De onde vêm os sonhos, emaranham-se a eles os pesadelos?
Cleobulina, naquela noite, dividia com Digressão a importância à vida prática do período composto e do simples. Digressão e ela conversavam sobre os medos do inferno, ameaças ao fogo eterno, os pecados cometidos e por cometê-los, o temor em não se salvar e perder as benesses e os louvores do Paraíso.
Entre todas as vozes, naquela noite, a principal estava ancorada no porto de Jaraguá, feito um daqueles mercantes de terras estranhas. Qual era a vida valorosa, disse, a que, certamente, aprendeu a distinguir o período simples do composto. Se sentiu realizada com esta descoberta.
Por que fazia parte do currículo saber diferenciar o período simples daquele composto? Cleobulina via o povo feio, barrigudo e banguelo que se movia na praça central, atravessava a rua, naquele corredor de edifícios altos, velhos, tristes e sem cores, mancos, janelas atrás de grades de ferro, misturava-se a outro povo feio.
Vizinho a uma loja de tecidos, na Rua Barão do Rio Branco, a caixa tocava a mesma música. Não se ouvia outra coisa senão a língua inglesa numa balada. A voz do cantor agarra às paredes, às mesas, cadeiras, piso, teto; ela acertava às portas e atingia o comércio, o povo na calçada.
A balada associava-se a um caixão de defunto arrastado num campo coberto de lama. O soldado, que arrastava o caixão, regressava da guerra.
A letra falava sobre a solidão que amolecia a terra sob os seus pés, sobre nunca mais poder amar, sobre a vida que continuava, sobre o amor eterno, sobre passar o resto da vida se arrependendo, sobre enfrentar o dia, sobre o amor que se foi. A balada insistia em falar sobre a perda.
O sol em Santana derretia as nuvens e intensificava o azul. E a música no bar flanava feito pássaro no céu sem nuvens. Se havia nuvem cinza na música, no céu de Santana sobrevoavam urubus.
A balada toca às horas, gruda, não sai na urina, falando sobre tristezas e solidão. Os eventos, na balada, influenciavam de alguma maneira o povo quando ela se referia à perda, quando se referia à nuvem cinza, quando falava da solidão no amor.
Sacos de feijão na cabeça, sacos de milho jogados às costas e empurrados sobre a carga. E os donos de armazéns compravam a safra de homens com chapéu às orelhas. No bar, trabalhadores braçais na cachaça, cervejas, pão com manteiga e café com leite ao som da balada que se ligava ao soldado que deixou a guerra e trazia, arrastado na lama, um caixão de defunto.
Ao som da balada, o cavaleiro surgiu no pelo do jumento furtado no Panema. Potoco-potoco disparado potoco-potoco sobre pedras do calçamento. Ele mascava bitucas espalhadas na Rua Barão do Rio Branco.
O cavaleiro encarnava a própria solidão e, talvez, nunca encontrasse o amor. Embora a vida continuasse como ela continuava. Ouvia-se potoco-potoco.
A igreja, no coração do comércio, tudo avistava e, por meio do confessionário, tudo sabia. Na última janela, o olhar do mirante, o ponto do qual se descortinava Santana, as ruas, o mercado, o rio, o comércio, os cinco jornais que alimentavam o sertão, outras ruas, as serras desenhadas numa folha de papel e as casas minúsculas. Longe, trafegavam os carros de boi, o povo a pé caminhava; perto, o cinema e os cartazes, o letreiro do filme de estreia.
Potoco-potoco. Passou o cavaleiro. Talvez, ele tivesse vindo de algum navio que atravessou o Atlântico; por certo, fugiu de outra guerra ou, quem sabe, aquele último transatlântico o deixou em Maceió na casa de alguma mulher de mãos finas presas às contas no terço. Potoco-potoco. O cavaleiro se foi. Potoco-potoco. Apitou o transatlântico, que levava os sacos de feijão na cabeça, sacos de milho jogados às costas e empurrados sobre a carga.
Na porta do cinema, o carro de doces. Nas ruas, os vendedores de quebra-queixo. No caixão, em lugar do defunto, uma metralhadora giratória; no cemitério, aparecia The End numa chuva de fogo dos revólveres.
Debaixo da ponte, o cavaleiro, que furtava, se encontrava com o rosto preso às mãos como se o sepultasse. E quando a luz da lua iluminou embaixo da ponte, ele libertou o rosto e olhou o luar. Abriu os braços. Ficou em pé – ele de baixo, ela gigante em cima de uma água parada e morta. Com braços em direção à lua, num pedido, o cavaleiro levitou. Foi levado por ela.
O luar do sertão era uma crítica à razão pura. A estética era autossuficiente.
O carro de som passou na Rua do Sebo. Anunciava em Santana que estava em cartaz “Johnny Guitar”. O som se foi no alto-falante móvel...
...Monumento... Aterro... Camoxinga... Comércio de Santana.
No alto-falante, a voz do locutor dizia que “Johnny Guitar” deixava o cartaz no próximo domingo; última sessão das 14h às 16h. Espetacular interpretação de Joan Crawford contracenando com grandes nomes do cinema. Crawford, desta vez no papel de Vienna, dona de bar, o locutor anunciava na frente da igreja São Cristóvão. O carro com alto-falantes passou onde morava o padre Velho, lento por causa do trânsito de carroças e carros de boi que traziam tijolos das olarias nas margens do Panema, outros areia. Vienna e Johnny, os alto-falantes anunciavam, enfrentam à bala o xerife e os seus capangas.
Outra vez, o carro de som na praça central. O trabalho era circular Santana anunciando funerais, inaugurações, circos, feriados, filmes.
Um rico fazendeiro se juntou à sua filha, aos seus impiedosos capangas e ao xerife decidido a expulsar a dona do bar à bala. Em cartaz até domingo.
O som havia passado nos armazéns da Rua Barão do Rio Branco, passou a botica de Polissíndeto, o comércio de ferro, as lojas de tecidos, a casa dos gelados, bares, a padaria, a Pharmácia, a Loja Solossagrado, a Livraria, o Bar da Sogra. Ao invés de tomar a Rua do Sebo, tomou a ladeira que leva à BR-316. Só até domingo; não peeerdesse “Johnny Guitar”.
O comércio, circunscrito à igreja, era o berço de Santana. Os armarinhos, a beneficiadora de algodão, armazéns de secos e molhados, bares, um cinema, lojas de tecidos.
Dentro de um daqueles comércios, Madrinha, como era chamada, dona de loja em sociedade com uma tia velha, que veio de São Paulo. Lá, amealhou algum e investiu em Santana; comprava de caixeiros-viajantes o que viajava do Recife ao sertão.
Madrinha, sentada numa cadeira de balanço, lia Contigo. Tia velha, que veio de São Paulo, nunca era vista na loja; preferia viver no sítio, onde criava galinhas, ouvia os seus discos e lia em Sétimo Céu a vida dos artistas.
Ajudava no balcão uma menina que Madrinha, irmã de Camundongo, passou a chamá-la de Afilhada. Madrinha era uma tia-avó de Afilhada.
Afilhada, tímida, com vestidinhos simples, perninhas e bracinhos finos, olhos grandes fixos ao chão. Prestativa, dormia e acordava cedo, fazia todos os serviços da casa de Madrinha e ajudava de graça na loja. Nunca reclamava, estava sempre pronta a sorrir e agradar.
Afilhada atendia aos fregueses de Madrinha com habilidade e indagações se queriam mais. Rápida, Afilhada espalhava no balcão as novidades, como aprendeu com Madrinha que a vigiava de soslaio. Afilhada vendia, recebia moedas, devolvia o troco. Os sapatinhos surrados de Afilhada passavam a maior parte do tempo de um lado ao outro, atrás do balcão.
Viesse aqui, Afilhada, Madrinha disse-lhe; corresse logo, menina, ordenava. Afilhada deixou o balcão indo atender ao chamado impertinente. Quando não havia ninguém comprando ou perguntando, ordens de Madrinha à Afilhada, não ficasse atrás do balcão; procurasse o que fazer. Apanhasse uma vassoura, um espanador, desarrumasse as caixas, rearrumasse.
Ouviu o carro de som, que ficou passando aqui na porta o dia todo? Madrinha perguntou à Afilhada. Ouvi. Eu a levava ao cinema, disse Madrinha, se viesse fazer minhas unhas, se cortasse, se lixasse e pintasse as unhas dos pés e das mãos.
Madrinha era pesada, tinha cabelo curto e óculos na ponta do nariz. Gemia a cadeira de balanço com os vucovucos de Madrinha lendo Contigo.
Ajoelhou-se Afilhada e começou o trabalho com a ajuda da tesoura. Ai, ai! reclamava Madrinha. Afilhada ia com jeito. Ui, ui! reclamava de novo. Desbastava os tocos de unhas afiadas, as grandes e as pequenas cobertas por várias camadas de tinta em diferentes cores.
Cortadas e lixadas as unhas nos pés, Afilhada recebeu a primeira mão de Madrinha – gorda e pequena. Afilhada olhou uma mão e olhou a outra mão.
Afilhada via o quanto aquelas mãozinhas contavam dinheiro.
Fim do expediente. O comércio em Santana cerra as portas. Escurecem os mercadinhos, as lojas, os armazéns, padarias, farmácias. O luar do sertão ilumina o cinturão de serras que circundam Santana em seu abraço afetivo. As luzes na igreja acesas; Patacão, já velho, cansado e quase cego, mancava de estação em estação acendendo velas nas 12 lembranças da Via-Sacra, percorria o Calvário noite após noite.
Rasga-mortalhas cruzavam o céu. Santana, alicerçada sobre rica camada de lajedos, cercada por serras.
Acordava Afilhada com o canto de bem-te-vis. Subia, descia ladeiras e, outra vez, na loja de Madrinha, atrás do balcão e, outra vez, o que desejava a senhora, e o que desejava o senhor. Vucovuco lendo Contigo. Nós tínhamos... Não, não tínhamos, não. Perdão! Isso estava em falta. Isso chegaria na próxima vindoura. Era vucovuco lendo Contigo. Tínhamos essas ximbras. Vucovuco lendo Contigo. As cores eram essas e aquelas. As linhas que tínhamos eram aquelas. Vucovuco lendo Contigo. Hora do almoço, hora de fechar, casa, café, cama, bem-te-vis.
Johnny tocava violão e a dona do bar sacou do coldre e atirou de revólver. Crianças deixavam o cinema imitando pistoleiros, mafiosos, samurais; os dedos em riste, atiravam umas nas outras, metralhavam-se mutuamente, distribuíram golpes ninjas; poupou e ratatatá, morreu, morreu, matou, matou. As crianças brincavam nas ruas, nos becos, nas casas; faziam cinema doméstico com retalhos de filmes cortados de fitas japonesas, italianas, americanas, brasileiras, alemães; poupou e ratatatá, morreu, morreu.
Vucovuco lendo Contigo. Afilhada! a dona da loja interrompeu a leitura. Moça em sua idade queria ser famosa. Moça, assim nessa idade, queria anéis em cada dedo, dedos forrados de anéis, em cada dedo três ou quatro desse tamanho e cada brilhante desse tamanho. Nesse mundo de homem quem mandava era a mulher com uma arma na mão e o comando na fala.
Moça, na idade, igualzinho a fita, tinha prazer no mando e não ser mandada por homem nenhum, e queria pisar e não ser pisada. Igualzinho a fita. Moça bonita, assim, bonita de verdade, não aceitava mando de seu ninguém.
Igualzinho a fita. Moça, assim, mandava e era obedecida. Moça assim era só dizer fizesse e era feito. Vucovuco. Igualzinho a fita. Moça, assim com toda essa formosura, tinha sempre o pescoço pesado de correntes, cordões de ouro, cordões da grossura de um dedo. E roupas novas e sapatos novos e coisas novas no cabelo o tempo todo, e ricos perfumes que perfumavam por onde ela passava, e nos braços lindos adornos caros.
Em sua idade, Afilhada, o desejo era passar na rua e o povo fazer mesuras. Mulheres e homens não negavam cortesias à gente poderosa; eles distribuíam os bons-dias e, nas boas-tardes, moça com essa formosura recebia flores. O pequeno tinha medo de ser devorado pelo grande. O poder era sempre mais poder. Afilhada com olhos grandes fixos ao chão.
Mais tarde, ordenou que Afilhada se apressasse e fosse aos Correios levar cartas. Afilhada deixou o balcão, dirigiu-se à agência vizinha ao Banco do Brasil.
Houve em Santana, naquela manhã, um alvoroço de gente e repórteres que se dirigiam à rua do fórum. Afilhada foi descobrir o alvoroço.
Era julgada a pistoleira. Todos disputavam à força o espaço, no julgamento. Afilhada leu tudo a respeito dela, nos jornais. Linda e destemida, a jovem pistoleira atirava no olho dum pinto a cem braças. O Estado apresentava o libelo, as acusações na peça processual rechaçadas v-e-e-m-e-n-t-e-m-e-n-t-e pela defesa da pistoleira.
O Tribunal do Júri convocou 25 jurados. Entre os quais se encontravam os sete tipos textuais; gente sertaneja acompanhou o libelo acusatório com a oratória na voz do Estado cuja tese era enfrentada pela defesa no estreito de Termópilas. Sete foram sorteados. Ao final do júri, os votantes foram Injuntivo, Narrativo, Argumentativo, Científico, Descritivo, Expositivo e Dissertativo.
Os sete jurados, no conselho de sentença, votaram pela culpa da pistoleira em todas as acusações, e ela recebeu a pena máxima a ser cumprida em presídio, na capital. Por decisão, a condenada seria transferida no sábado seguinte, dia 3 de maio, de Santana a Maceió. Na noite da sexta-feira, dia 2 de maio, a pistoleira fugiu com a ajuda da mãe – ambas disfarçadas de freiras.
A notícia da fuga ocupou as reportagens nos jornais de Salvador e do Recife. Alagoas publicava. O povo exigia providências imediatas. V-u-c-o-v-u-c-o. Governo decreta o envio de força especial. Vucovuco lendo Contigo. A polícia foi à caça da jovem de rosto de traços simétricos, que lembravam uma artista do cinema francês. Vucovuco lendo Contigo. Li aqui.
No fim da feira, no sábado, dia 10 de maio, Madrinha convidou Afilhada ao sítio onde morava a tia velha. No domingo, dia 11 de maio, Dia das Mães, amigos e parentes se reuniriam em torno da buchada de bode.
Concluída a feira, Afilhada e Madrinha, de canoa, atravessaram o Panema. O vaqueiro do sítio da tia velha as esperava, no carro de boi, próximo ao Poço do Juá. Amarradas aos fueiros, no carro, montarias cochilavam. As montarias tangiam o tempo balançando as orelhas. Na mesa do carro, o vaqueiro fumava. Madrinha passou a perna na montaria, Afilhada na outra, e tomaram a dianteira. Só três horas mais tarde, foi visto o telhado da casa da tia velha.
Elas comeram a coalhada num prato fundo e planejaram a buchada de bode no domingo. As três sem assunto se foram às redes no alpendre e assistiram o sol pôr no cercado de ouricuris.
Distantes da casa, viam-se as serras que se irmanam no horizonte.
Logo que a luz solar seduziu a lua, reduziu a luminosidade sobre as folhas dos cajueiros e veio a lua grávida despontar radiante.
À hora em que Madrinha atravessou o Panema, avistou homens esquisitos que se movimentavam e estranhos chegavam à beira do rio. Por hábito, Madrinha carregou à cama o winchester, presente da tia velha que veio de São Paulo. Foi naquela região que a pistoleira nasceu. Durante a madrugada, Madrinha não queria nenhuma surpresa.
Adormeceu Madrinha com a ideia de que poderia acordar no meio da noite com gente estranha na casa, na camarinha, à procura do que levar. Já era meia-noite passada, quando o galo cantou.
O vaqueiro tinha ido ao forró e, quando ele saía, só voltava de manhã, na hora de tirar o leite, na hora de matar o bode. Madrinha abriu os olhos e olhou o teto, olhou os caibros tortos, olhou as telhas escuras, os morcegos, as aranhas, ouviu os grilos, ouviu os latidos nervosos dos cãeschorros.
As três sozinhas. Tia velha roncava, assoprava e assoviava. Afilhada trouxe a candeia diante do rosto ao ouvir da Madrinha que viesse lhe trazer água. Afilhada, descalça, entrou de camisola com trejeitos fantasmagóricos. Que diabos! disse Madrinha. Tinha gente lá fora.
Os cãeschorros pararam. Tia velha deixou o quarto e veio juntar-se às duas. Eu ouvi tiros. Foi, tia? Então, era a força caçando a menina de Tonha, que foi tirar a bichinha da cadeia naquele vestido de freira. Tonha, a filha da velha D. Abantesma, neta da beata D. Babélica, que sempre foi rival de Zé Arcide, por causa da quenga Maria Bala.
Oxi! disse a tia velha.
Tonha, continuou Madrinha sem freio na língua, trabalhava com as freiras do estrangeiro, cozinhava, lavava, engomava, passava, limpava. E fez promessa com Santana, conhecendo Tonha, devota como sempre foi, e veio nela a ideia de livrar a filha pistoleira das correntes. Tonha andava, agora, fugida mundo afora.
Era Tonha e a filha? disse a tia velha.
Apostava que era Tonha e a pistoleira.
Será, Madrinha?
Fosse atrás!
Da camarinha não saía ninguém! ordenou a tia velha, no urinol.
O silêncio foi violado por um grito, lá fora. O chamado de uma mulher, que Madrinha reconheceu ser a voz de Tonha. E a tia velha pediu que apagasse a luz.
Ô de casa! a voz de Tonha seguiu chamando. Ô de casa!
Ninguém, dentro da casa, teve coragem de responder ao chamado da mãe da pistoleira. Encolheram-se as três ao terem certeza de tratar-se de mãe e filha que fugiam das forças alagoanas.
Nossa Senhora Santana, nos socorresse!
As fugitivas procuravam lugar, e forçaram as portas, janelas, querendo entrar a pulso. Madrinha na cama manuseava o winchester, dizendo que saíssem as duas dali porque ela tinha arma e atira na primeira que entrasse.
Aproximando-se da janela onde conseguiria espiar o terreiro banhado de lua, Madrinha tropeçou no urinol e caiu. Afilhada tateou e apanhou a arma no chão.
No breu, uma luz entrou no quarto onde se escondiam as três. Instinto levado pelo medo no momento de pânico, Afilhada apontou o winchester em direção à luz na mão da invasora e puxou o gatilho, a arma disparou.
Matou? tia velha e Madrinha perguntaram à Afilhada. O corpo que recebeu o projétil do winchester emitiu horripilante grito, e deixou o quarto escuro.
Uma nuvem cobriu a lua. Galinhas acordaram, cabras no chiqueiro e porcos, bodes baliram, dois burros no cercado atrás da casa de alpendre urraram repetindo o zurro e as vacas no curral mugiram.
Acertei! vibrou Afilhada.
Madrinha e tia velha iluminam o quarto. Elas viram o sangue. Confirmaram.
No terreiro da casa, os gritos da jovem pedindo ajuda à mãe e praguejando porque a sua mão foi estraçalhada pelo tiro.
Dores no ferimento explodiam a cabeça da jovem pistoleira e respondiam no coração da mãe. Segurava a jovem o antebraço, que não parava de sangrar, e ela apertava próximo à mão ferida, apertava ao máximo, à procura de um torniquete, e pedia à mãe socorro, e fazia caretas, gritava e praguejava, jurava vingança.
A velha casa no sítio, calada, quando voltou à luz da lua. A mãe da jovem pistoleira começou a disparar tiros de revólver nas janelas.
Ia já sair quem tivesse na casa! a mãe berrava.
Ia tirar à bala! gritava a pistoleira ferida.
Sumiram o balir das cabras e o zurrar dos muares, cocoricó se foi e as vacas pararam de mugir. Muito tempo depois, ouviu-se acauã anunciar a aurora e logo o sol esparramou-se no terreiro da casa do sítio e do curral de pedras.
Dia quente. Seco. Espinhoso acorda o xiquexique.
Quá-quá-ô! acauã cantava ô-ô-ã, ô-aã!
O vento da manhã balançava as palmeiras, no ouricuri.
No semiárido alagoano, longe dos mangues, lagoas, manguezais, restingas, predominavam a flora e a fauna. O bioma exuberava-se na caatinga.
Craibeiras distantes, distante o açude, os cajueiros adormecidos e distantes.
Primeiro, Afilhada arriscou um olho, na fresta da janela; viu passar um burro, outro burro passou. Depois, Madrinha apareceu na janela dizendo queimar na bala quem visse com presepadas. O winchester em punho, ela ameaçou que ia comer chumbo quem viesse. Por fim, tia velha escancarou a porta da casa e saiu; longe, tia velha enxergou na porteira o vaqueiro voltando da farra.
O vaqueiro, estupefato, olhava as poças de sangue no chão do terreiro. Quis saber se o bode da buchada não tinha esperado. Foi quando soube da véspera e contou sobre a noite de latomia, quando voltava, ter sido a pistoleira alvejada pela força e a mãe presa antes de alcançarem o São Francisco.
Mais tarde, Afilhada tomou gosto em atirar de winchester e, naquela manhã, enquanto o bode era morto e feito a buchada, ela deu 59 tiros num velho angico que estava parado próximo ao curral. Grande e corajoso, o velho, naquele ano de pouca chuva, ainda não tinha florido com as suas flores brancas. Angico, que dava sombra às cabras, ficou todo furado de winchester.
Vieram as chuvas, vieram às roças de feijão, roças de milho, feiras sábados eram cheias, vendilhões armavam barracas na frente da igreja, na frente da praça, no centro de Santana, diante do cinema, das lojas vizinhas, a feira tomava as ruas. A feira, que era a única forte e livre, subia em direção à delegacia de polícia.
Veio o período eleitoral. Madrinha foi novamente convidada e, desta vez, ela cedeu, candidatou-se a uma vaga no Legislativo, com o apoio do partido.
Um desafeto de Madrinha foi emboscado a tiro de winchester. Nessa época, quem cuidava da loja era Afilhada. Madrinha estava mais em Maceió. A tia velha foi forçada a deixar o sítio e assumir a loja, quando Afilhada anoiteceu na cidade e amanheceu na Xepa em direção a Maceió.
Os combates de Cleobulina ocorriam todas as noites. Como era custoso ela pegar no sono.
Antes de adormecer, Cleobulina travou batalhas com fonemas, com sílabas, com morfemas. E ouviu que o morfema do cãochorro era o -o. Nas ruas, um povo feio, barrigudo e banguelo, perguntava onde comprar morfemas lexicais, no câmbio dos elementos mórficos, era a resposta.
O povo feio, barrigudo e banguelo, nas ruas tortas de prédios encardidos em pleno centro comercial, procurava o radical, as desinências, as vogais temáticas e os afixos. Como achá-los nos períodos simples e composto?
Em campo aberto, ribombavam ferozes canhões e, frequentemente, corpos tombavam. Os primeiros a caírem eram os radicais, estes elementos mórficos cuja finalidade era ser a base do significado da realidade.
Antes de ser surpreendida pelo sono, Cleobulina via passar diante dos olhos as desinências a empunhar bandeiras de elementos mórficos em conflito com o radical; cabia a aguerrida desinência flexionar a palavra.
As palavras giravam em torno da cabeça de Cleobulina como pássaros numa revoada. Pássaros que matavam o homem de fome e de sede. Miúdos pássaros, não tão perigosos quanto mosquitos, giravam, giravam, giravam, giravam em torno da cabeça dela.
Ora desinências nominais, ora desinências verbais. Se umas delas tendiam a flexões de números ou gramaticais de gênero, outras em verbos todos presentes nas flexões gramaticais de modo, de tempo, de pessoa, de número.
No pré-sono, ela viu caçarem os pássaros miúdos nas vogais temáticas de 1ª, 2ª e 3ª conjugação. Viu se espalharem o radical, a vogal temática e a desinência.
Em seguida, surgiam na batalha o ensino, a aprendizagem e a formação das palavras. As palavras primitivas atacavam com pedras e paus; as derivadas vinham de estilingue, pandorga, peteca e papagaio; as simples engalfinharam-se com as palavras onde havia mais de um radical, identificadas por palavra composta.
Zumbia sobre Cleobulina, às vezes dentro dela, a derivação, que formava as palavras. A derivação multiplicava-se; ora prefixal, ora regressiva, ora imprópria, ora parassindética por ser desALMada.
Lutava Cleobulina, lutava com ferocidade. Surgia e dessurgia sobre ela cada composição inesperada, que a fazia girar o corpo 360 graus. Esta composição por aglutinação lhe trazia embora em lugar de boa hora; e esta composição justaposta lhe vinha em forma de pesado guarda-roupa, de leve beija-flor.
Os morfemas brigavam de capa e espada com os grafemas. No planalto, as palavras invariáveis em quarto-de-milha; acompanhavam a batalha o advérbio e a preposição, a interjeição e a conjunção.
Veio-lhe o biografismo e foi vencido. E lhe veio a luz azul da ciberescola com a ciberaula; girava a luz azul, girava a ciberescola com a ciberaula... Mas, essa hora, o sol de ouro de Maceió batia-lhe à janela; Cleobulina levantou-se, aborrecida, sem saber se conseguiu dormir ou se foi mais uma noite em vão.
Acordou com a impressão de ter passado a noite num labirinto de prédios e casas, corredores estreitos e degraus em caracol que não a levavam a lugar aberto. Os seus passos lhe carregavam a lugares fechados, paredes altas, altíssimas, que se concluíam em telhados cansados, puídos pelo tempo, inseguros. Janelões com vidros sujos, mato crescido sobre os telhados, paredes manchadas, tijolos expostos e portas que sugam pelos olhos Cleobulina a ambientes escuros.
Na rua, Cleobulina encontrou-se com um senhor de negro e vasto bigode, e cabelo repartido ao meio.
Bom dia! disse.
Parola! foi a resposta dele. Langue.
Mais tarde, Cleobulina soube tratar-se de Saussure.
Vinha por um corredor soturno; subia pela escada de pedras; em suas costas deixou a luz e adentrou a escuridão. Como se os olhos se fecharem ao dia, Cleobulina escalava outra erma rua esculpida pelos pés das gentes que subiam e desciam aquele trecho que dava acesso à rua principal.
Bom dia! ela reconheceu a voz da Poesia, mãe do Poema.
Bom dia! retribuiu-lhe Cleobulina.
Estrofe passou calada, de repente, no alto da escada de pedras, lá fora, sob o sol de ouro de Maceió. Rima conversava displicentemente.
Na passagem escura, Cleobulina teve a impressão de ter visto o Dr. Ritmo, que dava cadência às sílabas. As sílabas tônicas eram as mais exaltadas.
Um cãochorro morto, cobria-se de moscas como se elas fossem a sua mortalha. E, no próximo degrau feito na bruta pedra, outro cãochorro coberto por chagas. Fedor, o fedor levou a mão de Cleobulina a trancar rapidamente o nariz. Tonta, pelo cheiro podre a perfumar o dia, encarou a náusea repentina.
A carne totalmente corrompida e, levada à pressa de seus passos, fugia Cleobulina daquele quadro medieval. Tudo era repulsivo, naquela passagem sem luz, desde o zumbido das moscas ao líquido que fugia do ventre inchado no corpo sem vida.
Eu-Lírico. Era ele. Ela teve a certeza de ter ouvido a sua voz.
ONDE NASCEM OS SONHOS
ContosPor Marcello Ricardo Almeida 27/04/2025 - 20h 25min

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