Mexer no baú do tempo é algo fascinante, mas poderá o autor da audaciosa empreitada vir a ser contagiado pelo perigoso vírus da nostalgia, da saudade, das relembranças.
Vez por outra, em busca de algum dado perdido no tempo, volto a folhear o meu livro Festas de Santana, publicado em 1977 e com edição esgotada, infelizmente. Nele, encontro, na página 103, o título Alípio, Futebol e Cachaça, que escolhi como mote desta crônica.
Disse, então, que, no correr do ano de 1954, o espírito amadorista se apoderara de um entusiasmado grupo de jovens de Santana do Ipanema, todos eles com idade entre quinze e vinte anos. Daí surgiu um novo time de futebol na cidade, com estatuto, regulamento, diretoria, e tudo o mais.
Coube a José Damasceno Ribeiro (Zé Ratinho) o cargo de presidente do novo clube e o de técnico da jovem equipe. O presidente de honra, de cujo nome não me recordo mais, foi escolhido somente para financiar o primeiro jogo de camisas, meias-longas, chuteiras e bola. Pesando fortemente o aspecto financeiro dessa escolha, certamente os fundadores, no caso, consideraram irrelevante o termo honra.
Motivados, os jovens santanenses começaram a treinar de manhã, duas vezes na semana, pontualmente a partir das cinco horas, ou quando os raios solares dessem os primeiros sinais do despertar das belas madrugadas sertanejas.
Vale lembrar alguns nomes desse animado grupo: José Pinto de Araújo, Josa, Zé Miudinho, Negro Sunga, Belo, Pelópidas, Mário Rego, João Airton, Dema de Agenor, Zezinho Rabichola, Byron, Valter Lucena, entre outros. Apesar de nenhuma vocação para jogador de futebol, também participei da empolgação do grupo, treinando religiosamente.
Para cada rua ou bairro escalava-se um jovem que, acordando mais cedo, deveria arregimentar seus vizinhos para os treinos. Certa feita, essa tarefa coube a Zé Miudinho, morador mais próximo do meu endereço. Rapazinho gabola, cabelo impecavelmente penteado à base de brilhantina, bem-vestido e perfumado, aprendiz de boêmio, Zé Miudinho há algum tempo havia começado a frequentar as casas das alegres noites do meretrício da cidade. Bateu-me à porta, chamando-me para o treino. Levantei-me depressa e o acompanhei, estranhando, porém, a escuridão da “madrugada dele”. Ao chegarmos à praça central, ponto de encontro dos jogadores, o relógio da igreja matriz badalava uma hora e trinta minutos, apenas. Sem alternativa, todos nós tivemos que, ali mesmo, aguardar os primeiros sinais da madrugada. Vindo de farra e ainda meio ressacado, Zé Miudinho resolvera emendar a alegre noitada com o treino, mas teve que suportar todo tipo de xingamento do grupo, aí incluído, certamente, o santo nome de sua genitora.
Apesar da existência efêmera, o time deixou gratas recordações em todos os que dele participaram, porque, afinal, todos eram verdadeiros amadores e fervorosos adeptos do futebol. Como fato positivo, daí surgiu, tempos depois, a Associação Atlética Ipiranga. Com o Ipanema Atlético Clube, outro time da cidade, ambos realizaram jornadas gloriosas do futebol em minha terra. Registre-se, por oportuno, que o Ipanema conquistou, galhardamente, nos anos de 1957, 1958 e 1959, o tricampeonato do interior alagoano de futebol.
Finalmente, “cachaça” e “Alípio” do título da citada crônica se referem ao fato de o bom jogador santanense de então ter participado do primeiro e vitorioso embate intermunicipal do time recém-fundado. Com um gol de sua autoria, Alípio deixou o campo bastante festejado pela garotada. Porém, vítima de acidente automobilístico, ele não mais pôde jogar futebol, tendo enveredado para o alcoolismo. Algum tempo depois, encontrei-o embriagado. Pedi-lhe, em vão, que abandonasse o vício, senão morreria muito cedo, ao que me respondeu: “Padre Bulhões bebia? Não. Morreu! O coronel Lucena bebia? Não. Morreu! Então...”
Que pena!
Maceió, agosto de 2014.
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