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Literatura

Por João Neto Félix Mendes - www.apensocomgrifo.com

A infância é uma fase mágica da nossa existência. Anos generosos em que a inocência e o encantamento parecem não ter fim até que um belo dia a gente percebe que cresceu e tudo mudou. Pelos caminhos das lembranças voltaremos à infância quantas vezes quisermos, mas com a consciência pedagógica de que serão apenas recordações nostálgicas de um tempo em que a gente reinava.

Para os infantojuvenis daquele tempo, as comemorações da festa padroeira eram oportunidades únicas de interagir, renovar e conquistar amizades, degustar novos sabores e se esbaldar nas diversões.

É através das celebrações que honramos a padroeira de uma região, a qual foi a grande responsável em nomear uma igreja ou até mesmo uma cidade. Na maioria dos lugares a igreja matriz fica na praça central. Ponto de convergência e território onde a dualidade indivisível do humano e o sagrado se evidenciam na contínua simbiose evolutiva e transformadora do homem na sua marcha existencial ao encontro de si e dos outros na convivência social.

Naqueles dias especiais não poderia faltar o parque de diversões, que se instalava uma semana antes do início oficial. A praça se ornamentava e se transformava em playground com vários equipamentos: roda-gigante, trivoli, barcos de balanço, bazar, pavilhão de bingo, tiro ao alvo, jogos de azar, pescaria de prêmios, lançamento de argolas, comidas rápidas e vendedores ambulantes de bugigangas que enfeitiçavam crianças e adolescentes.

No largo até as ruas se enfeitavam com pinturas de cal no meio fio que se destacava nos olhares dos transeuntes. Gambiarras de luzes incandescentes interligavam postes, cruzavam árvores e atravessavam a praça, garantindo claridade abundante, destaque e embelezamento ao palco festivo dos sertanejos anônimos.

Na porta da igreja, quase sem plateia, as bandas de pífano em trajes de gala se revezavam em exibições magistrais da musicalidade popular e interiorana, lançando ao ar a sonoridade de um povo de um lugar e o seu jeito de celebrar à vida, à fé e os seus desafios. De agrado, os céus derramavam chuva benfazeja sobre as terras sertanejas sedentas de fertilidade garantindo fartura. A cidade ficava em polvorosa.

No alvorecer, nos dias de chuva e frio, os raios de sol da cor de ouro dispersavam névoas densas que cobriam os serrotes circundantes num espetáculo matutino de rara beleza. Ao som das marteladas das horas do relógio da torre da igreja que eram ouvidas nos quatro cantos da cidade, os sertanejos eram chamados para mais um dia de labuta e comemorações.

Durante nove dias, a cidade acordava com o ressoar dos sinos que dobravam às 6h, meio-dia e às 18h acompanhados de uma salva de foguetes, anunciando tempos de exaltação e renovação da fé. Gente apressada buscava se livrar das estafantes e rotineiras tarefas domésticas para melhor aproveitar a festa.

Ao anoitecer, na abertura das solenidades, após os ritos religiosos, Zuza Fogueteiro ateou fogo no chio. A pólvora prateada ardia e seguia a trilha do rastilho, subindo o mastro fincado na praça da matriz. Ao alcançar a girândola no topo, no meio do fumaceiro, uma detonação abafada produziu um clarão imenso e, entre as brumas, delicadamente estendeu a bandeira da festa com a imagem de Sant’Ana, a padroeira dos sertanejos, seguidos de estampidos dos foguetes, sob efusivos aplausos e olhares marejados dos devotos. Os meninos boquiabertos, foram tomados pelo êxtase de sentimentos indizíveis que se confundiam com intensa alegria.

Enquanto os pais rezavam as novenas, ladainhas e cultos, as crianças se entretinham no parque de diversões. No serviço de alto-falante os sucessos do momento não paravam de tocar, acompanhados dos recados anônimos que a cumplicidade sabia identificar a origem e o destino dos enamorados. Diariamente o padre reclamava do barulho excessivo na praça durante as celebrações. A quermesse só iniciava depois da missa.

A sorveteria “Maringá” era ponto de encontro obrigatório da rapaziada. Era imperdível comer um cachorro-quente na barraca de dona Flora. Jovens enquencreiros usavam do artifício de compra de qualquer coisa no carrinho de guloseimas de dona Francisca somente para dizer seu odiado apelido (Chica Boa) e sair correndo. Maldade inadmissível com uma mulher trabalhadora que, tomada pela raiva, devolvia o desacato com impropérios que o nervosismo lhe ensinava.

Tudo servia de pretexto para o reencontro de familiares e amigos. A confraternização e o congraçamento garantiam pompa e circunstância naqueles dias especiais. No encerramento da festa, após a procissão que percorria as principais ruas da cidade, acompanhada de banda filarmônica, era chegado o momento esperado. O padre chamava a atenção de todos para a exibição de gala! Os fogos de artifício hipnotizavam adultos e crianças. Um navio de madeira deslizava sobre um arame de um lado para o outro impulsionado pela queima de pólvora multicolorida que espalhava fagulhas para todos os lados, amedrontando os curiosos que queriam desvendar seus segredos. O público aplaudia com fervor e o foguetório encerrava mais um ano de festa.

Depois de cinco décadas, indaguei a alguns contemporâneos sobre quais eram as suas melhores lembranças da festa da padroeira. Eis alguns depoimentos:

"Eu ficava agoniado pra terminar a novena pra andar na roda-gigante e nos barcos. Paquerar as meninas do sítio e dar um beijo quando estivesse na parte mais alta, pra ninguém ver";

"Rapaz, são muitas lembranças!! Após a missa, a gente assistia ao show pirotécnico do Zuza! Era muito lindo! O fogo correndo de um lado para o outro! Essa é uma das melhores lembranças. A outra era o parque de diversão. Era muito interessante. Hoje eu não tenho mais coragem de andar em roda-gigante. Naquela época era o meu brinquedo preferido";

"Também tinha a sorveteria Maringá. A gente reunia a turma lá. Conversando e observando a movimentação do povo. Era obrigatório comer um cachorro-quente da barraca de dona Flora";

"Eu lembro do parque de diversões, mas eu não tinha dinheiro para andar. Aí, teve um ano, eu já trabalhando, morando em Santana, levei meus filhos. Eles andaram até não querer mais. Recordo com saudade das minhas primeiras paqueras, com 13 ou 14 anos";

"Minha lembrança mais antiga, foi uma vez que fui com o meu pai e minha mãe e ele comprou um guaraná e eu tomei… Foi a primeira vez que eu tomei refrigerante";

"As melhores lembranças que eu tenho são das missas campais. Era tanta gente que cabia no interior da igreja. Depois, era a hora de acender os foguetórios. Zuza Fogueteiro todo ano inventava uma coisa diferente, eu lembro que uma vez saiu um foguete lá dentro da igreja e abria a bandeira com a imagem de Sant’Ana. Era muito bonito!";

"Eu gostava muito dos lanches. Tinha lá um sanduíche feito com tomate verde e uma espécie de mortadela que era numa lata e eu gostava muito!";

"O parque era o ápice também, roda gigante e barcos. Barcos e o carrossel eram inesquecíveis. Foi o que marcou pra mim. Ah, eu ia esquecendo: Tinha um serviço de som, que o pessoal botava os recados oferecendo música para alguém especial. Eu me lembro que tocava muito a Diana, na época. Diana e outros cantores populares.";

"Acho legal a pergunta, viu? As minhas melhores lembranças não são coisas extraordinárias, não! São coisas simples! Por exemplo: vejo-me passeando pela praça cheia de gente. Comprar pelo menos uma roupa nova. E sair observando pessoas que se aproximavam tarde da noite, depois da missa. Sentavam-se nas escadarias e ficavam comendo pão e chupando picolé na noite fria."

"O parque de diversões era o grande atrativo. Às vezes a roda-gigante girava sem ter ninguém. Faltava energia e as pessoas ficavam lá em cima, no frio e sem agasalho e a gente ficava rindo embaixo. Eu achava muito curioso o aglomerado de pessoas durante a festa."

As crianças e os adolescentes jamais esquecerão dos momentos especiais que viveram com os familiares e amigos naqueles anos. E o melhor de tudo é que estamos aqui relembrando quem fomos e o que vivemos. A jornada continua e a vida segue seu itinerário.

Fonte:
https://www.apensocomgrifo.com/2024/08/festa-de-interior.html

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