Alguns fatos do palco da vida real, ainda que distantes no tempo, guardados ficam na memória da gente. Vez por outra, ditos fatos afloram-me à lembrança, levando-me a buscá-los no fundo do baú para passá-los para o papel, desafiadoramente.
O poeta Mário Quintana, de Alegrete (RS), disse: “O passado não reconhece o seu lugar. Está sempre presente.”
Diria que se trata de passado enxerido, metido a besta, a provocar o cronista, senão o memorialista. Em fevereiro de 1952, por exemplo, quando deixei para trás o Sítio Gravatá para residir, definitivamente, na cidade de Santana do Ipanema, ficou por lá aquela vida calma, sem violência, de muita paz no coração dos seus moradores. Vida mansa permitida pela belíssima natureza, de matas virgens, fontes perenes e riachos com água a correr no leito o ano inteiro. Exceção, com certeza, dos anos de inclemente seca, de estiagens periódicas, que castigam o Nordeste.
As comunicações, então, entre casas e sítios da vizinhança eram feitas por caminhos estreitos ou estradas por onde transitavam carros de boi ou tropeiros. Entre a sede do município e povoado Quixabeira, hoje São Félix, a estrada carroçável era mais larga, por onde teria passado, historicamente, o primeiro caminhão ou outro tipo de veículo, fato lembrado por antigos moradores do lugar.
Notícias por meio de rádio e televisão lá não existiam, lá não chegavam. Somente se sabia o que se passava no Brasil e no mundo quando se ia à cidade em dias de feira livre, aos sábados. Nos demais dias da semana, o contato com a cidade era feito, diariamente, por meio do vendedor de apostas do jogo do bicho. Ao sítio ele retornava, à boca da noite, com novidades e com o resultado da loteria, com milhar, centena e com o nome do bicho da dezena sorteada. Era muito grande a expectativa do seu retorno.
Meu avô paterno, Francisco Ferreira de Carvalho, nascido em 1882, era de origem pernambucana. Os três filhos homens, uma vez casados passaram a morar em casas construídas em sua enorme propriedade. As filhas, em número de cinco, depois de casadas residiam em sítios mais distantes.
Quando disse, no início, vida calma, sem violência, não me referia ao tempo das ameaças dos cangaceiros de Lampião, que até 28 de julho de 1938 impunham medo à população residente em torno de Santana do Ipanema e cidades vizinhas, bem como à gente de boa parte do Nordeste.
Para defender sua família e sua fazenda, meu avô adquirira, fazia muito tempo, seu rifle 44. Não sei como nem quando ele teria adquirido o rifle. Costumava guardá-lo, em pé, encostado à parede do quarto de dormir, ao lado da cabeceira. Acredito mesmo que meu avô nunca tenha feito um só disparo com seu rifle.
Francisco Vicente, como ele era conhecido, contraiu segundas núpcias com uma prendada moça do sítio. Desse matrimônio nasceram três filhos: um filho e duas filhas. Veio a falecer em 1965. A viúva e os filhos ainda moravam no mesmo lugar, quando teve sua casa ameaçada de invasão por dois perigosos facínoras. Para assaltá-la, saqueá-la, fatalmente. Um deles arrombara a porta dos fundos e, de lanterna acesa na mão, adentrava a cozinha da casa. Era noite escura de março de 1968. Noite tenebrosa, de terrível e longa agonia da pequena família. O filho varão, heroicamente, dando conta do rifle 44, com um tiro certeiro – único disparo – explodiu a lanterna e esfacelou a mão do bandido invasor, pondo os dois em imediata retirada.
Rifle milagroso! Apavorados, recuaram com o estampido da arma de fogo, de cano longo. O rastro de sangue que os bandidos deixaram na estrada serviu de pista para que a polícia pudesse prendê-los no dia seguinte.
Adolescente ainda, certa feita pedi a meu avô que me permitisse atirar com seu rifle no tronco da árvore do terreiro de sua casa. Pedido audacioso, porém atendido. Claro que o pedido tivera o tácito consentimento de meu pai.
Afinal, ajustei a bala no devido lugar, apontei o rifle para o tronco da árvore, puxei o gatilho e o tiro atingiu o alvo indicado.
Embora satisfeito com a façanha, o sopapo do disparo quase me levava o ombro direito.
Maceió, maio de 2019.
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