Voltarei a uma polêmica para expor algumas considerações acerca da verdade e da compaixão. Penso ser válido lançá-las, agora, na esfera pública das ideias, dos conceitos, da crítica, da política. Como um gesto humanitário, um abraço, em uma detenta ou em um criminoso não preso pode engendrar sentimentos contraditórios e até mesmo violentamente opostos? Será que os crimes cometidos por essas pessoas por si só invalidam tais gestos? Até que ponto, sob uma perspectiva racional crítica, podemos invalidar um gesto que pode ser tomado como uma ação desinteressada e demasiadamente humana? A compaixão é interessada? Ela se dirige ao sofrimento ou a quem sofre? Quem tem compaixão tem-na independentemente de contingências e atributividades? Ou a compaixão atende a um princípio a priori, isto é, é como uma vontade boa em si mesma?
Pensando na polêmica sobre a reportagem da Globo sobre detentas trans e, especificamente, sobre a cobrança por uma massa agressiva de que a emissora teria o dever ético de expor qual crime a trans Suzy cometeu, pois, ao não dizer isso, é acusada de mentir, de provocar "intencionalmente" uma comoção pública "não justa", porque o público se sentiu "enganado", isto é, as pessoas só tiveram "compaixão" imediata por Suzy porque foram "levadas" a isso ante o fato de os crimes graves por ela cometidos terem sido ocultados. Ora, então nosso ensaio já tem dois nortes principais: a verdade e a compaixão.
I - A verdade
Vamos à problemática da verdade. Numa produção jornalística, o público tem o direito de saber a verdade. Por uma questão ética, o jornalismo não pode dissociar-se da verdade. A verdade deve ser a guia dessa importante profissão, amparada pela liberdade de expressão. Verdade e liberdade de expressão devem andar justas no jornalismo. Existem situações em que temos a obrigatoriedade de dizer a verdade, porém sempre sob a proteção de que, ao ser dita a verdade, ela não pode ser usada para instrumentalizar-nos, isto é, não pode ser dado a ninguém o poder arbitrário de tratar-nos como coisa, em nome de quaisquer verdades. Perguntamos: a Globo mentiu? Ao que tudo parece indicar: não! Não revelar um fato não é mentir. Omissão fática não pode ser confundida com alteração fática. A acusação de que houve uma mentira parece querer engendrar o efeito de não mais ser possíveis discussões adicionais. As verdades fatuais existem e são o que são, constituem a História independentemente das narrativas subjetivas ou ideológicas. As verdades fatuais não atendem a interesses políticos. A verdade em si não é uma virtude política, com atesta Hannah Arendt. Só os autoritários e tiranos desejam alterar as verdades fatuais ou suprimi-las.
Quanto à obrigação ética de dizer a verdade, em relação ao jornalismo, é preciso ainda salientar que essa obrigatoriedade só pode ser exigida para evitar mentiras públicas, isto é, para evitar que um fato social seja alterado ou destruído. Não se pode tomar, portanto, omissões de verdade como se mentiras fossem. Omissões de verdade têm, inclusive, valores atributivos de justiça e, podem, estar ligadas com questões de vida e morte. Vocês diriam a um nazista furioso, num depoimento à SS, sem ser perguntado sobre o fato, que um judeu mora em sua casa e é seu parente? O exemplo foi extremo, mas didático. Você omitiu um fato. Não mentiu sobre o fato. A verdade do fato implicaria, certamente, na condução do seu parente para, no mínimo, um campo de concentração. É preciso, também, lembrar-nos de que a necessidade intransigente de dizer a verdade pode ser usada para fins arbitrários. O que fazem os torturadores quando querem saber da “verdade”? Vale aqui a grã lição de Comte-Sponville: “aquele que simpatiza com o torturador, participando de seu regozijo sádico, sentido a excitação que ele sente, também partilha sua culpa ou, pelo menos, sua malignidade”. Lembram-se de algo?
Vamos mais além: no caso específico, em que importaria dizer, publicamente, os crimes cometidos por Suzy? Temos algumas vias: reafirmar as consequências sociais de uma condenação penal, provocando em muitos o desprezo e ojeriza pelo fato de o crime ser grave, reafirmar que as políticas de ressocialização, principalmente em crimes graves, são hipocrisia, enfim, a notícia dos crimes de Suzy poderiam causar certamente mais repúdio e horror do que compaixão. E em um país machista e homofóbico, tais revelações teriam reflexos além-reportagem, além-Suzy, não duvidem. Dizer isso não é tentar pôr uma capa protetora na criminosa nem sequer diminuir a barbaridade do seu crime. Dizer isso significa, de algum modo, constatar que as verdades fatuais podem ser impregnadas de valor. E isto é um perigo! Não só pelo fato de que podemos querer que uma verdade fatual atenda a nossas vontade e ideologias, inclusive político-partidárias.
Precisamos ir um pouco mais além. A verdade é fundamental para a civilização. E o uso que fazemos dela também! A verdade das ciências químicas e físicas, por exemplo, foram capazes de descobrir que os átomos poderiam gerar energia nuclear. O uso prático dessa verdade teve algumas consequências: a criação de uma nova fonte de energia bem como a fabricação de armas atômicas. Dizer do uso da verdade não implica diminuir o valor ético das verdades. Todavia, é importante que nos lembremos que os valores que damos às coisas e aos fatos são sempre a posteriori. E isso implica, de alguma maneira, dizer que, ao tentar tornar o que subjetivamente pensamos ou acreditamos ser verdade, impondo aos outros ou exigindo dos outros o reconhecimento dessa verdade, estamos agindo como moralizadores ou como autoritários. Drauzio não mentiu, penso. A Globo não mentiu, penso também. Quem se comoveu em relação ao abraço não mentiu para si mesmo. O abraço foi verdadeiro. O sentimento de quem se comoveu também. Ainda assim, dr. Drauzio foi à tevê para explicar o próprio gesto humanitário e para desculpar-se com o público e a família da vítima. O fato de o crime ter sido omitido leva-nos à segunda parte do ensaio: a compaixão.
II - A compaixão
A verdade humanitária é tão importante quanto a verdade científica é. Quem mente ou engana a si mesmo em relação ao que sente, como pode exigir de qualquer pessoa a manifestação de uma verdade sentimental? Como afirma André Comte-Sponville, “ a compaixão tem má reputação; ninguém gosta de ser objeto dela, nem tampouco de senti-la”. “Compaixão” vem do latim eclesiástico compassio (“simpatia”), que vem do latim compati,por sua vez, advindo de compassus (“sofrer junto com”), do latim com- (“junto”) + pati (“sofrer”). Quem realmente gosta de sofrer? E ainda mais sofrer junto com outra pessoa? A compaixão parece exigir algo sobre-humano. A origem semântica tem a ver mesmo com paixão, por isso muitos cristãos “sofrem juntos” durante a “Paixão de Cristo”. Sofrer junto em Cristo parece trazer alguma catarse e alguma forma de redenção, paz. A palavra “pathos" tem origem grega πάθος (cujos significados originais são muitos e distintos, entre os quais: dor, sofrimento, morte, infortúnio, calamidade, desastre, miséria, qualquer sentimento forte, paixão, emoção, condição, estado, incidente, modificação de palavras) que vem de πάσχω (páskhō), possivelmente palavra citada pela primeira vez por Homero, de acordo com Pierre Chantraine, (quando trata do verbete "πάσχω", na página 861, do Livro II, da sua obra "Dictionnaire Etymologique De La Langue Grecque") que, possivelmente, deu origem à palavra latina "passus" que é um particípio passado de "patior". Dessas palavras primas latinas surgem então "pathos" e "passio".
Assim, a priori, podemos perceber que tal palavra relaciona-se com as seguintes palavras: passo, passada, trilha (por causa de "passus") e paciente "patiens"/"patientis" (por causa de "patior" que significa sofrer, suportar, ser vítima, permitir, consentir, admitir, perserverar). É preciso que se saiba desse início para que se entenda a relação moderna da palavra "pathos" com paixão, com doença, com o sofrimento: ou melhor, como "um passo para o sofrimento", mas visivelmente na etimologia da palavra paixão em francês "passion", em italiano "passione" e em espanhol "pasión". Isto é: a paixão é um passo para o sofrimento, um sofrimento que tende a ser suportável, já que as paixões tendem a ser passageiras - elas passam! -. E deixam os apaixonados patéticos, pois a origem da palavra "patético" tem íntima relação com a palavra "pathos".
Apaixonamo-nos ou sentimos compaixão porque as pessoas podem causar-nos "empatia" (oriunda do século XX de ἐμπάθεια - empátheia, literalmente "paixão"- formado a partir de ἐν (en, "em, pelo") + πάθος (pathos, "paixão") cunhada por Edward Bradford Titchener para traduzir a palavra alemã Einfühlung. O contrário de sentir compaixão é, no mínimo, ser duro de coração, frio, indiferente aos outros, indiferente ao sofrimento alheio. Por isso, devemos ter compaixão pelo sofrimento dos pais da vítima. Por isso, muitas reações se reverteram ao saber de qual crime se tratava. Porque se é para “sofrer junto”, escolhe-se com quem se quer sofrer. E não há nada moralmente errado nisso. Mas a questão da compaixão exige de nós perguntas mais críticas e profundas.
Não basta perguntar: somos capazes de compreender a desgraça alheia, ainda que dolosamente ela tenha sido capaz de provocar a si mesma os infortúnios graves de sua vida? Além de compreender isso, somos capazes de sentir compaixão por essa pessoa? Essas são perguntas simples que podem levar a inúmeras justificativas éticas e morais, tanto para a compreensão e compaixão, como podem levar a fundamentos para evitar e repudiar a possiblidade de haver compreensão e compaixão. E pior: podem vir carregadas de juízos de valor moralizadores e interesses ideológicos.
Uma das possibilidades seria: por que não sentirmos compaixão diante do sofrimento de quem quer que seja? Ao pôr o sujeito indeterminado, podemos então testar e verificar se a compaixão é uma virtude (ainda que parcial, conforme preceitua Aristóteles) ou se é um mero sentimento, como a indiferença. Se respondermos “sim”, a compaixão é uma virtude completa e, por isso, exige mesmo de nós uma prática diária, constante. Praticá-la nos faz virtuosos. A bondade é uma virtude. Seria contraditório escolher a quem se pratica o bem. Isso atestaria uma contradição e uma oposição direta aos ensinamentos cristãos de Jesus, por exemplo. Se a resposta, é “depende”, então ainda há possibilidade de que a compaixão seja uma virtude parcial, isto é, aquela que precisa do auxílio ou companhia de outras virtudes, para ser o que é, pois sozinha estaria em compatibilidade com os vícios. Se respondermos “não”, não podemos considerar a compaixão uma virtude, nem mesmo uma virtude parcial. A negativa remete-nos à constatação triste de que tratamos seres humanos distintamente, isto é, parece que somos incapazes de esquecer, minimizar ou perdoar os seus erros, parece que erros graves transportam tais pessoas para uma seara sub-humana ou mesmo inumana. Ou será que exercer a compaixão em casos de crimes graves é mesmo algo sobre-humano? Seríamos capazes de sentir compaixão pelos nazistas? Seríamos capazes de sentir compaixão pelos torturadores? Seríamos capazes de sentir compaixão por estupradores de crianças?
O episódio televisivo de Suzy provocou reações in(esperadas) em todos os sentidos, antes e depois de saber-se qual crime foi cometido. Certo é que todo e qualquer sofrimento carrega em si algo de humano, um fio de humanidade e, por isso, merece, de algum modo, compaixão. O que levam pessoas a partirem para situações trágicas e até desumanas é mesmo um complexo de dificílima explicação. Quaisquer tentativas de racionalizar plenamente a explicação desse fenômeno humano, o das falhas e dos erros, são incompletas e falhas, porque não existe in totum definida e infalível uma natureza humana, há só o fato de que também somos animais e fazemos parte da natureza. Ser humano, demasiado humano, significa ser falível e passível de humanidades.
Duvido mesmo que se alguém soubesse que uma criança pequenina estivesse com câncer grave e estivesse sofrendo muito e fosse filha de seu pior inimigo, algum sentimento não o alcançaria! Isso torna-nos humanos e, por isso, precisamos cultivar a nossa humanidade diariamente. “A compaixão é misericordiosa”, ensina-nos Comte-Sponville, “é por isso que, em seu princípio, ela é universal, e tanto mais moral por não se preocupar com a moralidade de seus objetos”. Quem se sentiu traído em sua “compaixão” após o fato do crime grave, não sentiu antes compaixão. Requerer a “compaixão” de volta é não ter sofrido junto, é não se importar com o sofrimento alheio em si, mas apenas com o fato.
Nesta perspectiva, podemos constatar que, sob ditames da razão, devemos ter ódio aos infortúnios e não aos infortunados, ainda que ele tenha por si só levado ou conduzido-se a um infortúnio. Não compreender isso é não querer compreender a esfera humana, onde ações, discursos e práticas também estão à mercê de acasos, sujeitos às intempéries das situações e a julgamentos alheios, bem como sujeitam-se à vontade de poder. Pois parece ser óbvio que a exigência de não fazer o mal deve ser anterior a de fazer o bem. Comte- Sponville ao dizer que “a humanidade, enquanto é uma virtude, é quase sinônimo de compaixão”, de algum modo, fazendo referência a Kant, quando este diz que o princípio mor da moralidade é a própria humanidade, em “Grundlegung zur Metaphysik der Sitten”. Neste mesmo sentido, Schopenhauer reconhece que a compaixão se opõe à crueldade, por ser o móbil par excellence da moralidade, por isso estende-se a todo ser vivo, incluindo os animais.
Primeiramente, a compaixão visa o sofrimento do outro. O sofrer junto implica não querer que o outro carregue uma cruz só, para que ante as circunstâncias não se sinta rejeitado e só, posto à margem, excluído da esfera da alegria. Por isso Spinoza diz “misericórdia est amor” e quando define amor, em sua Ética, afirma que este é uma alegria. Ter compaixão é amar indistintamente o outro, é alegrar-se nessa indistinção. Ainda que a piedade e a tristeza façam, de alguma maneira, parte da compaixão, não a esgotam e nem mesmo a limitam. Claro está que a compaixão é melhor do que a indiferença, a crueldade, a vingança, a brutalidade.
Aqui, vale lembrar-nos da lição de Hannah Arendt que distingue a piedade (não objeto deste ensaio) e a compaixão. Em “On Revolution”, Hannah diz que a piedade é abstrata, globalizante enquanto a compaixão é concreta, singular. Logo a piedade não seria uma virtude. A compaixão é doce e tem algo de igualdade e reconhecimento humanitário, pois para querer e estar disposto a sofrer com o outro é preciso, primeiramente, reconhecê-lo como pertencente à esfera humana, tendo humanidade: e ter humanidade significa não admitir nenhuma forma de sofrimento, inclusive de seres vivos, isto é, é quando a nossa consciência alcança o esplendor de saber-se parte de um universal em que cada um é um fim em si mesmo e não mera coisa instrumentalizável. Ter compaixão, portanto, é abrir horizontes e possibilidades para que a nossa humanidade seja cultivada dia após dia.
Adriano Nunes
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