FIGURA DE ROMANCE
Clerisvaldo B. Chagas, 4 de novembro de 2011
Quando bati o olho naquele personagem inusitado, logo o imaginei um dos tipos secundários dos meus romances. Toquei levemente na minha acompanhante e disse cochichando: “Veja que velhinho duro e altivo! Chapéu panamá, camisa branca de mangas compridas; baixo, magro, revela ser um tipo de pessoa próspera ou importante da Maceió da primeira metade do século vinte”. Veio-me a curiosidade observando o homem que falava baixo e normal naquela sala de repartição pública. Ao subirmos para o quarto andar, o mesmo cidadão chegara primeiro do que nós. Iria aguardar a sua vez de ser atendido. Continuei com o olhar sobre ele. Outro senhor, admirado como eu, puxou conversa com o nosso figurante que afirmou possuir noventa e seis anos. Estava acompanhado de sua senhora, baixinha, cuja idade eu não soube precisar, porém não teria menos de oitenta. Notei que lhe faltava quase toda orelha direita. A única coisa que destoava da sua elegância era o cinto colorido que representava o seu bom humor. Saí pescando pedaços do diálogo que ele travava com o outro cidadão, cujo tema era as primeiras ferrovias de Alagoas.
Segundo ele, a primeira ferrovia não era dos ingleses, mas sim de um alagoano irmão de um dono da Usina Sinimbu. Não tenho muita certeza se foi assim que ouvi. Contou ainda que, ao surgir o primeiro trem na cidade de Viçosa ─ Zona da Mata alagoana ─ A população simples do lugar, cobria o maqui-nista de muitos presentes, tudo em nome do “santo trem”. Galinhas, patos, pe-rus, engordaram os maquinistas da época. Enquanto sua esposa servia-se de um cafezinho, o personagem falava da ronda do Zepelim por essas bandas e, zombava da própria mulher “que não se sentia bem nos primeiros automóveis”, mas ele, sim. Conversava em pé. Não queria sentar. Revelou que possuía uma perna de ferro, por dentro, consequência da queda de um coqueiro. Quando perguntado sobre a saúde, afirmou que somente usava açúcar de fazer rapa-dura: “Esse açúcar alvinho que se usa hoje, contém muita cal e desgraça com o homem!” Chamada e atendida, a nossa atração despediu-se dos presentes, colocou sua mulherzinha debaixo do braço e saiu tão faceira, quanto chegara. Jamais tirara o chapéu que parecia colado ao cocuruto, derreado por cima da sumida orelha.
Inconformado com sua partida, eu disse jogando às suas costas: “Volte amanhã para conversar mais!” Os presentes riram. Notei que todos estavam com inveja da saúde do nonagenário. Ficou um vácuo na sala com a saída do meu novo admirado. Então, para disfarçar, cada um que fosse contar vantagem sobre idosos que faziam parte da família. Suspirei. O mínimo que eu poderia fazer seria produzir uma crônica. Estava maluco para chegar a casa e escrever com nitidez sobre mais esse PERSONAGEM DE ROMANCE.
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