de Alagoas – Palmeira dos Índios – mediante os detalhes das ruas e situações em locais, como: uma hospedaria, redação de um hebdomadário, visitas em casas de amigos para um jogo e xadrez, ou locais de diversões, toda a trama do romance foi feita.
As palavras difíceis que o autor colocou na obra, e que aqui introduzo algumas, acredito que foi de propósito, pois em algumas situações, ele, com seu bom gosto na coerência, apresenta o sinônimo para não incorrer no erro.
Consegue descrever situações num formato bem diferente: “ […] Padre Atanásio pôs a estola sôbre minha mão e a de Luísa, os meninos cresceram, gordos, vermelhos, dois machos e duas fêmeas.[…] (p. 40grifo meu)
Toda a narrativa gira em torno de João Valério – um guarda-livros da pequena cidade, personagem central, e seu amor proibido pela jovem Luísa, mulher casada. A história é contada por ele, João Valério, em primeira pessoa. Para justificar minha tese de que o palavreado é para atiçar o conhecimento dos leitores, vejam como ele começa: “Luísa quis mostrar-me uma passagem no livro que lia. Curvou-se. Não me contive e dei-lhe dois beijos no cachaço. Ela ergueu-se indignada:” […] (grifo e destaque meus).
Graciliano brinca com a sua condição de escritor, destacando parte do seu tempo para a produção do seu romance “CAETÉS”, sua pretensão era narrar a história da tribo indígena dessa etnia, sem menor conhecimento da história. Vejam como ele brinca com a otografia! “Corrigi os erros, pus um enfeite a mais na barriga de um caboclo, cortei dois advérbios – e passei meia hora com a pena suspensa. Nada. Paciência. Quem esperou cinco anos pode esperar mais um dia. Atirei os papéis à gaveta”. (p. 39 – grifo meu).
Em quase todo o livro, aquele beijo inicial torturava a consciência de João Velerio e, nesse inusitado dilema, pois o beijo não foi deveras escandaloso, a história se desenvolveu e os diálogos aconteceram, instigando ao roteiro do livro.
Na redação da Semana – espécie de jornal semanal, muitas cavaqueiras aconteceram e muitos assuntos foram discutidos, entre eles, a política, tema que Velho Graça era arredio. Vejamos uma passagem que o autor dá uma aula de português. Para os estudantes de Letras este é um bom texto.
“Enquanto as senhoras escolhiam, aproximei-me de Isidoro, olhei a notícia que êle preparava: “ Deu-nos o prazer da sua encantadora visita a senhorita Josefa Teixeira, dileta filha do abastardo comerciante e nosso particular amigo Vitorino Teixeira, que nos encantou em deliciosa palestra com os sublimados dotes do seu espírito.”
O noticiarista levantou a pena e atirou-me ao ouvido:
– Êstes sublimadosaqui não está mau, hem?
– Está ótimo. Está igual ao Camões. Mas como você fêz, parece que a conversa foi com o Vitorino.
– Ora essa! Realmente, exclamou Isidoro desapontado. Desmanchar tudo!
Não é preciso, sussurrou o Padre Atanásio, que se acercara, lera o período. Deite um ponto no Vitorino Teixeira, corte o que e meta depois A visitante. Pronto. A visitante sem vírgula, é melhor sem vírgula.
Louvei sinceramente a inteligência de Padre Atanásio e aconselhei também.
– Acho bom suprimir o encantou, que já há uma encantadora atrás. Ponha cativou fica esplêndido. E a senhorita, risque a senhorita, para não rimar com visita. Escreva D. Josefa Teixeira, como nós a chamamos. Deixe a senhorita para a outra.” (p. 86 – grifos meus, destaques originais)
Vejamos agora como ficou o texto depois das sugestões: “Deu-nos o prazer da sua encantadora visita a D. Josefa Teixeira, dileta filha do abastardo comerciante e nosso particular amigo Vitorino Teixeira. A visitante cativou em deliciosa palestra com os sublimados dotes do seu espírito.” Irreprochável não?
Em alguns momentos vemos o palavreado do Velho Graça um pouco sarcástico e chulo. Vejamos nesse diálogo: “D. Priscila desfranziu a tromba, expôs a dentuça a Clementina, achou condescendência a cidade encantadora. Olhei com agrado os beiços vermelhos de Marta, bons para morder” […] (p. 97 Grifo meu)
Já me reportei a riqueza de detalhes do autor, que deixa o leitor como se estivesse naquele tempo. Observem que expressão: […] E mostrou o pé número trinta e três, coberto de sêda creme”.[…] (p. 110 grifo e destaque meus).
Chegando do meio ao fim, o romancista mostra toda a sua criatividade para retratar o envolvimento efetivo de João Valério com Luísa, a traição, as mentiras, a morte do Adrião – esposo de Luísa e o fim do enredo. Não vou dizer o que aconteceu para que o leitor se interesse em ler esse belo livro e, assim como eu, tomar UM PORRE DE SABERES.
Por fim, peço vênia, como diz os operadores do Direito, para compartilhar com os amados leitores o capítulo final do livro “CAETÉS” a fim de aguçar a curiosidade.
Uma tarde, girando por estas ruas, parei na beira do acude, lembrei-me da estrêla vermelha e da noite em que Luísa me repeliu. Afastei-me lento, subi pelos Italianos. O casarão estava fechado agora, e as grades do jardim eram um muro verde de trepadeiras. O pequenino lago, os tinhorões, a garça de bronze, tudo invisível. Como aquilo ia longe!
Entrei a vagar pela cidade, maquinalmente, levado por uma onda de recordações. A bôca da noite achava-me na calçada da igreja. Da paisagem admirável apenas se divisavam massas confusas de serras cobertas de sombras. A estrêla vermelha brilhava à esquerda. Pareceu-me pequena, como as outras, uma estrêla comum. Comum, como as outras. E estive um dia muito tempo a contemplá-la com respeito supersticioso, contando-lhe cá de baixo os segredos do meu coração. E lamentei não ser selvagem para colocá-la entre os meus deuses e adorá-la.
O vento zumbia no fio telegráfico. À porta do Hospital de São Vicente de Paulo gente discutia. A escuridão chegou.
Não ser selvagem! Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora? Quatrocentos anos de civilização, outras raças, outros costumes. E eu disse que não sabia o que se passava na alma de um caeté! Provàvelmente o que se passa na minha, com algumas diferenças. Um caeté de olhos azuis, que fala português ruim, sabe escrituração mercantil, lê jornais, ouve missas. É isto, um caeté. Estes desejos excessivos que desaparecem bruscamente… Esta inconstância que me faz doidejar em tôrno de um sonêto incompleto, um artigo que se esquiva, um romance que não posso acabar... O hábito de vagabundear por aqui, por ali, por acolá, da pensão para o Bacurau, da Semana para a casa de Vitorino, aos domingos pelos arrabaldes; e depois dias extensos de preguiça e tédio passados no quarto, aborrecimentos sem motivo que me atiram para a cama, embrutecido e pesado... Esta inteligência confusa, pronta a receber sem exame o que lhe impingem... A timidez que me obriga a ficar cinco minutos diante de uma senhora, torcendo as mãos com angústia... Explosões súbitas de dor teatral, logo substituídas por indiferença completa… Admiração exagerada às coisas brilhantes, ao período sonoro, às miçangas literárias, o que me induz a pendurar no que escrevo adjetivos de enfeite, que depois risco…
A cidade estendia-se, lá embaixo, sob uma névoa luminosa. O vento continuava a zumbir no arame. Fazia frio. Violões passavam gemendo.
Um caeté, sem dúvida. O Pinheiro é um santo, e eu às vêzes me rio dêle, dou razão a Nazaré, que é canalha. Guardo um ódio feroz ao Neves, um ódio irracional, e dissimulo, falo com êle: a falsidade do índio. E um dia me vingarei, se puder. Passo horas escutando as histórias de Nicolau Varejão, chego a convencer-me de que são verdades, gosto de ouvi-las. Agradam-me os desregramentos da imaginação. Um caeté.
Para os lados do Xucuru, meia dúzia de luzes indecisas, espalhadas. Aquilo há pouco tempo era dos índios. Outras luzes na Lagoa, que foi uma taba. No Tanque, montes negros como piche. Ali encontraram, em escavacões, vasos de barro e pedras talhadas à feição de meia lua. Negra também, a Cafurna, onde se arrastam, miseráveis, os remanescentes da tribo que lá existiu.
Que semelhança não haverá entre mim e êles! Por que procurei os brutos de 1556 para personagens da novela que nunca pude acabar? Por que fui provocar o Dr. Castro sem motivo e tiz de um taco ivirapema para rachar-lhe a cabeça?
Um caeté. Com que facilidade esqueci a promessa feita ao Mendonça! E êste hábito de fumar imoderadamente, êste desejo súbito de embriagar-me quando experimento qualquer abalo, alegria, ou tristeza!
Se Pedro Antônio, Balbino, pobres-diabos que por aí vivem, soubessem exprimir-se, quantos pontos de contacto!
Diferenças também, é claro. Outras raças, outros costumes, quatrocentos anos. Mas no íntimo, um caeté. Um caeté descrente.
Descrente? Engano. Não há ninguém mais crédulo que eu. E esta exaltação, quase veneração, com que ouço falar em artistas que não conheço, filósofos que não sei se existiram!
Ateu! Não é verdade. Tenho passado a vida a criar deuses que morrem logo, ídolos que depois derrubo uma estrêla no céu, algumas mulheres na Terra…” (p. 237 a 239 – texto original – Grifo meu)
VIVA A LITERATURA! VIVA GRACILIANO RAMOS!
Santana do Ipanema -AL quarta-feira de cinzas, 26/02/2020 00h33min.
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