Notas críticas sobre cancelamentos

Adriano Nunes

Há algum tempo, expus que o cancelamento teve origem, como práxis instituída, na Antiguidade Clássica (grega e romana), a partir do banimento. Todavia, poderíamos dizer que Adão e Eva, ao serem expulsos do Paraíso, por Deus, foram as primeiras vítimas do cancelamento. Eles não agiram de acordo com a moral divina esperada. Não foram "puros" eticamente.

O cancelamento possui também, de algum modo, raízes e fundamentos fascistas. Toda forma de silenciamento, banimento, exclusão, censura, repressão flerta, sob certa perspectiva e de alguma maneira, com ideologias totalitárias: isto é, com atitudes humanas que querem impor, a todo custo, uma moral moralizadora às demais pessoas, uma moral que não é sequer exercida por aqueles e aquelas que a reivindicam como padrão a ser rigorosamente seguido. É como se os canceladores fossem dotados de uma pureza ética inatacável, como se não pertencessem à esfera humana, pois exigem, em nome de uma suposta ética humanitária, que todos e todas pensem e ajam igualmente, por suporem saber o que é mesmo certo e o que é errado, como se acreditassem que a História tem um lado certo ou errado, um fim determinado, até mesmo messiânico, apocalíptico.

A História nunca teve lado algum! Quem tem e exige que os indivíduos tenham um lado são os próprios indivíduos, impregnados de suas crenças e ideologias. A História não é uma força moral em si. Tais tentativas de dar à História um determinismo moral é mesmo um paradoxo perigoso! Por isso, a crítica é o instrumento da razão prática capaz de denunciar essa forma de arbitrariedade e de abuso que se reveste de um discurso pseudoético e moralizador, para ditar como as pessoas devem ser, coibindo não apenas a sua liberdade existencial (de posicionarem-se fora do esperado ou mais e além), mas também tentando extinguir o seu direito a priori de não compactuar com quaisquer modelos morais, com quaisquer sistemas de poder e dominação. Dizer isso não significa fazer qualquer tipo de defesa da barbárie, significa justamente evitar que, em nome de um suposto ato civilizatório, em nome de toda a civilização, a barbárie seja legitimada.


Adriano Nunes

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