Em seu novo artigo "Uma conspiração de estúpidos", publicado na Folha de São Paulo (27/08/2019), João Pereira Coutinho faz uma defesa calorosa do famoso artigo "Le leggi fondamentali della stupidità umana" de Carlo Cipolla. Tanto é que afirma, em possível êxtase ("quase chorei de alegria"), que a resposta dada por Cipolla é "inultrapassável".
Primeiro, não há, em teoria do conhecimento, uma resposta dada de "forma inultrapassável". Pensar assim não é nem científico nem filosófico. É mera ideologia.
Segundo: percebe-se, já no início do artigo de Cipolla, que a sua intenção é dizer que as pessoas são estúpidas por uma carga genética, por força exclusiva da natureza, sem quaisquer interferências de socializações, sejam de caráter educativo sejam de caráter inter-relacional, social, de grupo, através de intercâmbio de experiências sociais, pois o pensador italiano afirma que "la probabilità che una certa persona sia stupida è indipendente da qualsiasi altra caratteristica della stessa persona." Isto é, ele afasta positivamente as influências do meio social, porque "insomma uno nasce stupido per volere imperscrutabile e insindacabile della Divina Provvidenza". Resumindo: para o autor, nasce-se estúpido. Uma vez estúpido, sempre estúpido!
Cipolla sabia bem que estava adentrando numa explicação positiva e determinista, ao mesmo tempo conservadora, para o fenômeno da estupidez humana. Da Bíblia ao biologismo barato, procura fundamentar e legitimar os seus argumentos sub-reptícios. Mas não só! Não só sabe bem por que o faz que, previamente, parece querer se desculpar ou justificar a sua nova maneira de biologizar comportamentos humanos, usando do artifício da ironia.
Então diz que "io non sono un reazionario che cerca di reintrodurre furtivamente discriminazioni di classe o di razza". Claro que ele jamais diria que queria ou gostaria de "introduzir de novo furtivamente discriminações de classe ou de raça". Essas introduções são feitas por quem acredita nessas ideias e compartilha delas numa práxis anti-humana. As justificativas éticas e morais para esses tipos de argumentações sempre buscam legitimidade, sempre almejam um séquito de fieis que as defenda calorosamente, ainda que dissimuladamente.
Cipolla, inclusive, para não assumir o que defende, afirma que a culpa é da própria natureza: “nessun altro genere di fenomeni oggetto di osservazione offre una prova così singolare del potere della Natura.” Qual a finalidade de Carlo Cipolla? Promover, de algum modo, alguma distinção. Desta vez, não uma dicotomia explícita, mas um quarteto: “gli sprovveduti, gli intelligenti, i banditi e gli stupidi”. Ou seja: como se a humanidade fosse incapaz de “fugir” dessas categorias e, portanto, sempre caberia à natureza determinar a sorte e o azar de cada um.
Apesar de achar o artigo "interessante", não compartilho das ideias centrais dos autores (ambos - Cipolla e Coutinho!) que parecem ver o mundo estereotipado biologicamente e geneticamente determinado. Essa visão afasta quaisquer socializações ou ações do meio sobre o indivíduo, pois de acordo com a Segunda Lei do artigo de Carlo Cipolla, a estupidez é biogeneticamente determinada, como vimos. Logo, este tipo de argumentos pode engendrar, sim, racismos e preconceitos étnicos. Foram argumentos deste tipo que promoveram, por exemplo, a criminalização da homossexualidade, o extermínio de judeus, entre outras barbáries.
Coutinho procura fundamentos biogenéticos para distinções e classificações e encontra-os em Cipolla. Afirma que “o ensaio de Cipolla tem a rara qualidade de iluminar o mundo”. Como assim? Excluir categorias analíticas sociais para explicar os indivíduos, os seus comportamentos, as suas práticas e ações, enfim, para explicar a sociedade requer apenas que saibamos que há 4 tipos de pessoas, todos determinados inescapavelmente pela Divina Provvidenza? A ideologia impera ante verdades fatuais, inclusive quando, nesta perspectiva absurda, escolhe-se a categoria dos "estúpidos" que, de algum modo, pode atrair simpatizantes de todos os lados, da direita ou da esquerda. Ou seja: parece deixar explícito que o “estúpido” é aquele que não compactua com o que defendemos apaixonadamente. Assim, para os de esquerda, os estúpidos seriam os de direita, e vice-versa. Com poucas exceções, claro!
O problema epistemológico dessa abordagem determinista é conceituar, nos moldes crítico-racionais, sem interferência ideológica, o que seria um estúpido. Cipolla tenta, em “un intervallo técnico”, “chiarire il concetto di stupidità umana e definire la dramatis persona”. E, nisto, procurar distorcer o real sentido grego aristotélico do ζῷον πoλιτικόν. Se a estupidez é realmente passível de análise positivista, técnica, biológica determinista, como ele pretende então afastar definitivamente as influências externas, sociais, inter-humanas? À base de retórica? À base de argumentos sofismáticos travestidos de um cientificismo decadente recheado de gráficos, "leis" e ideologias?
Deve-se ter muito cuidado com estes argumentos. Eles podem levar a consequências perigosas, como àquelas que aconteceram no nazismo alemão. A esfera humana é muito complexa para ser analiticamente concebida in totum por uma "resposta inultrapassável". Como bem disse Kant, citando Horácio, "sapere aude"!
Adriano Nunes
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