"Moro à la carte"

Adriano Nunes




Os que se enganam com autoritários, com os seus discursos populistas e promessas políticas, são ingênuos e presas fáceis. Os autoritários só pensam e amam o poder. Puero etiam perspicuum. A História humana está repleta de exemplos. Por que poucos aprendem essa lição?

Em seu bunker, Hitler, ao ser questionado sobre a rendição alemã, já em 1945, com a Alemanha em ruínas e o povo alemão sendo massacrado, não só afastou tal possibilidade como afirmou que o povo alemão merecia isso, com um desprezo repugnante, justamente para com o povo que desfilou nas ruas, com bandeiras e tochas, fazendo saudações nazistas desde 1933 e que comprou vivamente a ideologia nefasta hitlerista! Era a Dankbarkeit que Hitler devolvia ao seu séquito emotivo e acrítico.

Ninguém importa para autoritários! Só eles a si mesmos, só o poder! Todos e todas lhe servem como meros meios e instrumentos, que podem ser descartados a qualquer momento. Sergio Moro foi mais um que apenas serviu como coisa, reificado. Guedes pode ser o próximo? Sim. Como outros e outras, até mesmo os mais alinhados ideologicamente.

Em certo sentido, Moro foi um juiz necessário. Teve a coragem de, sendo de primeira instância, pôr em evidência a corrupção nas altas escalas da política brasileira e, claro, dar início à punição de corruptos. Se foi um combate seletivo (como alegam), de algum modo, não se pode mais negar que havia corruptos. Havia e há. Talvez, tivesse a pretensão de ser um grande juiz, o melhor juiz. Talvez tenha-se esquecido de uma das máximas fundamentais do Direito: tempus est optimus judex rerum omnium.

22 anos de magistratura não são 22 dias. Não são os míseros meses como Ministro da Justiça. Que os seus interesses mais ignotos fiquem com ele. É um direito universal de que cada indivíduo faça da sua vida o que quiser, inclusive conduzi-la ao abismo frio da História. Se queria ser Ministro do STF, qual o problema nisso? É um moralizador quem quer controlar a liberdade e a vontade alheias, pelo simples fato de ser um adversário ideológico. Dizer isso significa constatar que Moro conscientemente assumiu todos os riscos e consequências ao imergir de cabeça no mar revolto da política. Talvez, tenha-se embriagado de poder alto e fundo. Talvez, o mar fosse apenas o riacho seco das pretensões de glória e fama que perturbam o espírito. Lancem as suas apostas!

Hoje, Moro entrega o seu cargo, com decência, em nome da liberdade e da autonomia. É louvável, de algum modo. Seria constrangedor permanecer sob a tutela e sob as ameaças do autoritarismo. Aprendemos com Moro que nem tudo é suportável e que alguns sonhos podem tornar-se, a qualquer instante, um pesadelo. Pode agora ir mais fundo na política e seguir carreira nela? Talvez. Talvez mais para sim. Mas sempre nos perguntaremos, desconfiados e com certa razão, o porquê de abandonar os 22 anos de magistratura e aceitar um cargo político, instável por natureza. Por quê? Para fazer justiça? Um dia tudo, quem sabe, venha à tona, pois oppugnabitur veritas, non expugnabitur. O que fará Moro agora com as suas verdades, as suas crenças?

Estão, de algum modo, erradas a direita (que o idolatra sem reservas) e a esquerda (que o demoniza sem reservas). Os extremismos são sempre abjetos, não conseguem ver a pluralidade das coisas, os múltiplos lados, as abstrações, os fenômenos envolvidos. Só encaram a frio o que lhes interessa. Moro foi tomado pela direita como o paladino da justiça, como o homem moral máximo. Era apenas um juiz, sem talentos intelectuais e cultos, com coragem e Wille zur Macht. A esquerda o viu como a encarnação autoritária das oligarquias e das elites do antipetismo, como se o PT fosse imune à crítica e à justiça.

O homem político Moro está nu. Foi corajoso, como antes, mas também seletivo nas escolhas das palavras, para despedir-se da nau prestes a naufragar, acusando, de algum modo, o ex-chefe de tentar manipular instituições sérias por interesses particulares, isto é, acusou Bolsonaro de antidemocrático e autoritário. Será que Moro não sabia disso antes? Por que ainda insistiu tanto nessa barca furada? Agora, Moro não fará mais julgamentos por dever de ofício. Já não fazia, é óbvio. Entregou ao Tempo que o julgue a partir de agora. E o Tempo tem sido sempre implacável em suas sentenças.


Moro petit à petit, s'il vous plaît!


Às vezes, é preciso servir o mesmo prato para que os convidados e convidadas sintam-se saciados e, quem sabe, percebam bem os detalhes delicados da iguaria, suas nuances. Apontar o homem político no juiz Moro (agora, ex-juiz) ou o homem atado, como todos nós, à esfera humana, não é fazer defesa ou acusações. É expô-lo.

Expor um objeto de análise é sabê-lo escolhido objeto. Que método de análise ou ponto de vista teórico serão usados para fazer da exposição um modelo de compreensão é outra coisa. A crítica racional está a priori destituída de interesses e tenta evitar que ideologias impregnem o produto final da análise. Quem tem paixões por objetos de análises são ideólogos. Quem defende cegamente os seus objetos, como numa religião, criando para eles uma realidade fictícia, são os fanáticos. A crítica está fora dessa esfera.

Feita essa introdução irônica, parto do princípio de que em Moro podemos encontrar erros e acertos. Nessa altura do campeonato, mais erros. Talvez, no ensaio anterior não tenha ficado claro o fato de alertar que, estando na esfera humana, todos nós estamos passíveis de falhas, até graves. Quem julga melhor tais erros, é o tempo. Sempre! E está lá bem dito.

Um verdadeiro crítico se distingue de um juiz. Um juiz, ainda que os estatutos legais determinem que tal órgão deve ser isento e imparcial, dificilmente atua sem interesses e sem interferências do ser que se constituiu durante toda a sua socialização. Juízes conservadores tendem a fazer sentenças "conservadoras", juízes evangélicos tendem a fazer sentenças "evangélicas", se assim puder ser dito, por exemplo. E tem sido assim, ao que parece.

Como crítico que sou (com todas as minhas falhas, claro!), fui chamado à atenção do fato de que Moro tinha interesses políticos antes mesmo das eleições e que teria, por isso, de algum modo, tirado a esquerda do páreo. Sim, isso é possível. Há evidências. Há conjecturas. O fato de ele aceitar o cargo assim que Bolsonaro começou o seu governo. A prisão coercitiva de Lula. Os áudios vazados. Tudo isso pesa contra ele. E eu não nego isso. O que não fiz e não faço é juízo de valor acerca disso. A constatação de uma verdade fatual é diferente de fazê-la ser a única explicação de um conjunto de fenômenos complexos e variados: o homem político Moro. Do mesmo modo, o homem político Lula.

Defendo, por exemplo, que Lula deve ter outro julgamento. Já disse isso. Ter outro julgamento é diferente de torná-lo inocente a todo custo. O homem político Moro talvez realmente tenha maculado o processo. Mas macular o processo é diferente de alterar verdades fatuais. Há fatos. Talvez, ninguém venha a saber o que realmente aconteceu. E teremos sempre fanáticos a adorar Moro ou Lula incondicionalmente. O destino do Brasil não se resume a eles. Nem a Bolsonaro.

Bolsonaristas e esquerdistas comemoraram a saída de Moro. Como pode isso? Como antípodas vibram com o mesmo evento político? Isso nos prova, de alguma maneira e sob certa perspectiva, que a verdade nunca foi uma virtude política, como nos alerta Hannah Arendt. Há muitos interesses por trás. E quando há interesses, há juízos de valor. A crítica tenta expor a realidade crua dos fenômenos, expondo as ideologias que estão por trás deles, denunciando-as. Para os fanáticos e ideólogos, as verdades fatuais incomodam, causam-lhes dores profundas, existenciais, porque elas desmascaram e destroem as ilusões. Moro, Lula e Bolsonaro pertencem à esfera humana, estão cheios de defeitos e falhas. Não há salvadores da pátria. O que há e sempre haverá é um povo enganado, emotivamente ludibriado.


Adriano Nunes

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