OBRIGADO

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida

Era ou não era uma ameaça? e alongou a pausa à espera de resposta. A pausa denota a espera em vão. 
Cleobulina, morta na escola, conotava o seu ofício. De repente, ela parou a piaçava. Na frente da sala do diretor, reconheceu a paciente voz arrastada do monsenhor ao professor de Língua Portuguesa. Ouviu a conversa.
Ameaçado, professor?
Não se trata de predicativo ou de termo que caracteriza o objeto da oração, monsenhor, ou mesmo caracteriza o sujeito, monsenhor.
Por qual sujeito foi ameaçado, professor?
E também, monsenhor, não se trata se o verbo está de acordo com o sujeito ou se o substantivo combina com o adjetivo.
E qual era?
O ato de ensinar não é solitário, disse o professor, não é solitário o ato de aprender. 
E?
O ato de aprendizagem e de ensino é um acordo societário entre alunos e professor e vice-versa; a ausência desta simbiose fracassa pela falência da aprendizagem.
O senhor, professor, tinha autonomia.
Obrigado, monsenhor! disse com um lenço à mão esquerda que o levava à testa. Sem acordo tácito de respeito mútuo, monsenhor, não há ensino e muito menos aprendizagem! batia o lenço encardido com leves batidas, secava o suor.
O senhor, professor...
A escola e o professor criam as regras de ensino e aprendizagem, à luz da legislação, e os alunos e as suas famílias concordam; e, caso haja discórdia, há desordem e caos no acordo contratual.
Sim! concordou o monsenhor. O contrato faz lei entre as partes. 
Ensinar e aprender são ações que trafegam a mão dupla, monsenhor.
Por completa falta de compreensão da conversa entre o diretor e o professor, Cleobulina desistiu de ouvi-los. Olhou o céu azul e dirigiu-se aos banheiros imundos como resultado de dois períodos escolares.
Foi o bonachão Catabio, que andava de suspensório e chapéu de feltro, quem arrastou Cleobulina, na época da Rua da Lama, à escola do monsenhor e de seu sobrinho. Era ainda uma escola primária, na Rua Boa Vista, no centro da capital alagoana.
Quem dava ordens à Cleobulina era S. Fei Qdói. Andava Cleobulina com a piaçava até na frente da escola, voltava às salas de aula, sala por sala, ia aos corredores, biblioteca, banheiros, varria as folhas secas no arborizado pátio, na cozinha, onde trabalhava a sua amiga Esmeralda.
Avalio...
Do outro lado da porta, Cleobulina ouvia o avalio do monsenhor. Ela e a piaçava.
As suas aulas, professor, não são todas ruins; também não são boas. Eu conheço o pai do senhor, conheci o avô do senhor, e fui colega de seminário de seu bisavô; não poderia lhe negar essa cadeira na escola. O senhor há de convir, senhor professor, que a escola é primária ainda, está só engatinhando ainda, e o nosso círculo de professores é pequeno ainda, como é pequena a quantidade em minha cabeça de cabelos e paciência. E a escola e a pedagogia não são as viagens de Gulliver. Nem as aventuras de Huckleberry Finn. Há de separar Henry Jekyll de Edward Hyde. Não se encontra na escola a vida e as aventuras de um Robinson Crusoé. A escola não é viagem ao centro da terra. Observe os urupês. Jamais aceite que a escola se torne o mundo perdido. E observe mensagem. A escola tampouco é a divina comédia a outrem, outrossim o coração das trevas.
Cleobulina aborreceu-se com a linguagem do monsenhor. E saiu de onde se encontrava. Deixou a porta à fechadura, à chave e à maçaneta. Seguira em seu ofício. Ao largo dos problemas de quem começava uma escola, e próxima à limpeza nas salas de aula, nos corredores da casa velha que abrigou a escola e os gritos das crianças, os beliscões dos professores, a rapidez da palmatória, a boca lavada com sabão.
O medo de Cleobulina, não era ser surpreendida por Catabio, era pelos gritos de S. Fei Qdói. Se ela matasse hora atrás da porta com o cotovelo no cabo da piaçava, como se lhe desse de mamar, e descoberta por qualquer um deles, fosse o monsenhor, o sobrinho do monsenhor, S. Fei Qdói, Catabio ou outro, um professor daqueles de gravata borboleta, ou um funcionário da escola, que corria o dia inteiro com as mãos cheias de papéis, não lhe restava senão o regresso à Rua da Lama.
O professor deixava livros pesados, magoados pelo tempo, sobre o velho móvel na sala dos professores. Dois dias depois, o professor deu fé dos livros; e dias depois, ele estava de volta aos livros, na sala dos professores, na grande mesa branca, com a pergunta de quem eram esses livros, senhores. Observava-os de longe. Aproximava-se deles. Tecia-lhes elogios. Folheava-os com espanto. Fazia longos comentários sobre os seus próprios livros sem saber que ele era o único dono. 
Quem foi o monstro que deixou essa riqueza abandonada! reclamava aos colegas professores, no intervalo das aulas. Ninguém responde?
Não se sabe, professor! era a resposta de um.
Não sabemos! era a resposta de outro.
Pergunto-lhes, senhores, porque tive livros assim. Exatamente assim. E eles sumiram lá de casa. Eu os procuro há meses, sem sucesso. Hoje, vejo-os. Revejo-os. Serão os meus livros estes aqui? ninguém respondia ao monólogo do professor, que tinha os braços pesados de provas a serem corrigidas. Talvez, disse, sejam os meus. Mas como eles vieram até aqui! espantava-se. Eu acaso os trouxe? Ia, voltava. Alguém é o proprietário desses livros?
Não! era a resposta de um.
Não! coincidia a resposta de outro.
Mas eles são tão parecidos com os meus, disse, até essa marquinha de gordura me lembra o dia em que comi galinha e folheava páginas assim.
O Prof. Solavanco pôs os livros debaixo do braço e os levou com ele.
Se alguém reclamá-los, disse Solavanco, peça que venha falar comigo.
Saiu. Voltou.
Prefiro deixá-los aqui por alguns dias. Sou adepto do benefício da dúvida. Vou procurá-los lá em casa mais um pouco. Eles ficam aqui por mais uns dias. Não posso ser acusado de furto. Não sou tão leviano assim.
Comunicavam-se por olhares, na sala, os professores. O Prof. Solavanco não percebeu a pragmática exercida entre os colegas que dividiam a mesa do café da tarde.
Como são parecidos com aqueles livros que sumiram lá de casa! deixou a sala. Iguaizinhos, disse, de uma semelhança espantosa. Até mesmo a mancha de gordura aparece entre as páginas. Meu Deus, quanta coincidência!
Leve os livros, professor! alguém falou antes que Solavanco fechasse a porta.
Levo? disse.
Leve! outro reforçou.
E se não forem os meus? disse contando as sílabas. 
Ninguém reclamou até agora, comentou um colega. Eles estão há dias no mesmo lugar.
Não sei se os levo... Não sei se não... E se eu levar e o dono vier atrás?
O senhor os devolve, professor.
Devolvo-os.
Leve-os.
Não sei.
Então, disse um professor aborrecido, deixe-os!
O monsenhor e o sobrinho começaram uma escola primária, no centro de Maceió. Cleobulina atravessava o dia com a piaçava nas mãos.
Por que não faz uma escola assim em Santana? ela disse.
Quem sabe, Cleobulina, quem sabe! disseram o monsenhor e o sobrinho. 
Ao término das aulas, os alunos iniciavam o festival de gritos, empurrões e machucados. Travava-se competição desleal. Quem podia, procurava a sua trincheira; quem era surpreendido por socos e pontapés, logo tombava no campo de batalha.
De longe, Cleobulina assistia a tudo. Ela e a piaçava.
Uma explosão de hormônios fazia os alunos descobrirem o que qualquer outra idade desconhecia. A fúria no prazer do grito, da competição do grito, como se gritar fosse a última barreira humana a ser vencida. Esbravejam os alunos na escola do monsenhor e de seu sobrinho, demarcam território, competem feito a teoria de Darwin, assim falava o professor de História.
Em Mangabeiras, em um sítio privilegiado, na encosta da iluminada colina se avistavam as cores que brilhavam nas águas do oceano sob o sol de ouro de Maceió. Um casarão de quatro pavimentos e largas paredes, degraus de pedras pelos quais se acessava a ampla, iluminada cozinha onde Pragmática trabalhava com a filha Cleobulina. A dona da pensão, que era dada à leitura de romances, dobrava os braços, apoiados na abertura da janela diante do alegre mar, relia As Aventuras de Zé das Cruzes, que lutava contra os cangaceiros.
Não abandonava Cleobulina os degraus de cimento e pedras, no Orfanato São Domingos, em Mangabeiras. Ela subiu com o recém-nascido encontrado no lixo. Cheia de compaixão, entregou a criança às mãos enrugadas de quem veio recebê-la.
Pragmática, a amiga de infância de Cleobulina, e mãe de Cleobulina, que Cleobulina desconhecia, trocava a noite pelo dia à beira do fogo e desconhecia fim de semana, dias santos, dias feriados. Mangabeiras conhecia a pensão que se adaptou na geometria da rua.
Na pensão da filha da viúva Dodona, a polifonia nunca terminava.
Numa mesa de almoço de domingo, os hóspedes teciam os seus retalhos de vida:
“A minha vontade de verdade era a de que o Dia das Mães fosse eterno. Mas de que valeria essa minha vontade! a minha vontade era uma vontade sem importância aos outros.”
...
“Embora hoje fosse o Dia das Mães, eu preferia bem mais tomar partido de meu falecido pai a quem devia toda a minha formação, caráter e opinião. Foi com ele que aprendi que a mulher não podia subjugar-se ao homem.”
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“O meu churrasco dos domingos era sagrado. Essa categoria de sagrado, que dava ao churrasco, eu tinha a impressão de que aprendi com aquela minha tia sacerdotisa do amor. Ela dava esse ar de sagrado à carne. Ela dizia que toda a carne era sagrada.”
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“A idade já não me ajudava muito.”
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“Amanhã o livro ganhará outro formato; talvez formato de formiga, talvez de mosca. Os livros eram sempre livros e as vozes dos livros entraram em minha cabeça, difícil saírem. Eu ficava sempre dos dois lados, no balcão: era amor e ódio ao livro. Poderia ter mantido o negócio de livro e não consegui mantê-lo.”
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“Eu queria trabalhar naquela loja de sapatos.”
“Era o meu sonho também.”
“Eu preferia trabalhar num banco.”
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“As vendas, sempre as vendas, tudo em mim era em torno das vendas; as vendas não iam bem ultimamente, e tudo me deixava numa situação lamentável.”
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“Mas chega de falar no Dia das Mães!”
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“Não, gente; agora vamos falar no Dia dos Pais.”
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“Só o futebol poderia ser tão sagrado quanto o churrasco de domingo.”
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“Quanto tempo eu ainda tinha que esperar a minha aposentadoria!”
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“Amanhã, após o expediente, eu irei a uma imobiliária, outra vez.”
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“Eu já fui, em relação aos livros, um sujeito simbolista.”
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“Se preferia trabalhar num banco, por que não estudava?”
“Nossa amiga contadora, ali, não fazia outra coisa.”
“Gente, ela não largava o livro até mesmo almoçando!”
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“Maldita hora em que eu fui me meter nessas vendas malditas!”
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“Sempre nessa data de Dia das Mães, os dias ganham um ar especial.”
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“Eu queria que o meu pai estivesse vivo.”
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“Churrasco e bom futebol, e cerveja estupidamente gelada. Dessas coisas mágicas eu jamais abriria mão.”
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“Me enfiei no serviço público, quando fui expulso da igreja, e eu ainda não larguei aquela ossada na secretaria municipal. Assim que saísse a minha bendita aposentadoria, eu montava na mula e furava o mundo feito faca de ponta.”
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“Não que eu acreditasse em tudo o que se escrevia, porque era mais fácil tomar mentira por verdade e vice-versa. Mas, na sexta-feira, nos Correios, li que havia na cidade uma novidade; e eu queria verificar isso.”
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“Quando eu era um sujeito simbolista, em relação aos livros, essa minha condição simbólica me deixou cada vez mais totalitário.”
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“Não falei? Tinha que estudar, se quisesse trabalhar em banco.”
“Numa loja de sapatos não havia exigências assim.”
“Queria pensar mais tempo na generalização dessa mesa de domingo.”
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“Às vezes, a morte seria o melhor remédio entre todos os remédios.”
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“Talvez, eu nunca fosse mãe; e, assim, nunca saberia exatamente o que era comemorar o Dia das Mães, sendo mãe.”
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“Muitas noites, eu acordava do sono achando que estava ainda na casa de meus pais. Me levantei da cama indo direto à cozinha, porque sabia que na cozinha, ao lado do café com bolacha, o Selma e a caixa de fósforos, eu encontraria meu pai. O cheiro dele ali, o olhar carinhoso, o toque, quando ele me pegava na mão ou no braço. Mas, de repente, eu me dava por mim e reconhecia a pensão, e ficava sem palavras porque meu pai não estava mais aqui.”
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“Coliseu moderno era o campo de futebol, isto já foi dito tantas vezes. E tantas vezes disse que a carne do churrasco era a carne queimada no sacrifício.”
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“Minha vida no seminário foi terrível. Fora do seminário, sobrevivi a dois casamentos fracassados e a uma filha que tinha vergonha do pai.”
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“Se eu fosse enumerar todos os passos que pisei! O problema foi que eu conheci alguns becos, algumas praças que não eram nem isso nem aquilo; então, eu ficava meio assim, eu ficava nem pedra nem tijolo. Entendia o que eu queria dizer? Fiquei assim.”
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“Pessoalmente, não queria mais ser um sujeito totalitário, em relação aos livros, preferia ser fragmentário mesmo, descontinuado e múltiplo.”
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“Ontem, eu sonhei que já era enfermeira. Sonhei que fui trabalhar na casa dum velho rico. Sonhei que ficava sozinha com ele. Sonhei que nunca mais eu teria que sonhar em ficar rica. Mas o canto do galo roubou meu sonho.”
“Eu também já tive esses sonhos ridículos!”
“Eu não queria um velho rico. Eu queria um médico rico.”
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“Em meu tempo de escola, eu paquerava uma Esperança. Nunca acreditei em esperanças. Hoje mesmo, dava jeito nessas vendas; não ia deixar que outra segunda-feira me prometesse trazer esperança. Ficava a vida toda esperando um dia terminar e esperando outro dia começar. Minha vida foi uma gangorra. Eu não aguentava mais isso!”
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“Como escreveu o pai na porta do quarto dele e da mãe: Eu amava viver aqui.”
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“Devia parar com esses assuntos que tornam o domingo desalumiado.”
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“Ia mais uma caipirinha, aí?”
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“Só uma filha e essa única me ignorava por completo e completamente. Ela nunca me escrevia, ela nunca queria saber de mim, ela nunca perguntava como estava a saúde do pai. Decepção completa com esse ser humano rebelde. Até hoje eu não sabia a quem minha filha saiu tão ruim, tão chata, tão sem-vergonha; não puxou à mãe, porque a mãe dela sempre foi uma santa, e todos na casa da mãe vivia num altar de santos, desde o ex-sogro, a ex-sogra, os ex-cunhados, ex-tios, ex-tias, ex-tudo eram todos santos à espera de canonização.”
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“Não era isso. Muito pelo contrário.”
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“Éramos mesmo seres finisseculares, e muitos ainda não sabiam. Fossem ler alguma coisa, seus não sabidos!”
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“Viver pobre o resto da vida? Eu só ficava se fosse com alguém rico. Por que eu ia querer quem não fosse?”
“Por que ela só falava em ficar rica?”
“E você não?”
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“Talvez eu fosse feliz e não soubesse ainda. Mas como saber!”
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“Cada um de meus irmãos trazia um presente à mãe no Dia das Mães e, até onde me lembrava, eles transformavam o dia num parque de diversão.”
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“Sempre fui amiga de meus irmãos e de minhas irmãs, principalmente do irmão caçula, que era o único parecido com o pai. Infelizmente, ninguém aparecia aqui em casa porque não gostavam do meu marido. Mas eu falava com os meus irmãos quase todos os dias; ligava, queria saber como eles estavam.”
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“Um lugar sem futebol era um lugar sem vida.”
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“Engraçado; agora, eu me lembrei que no seminário tinha um pé de caqui. E como eu adorava caqui; vivia lendo a Bíblia debaixo do pé de caqui.”
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“Não foi bem isso... Não foi bem isso que eu quis dizer. Não sabia se compreenderam!”
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“Vocês leram o que os jornais publicaram?”
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“Por que gozava de meus sonhos? Como se não sonhasse também!”
“Isso porque ainda não chegamos onde o doce era amargo e o amargo doce.”
“Talvez eu pedisse mais um pouco de sorvete de goiaba.”
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“Comecei a trabalhar muito cedo, e o cedo ainda não era o suficiente.”
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“Quando eu passasse no concurso do Banco do Brasil, quando eu fosse uma das sócias na AABB, quando esse meu salário fosse gordo, quando o meu trabalho não fosse tanto... Talvez conhecesse alguém no banco, talvez alguém me conhecesse; quem sabe, um levasse o outro a sério; quem sabe, surgisse entre nós aquela comichão; quem sabe, a comichão demorasse a passar... Queria que o dia de minha sorte me chegasse logo, queria que o dia de sair dessa pensão não tivesse tão longe, queria procurar uma casa e financiá-la pelo banco, queria talvez comprar um carro ou dois e também uma bicicleta; queria talvez ter um jardim na frente de casa como esse jardim daqui da pensão...”
...
“Ah, eu nem queria pensar em morrer como morreu meu pai! Minha mãe foi logo depois dele.”
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“Todos os tostões com futebol, cerveja e churrasco eram bem gastos.”
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“A minha filha era do segundo casamento; no primeiro, não houve filhos, só amor, ou seja, sexo, porque amor e sexo eram a mesma coisa, e sexo e amor eram sinônimos. Muita cama e muito sol, porque sol era amor. Passeávamos de braços dados e de mãos dadas pelos parques. Foi em um dos passeios que eu conheci a minha segunda parceira de cama, mesa e banho.”
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“Mas o que valia mesmo a pena era o domingo; um dia maravilhoso!”
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“O que os jornais publicaram, ultimamente, foi um horror.”
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“Eu não entendi essa coisa de doce amargo e amargo doce.”
“Foi só brincadeira.”
“Ui! até parecia uma premonição.”
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“Catava cliente, e cada cansaço caminhava comigo. Era isso? Tinha que perguntar à garrafa; mas a garrafa e o copo era uma amizade inseparável.”
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“Queria beber até cair como eu fazia no Dia das Mães, quando morava na casa de meus pais.”
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“Quase sempre, eu ficava sonhando; construindo no imaginário quando eu morava com os pais e os irmãos; àquela época, quando julgava que o tempo era sem fim. Os meus discursos eram sem fim, e minhas ficções de amor eram sem fim, e minha poética era sem fim, mesmo sem ter nunca escrito nenhuma linha de absolutamente nada.”
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“Passava a semana sonhando com o domingo de futebol.”
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“Como eram doces os caquis, no seminário!”
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“Não sabiam o quanto estava emocionado nesse mês de maio. Já passei no alfaiate e encomendei um terno; fui convidado a ir a uma festa. Na verdade, eu fui convidado a ir a um casamento de uma colega no trabalho.”
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“Eu ia parar de assinar jornais.”
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“Ele tem que ser inteligente.”
“E, principalmente, rico.”
“Talvez, um toque de beleza. Que tal!”
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“Queria seguir minha vida, minhas vendas e meus lucros; pagava minhas contas em dia e falava sempre o óbvio. Isso era o que meus clientes gostavam de ouvir: o óbvio. Só havia segurança no óbvio. Eu era um vendedor itinerante do óbvio.”
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“Ficar só não era fácil! Chegavam essas datas festivas, essas coisas que lhe tomavam de assalto. Dia das Mães era mesmo um desperdício!”
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“Lá em casa, foi estabelecido o ritual do sábado. O pai e a mãe iam ao cinema, perto de casa. Eles voltavam da rua falando sobre O Garoto.”
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“O que me tirava da cama cada manhã era o futebol do domingo.”
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“Minha filha sempre foi terror, um terror que tinha a cabeça inchada pela Europa. Eu dizia-lhe por que Europa se aqui era ó! Lá fora, minha filha, não tinha nada a ser dado a ninguém; tinha que ser tomado, mas não dado. A turma, lá de fora, veio aqui, levou o que aqui encontrou. Agora, queria sair daqui? Não fosse fazer essa besteragem. E quem disse que ela me ouvia! Hoje, sendo franco, não sabia se ela se encontrava lá ou cá.”
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“Li tudo sobre a Teoria da Relatividade Geral de Einstein.”
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“Essas coisas. Não saberia se entendiam essas coisas! Aposentar... Me aposentar... Aposentar-se... Aposentadoria, aposentadoria não pensava, porque queria mesmo era trabalhar até morrer. Se chegasse, porque o dia chegava um dia, o que me amedrontava era, no processo de aposentadoria, faltar documento; e se faltasse, minha aposentadoria seria anulada, e, por fim, voltaria ao trabalho, nos Correios. Era meu sonho!”
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“Meu amor pelos livros era eterno.”
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“Era o dinheiro que azeitava relações.”
“Imaginava um mundo sem dinheiro?”
“Não conseguiria nem se fosse possível imaginar.”
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“Não vendia gato por cabra, nem algodão por papel de embrulho.”
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“O bisavô era guarda-livros, meu avô contador, o pai também e os irmãos mantiveram a casta. Mas, aí, vieram vacas magras e o pai foi mandado embora da firma; ficou desempregado, dependia toda a casa dos tricôs da mãe. Nossa família grande, o pai sem emprego. Chegava abril, chegava maio, chegava o frio. Chegavam junho, julho, agosto, setembro. O pai não saía duma rede velha lendo histórias em quadrinhos. Na mesa, tínhamos fígado de boi, no Dia das Mães, e os fãs de dobradinha; todos em volta daqueles pratos deliciosos que o pai fazia. A mãe na sala tricotando.”
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“Amava meus pais acima de tudo. Me falaram que viram crianças levadas, naqueles anos. Nem novelas mostrariam!”
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“As pessoas viam aquele homem cheio de medalhas, aquele homem com os seus galardões. O que pensavam as pessoas vendo aquele homem assim!”
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“Essa carne do almoço, nesse domingo, não me caiu bem.”
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“Quem não trabalhava, ouvia de minha mãezinha, era jogado às traças.”
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“Eu nunca iria me livrar dos livros, nem estes de mim.”
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“Era o dinheiro quem fazia todas as vontades.”
“Aconteceu, uma vez, de eu ter, entre mim e um livro encontrado nas ruas, uma novela. Acreditam? A melhor novela, foi a melhor que eu já li. A novela me fazia tão bem! Acabavam os capítulos e eu não dormia, e se dormia, sonhava que vivia naquela novela.”
“Não se fazem mais novelas assim?”
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“Nessa profissão que abracei, ela exigia do vendedor obediência a um conjunto universal de regras. Talvez, fosse o que meu pai quis me dizer e eu não lhe dei oportunidade.”
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“Dia das Mães, lá em casa, como devia ser na casa de todo alagoano, era festa. Cachaça em caipirinha... Tínhamos belos limoeiros no quintal.”
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“Vez ou outra, ouviam-se as ameaças daqueles anos doentes. Vizinhos iam às ruas denunciar vizinhos e pais ficavam contra pais e contra filhos.”
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“Enquanto pessoas eram presas, o tio fantasiava.”
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“Os discos-voadores visitavam a Terra desde a origem dos tempos. Era o que eu ouvia, na escola. Li nas revistinhas de heróis.”
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“Engraçado... Achei que fosse ficar na pensão só por algumas semanas. Engraçado... Como era a vida! E estou aqui há mais de 30 anos.”
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“Aonde fosse tinha um livro que me acompanhava.”
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“Ultimamente, as novelas eram de ficção científica, super-heróis voando, gente matando como se fosse um jogo divertido. Essa turma que escrevia, não escrevia mais novelas onde não faltava dinheiro.”
“Novelas eram todas iguais.”
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“Era vendedor itinerante, mantinha em dia as promessas. Aprendi e sabia fazer meus clientes felizes.”
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“Hoje, o Dia das Mães era só isso?”
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“Eram agentes de Vargas...”
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“Não havia diálogos.”
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“Era fã de romances.”
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“Como o tempo passava! Já morava nessa pensão há décadas. Quando cheguei aqui era estudante.”
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“Se eu não tivesse um livro comigo sempre, eu estava nu.”
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“Nunca mais li um conto de mistério!”
“Eles poderiam escrever mais histórias sobre como ganhar mais dinheiro.”
“Havia uma crise?”
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“Eu defendia a maior felicidade possível entre as pessoas.”
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“Dia das Mães perdeu a graça. Não tínhamos mais ninguém em volta à mesa comemorando o feito grandioso em ser mãe, e suas conquistas, e vitórias nas batalhas, os seus despojos, os seus uis e ais.”
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“A família da sacerdotisa do amor era bem complicada, ouvia de minha mãe. Eu queria que voltasse à casa de sua tia, disse ela, quase todo dia ouvia a minha mãe me dizer que não fosse lá porque tudo ali era estranho.”
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“Foi na escola que eu comecei a gostar de Ciências lendo historinhas nos desenhos.”
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“Só esperava não ter que ficar mais 100 anos nesta pensão. Não que eu achasse ruim morar aqui. Queria ter o próprio canto, pois joão-de-barro tinha.”
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“O que era um homem sem um livro: um homem em queda livre.”
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“Cada mês, uma nova angústia. As contas acumulavam-se, acumulavam-se sem parar. Cada mês, os donos da pensão ameaçavam aumentar o aluguel.”
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“Cada vez em que menti aos clientes, que os enganei, menti e os enganei foi por uma boa causa. Nunca menti e enganei à toa; cada mentira e cada engano tinham finalidade. Eu queria com isso produzir aos clientes boas consequências como de fato as produzi. Entregava os produtos no prazo acordado e recebia o pagamento no prazo estipulado; fazia por meios contratuais; conduzia poucos às barras da D. Justa, e esses poucos me levaram muito tempo, muita paciência e prejuízos.”
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“Quando chegava o Dia das Mães, lá em nossa casa, ficávamos todos ali e a conversa se arrastava por horas. Nem a casa onde nasci e fui criada existia mais; também não existia mais a igreja onde fiz o catecismo, crisma e a primeira comunhão; e não existia mais a escola onde aprendi o beabá. Me prometeram que, quando eu morresse, não me esqueceriam. Como isso era possível, se fui esquecida em vida!”
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“O pai falava muito em modernidade; a mãe preferia falar em coisas que se distanciasse da modernidade, mesmo sendo moderna.”
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“A vantagem em visitar, escondido da mãe, a casa da tia, foi ter aprendido a fazer churrascos maravilhosos.”
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“A casa de meus pais, na parte de cima da casa de meus avós, era na frente da igreja. Tudo o que acontecia na igreja, replicava em nossa casa. O padre mandou instalar um serviço de alto-falante, e o que o padre falava na igreja, a rua ouvia. A casa de meus pais e de meus avós, uma em cima da outra, eram também uma igreja? Tudo da igreja eu sabia por ter sido criado ouvindo a voz que repetia os capítulos e fascículos bíblicos, os livros e as passagens. Eu acompanhei as procissões, fiz parte de lava-pés. Era natural que eu pertencesse à igreja. Minha carne, ossos e sangue pertenciam a igreja na frente da casa de meus pais e de meus avós. Quando o pai ficou tuberculoso e perdeu o emprego, ele conversou com um e conversou com outro, e o padre conseguiu que eu fosse recebido no seminário; foi ali onde concluí os estudos sem as tais revistinhas de Flash Gordon.”
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“Pessoa sem ter seu próprio canto, podia-se dizer, não era Fernando.”
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“Quantos anos ainda tinha que viver, não sabia. Sabia que não conseguiria viver nem mais um dia se não tivesse acompanhado pelo livro.”
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“Nunca ia voltar atrás!”
“Nem eu!”
“Também queria dizer que o encanto estava só começando. Queria mesmo presenciar as profecias. Aliás, o que diziam da carne de hoje? Eu ia de sorvete de goiaba. Me acompanhavam? Domingo passado fui no sorvete de manga.”
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“Meu pai não vivia mais. Nada mais me importava; o que me importava não existia.”
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“Era quase todo almoço, no Dia das Mães, aparecia todo tipo de conversa. O pai costumava acender um cigarro de palha e, depois, ele substituiu o palheiro pelo cachimbo. O pai sentado, pernas cruzadas, aqueles cambitos, braços finos cheios de cabelo, óculos com armação de tartaruga, aliança de casamento era grossa assim. Método, o pai dizia, não loucura, gente, e estava em toda a parte; nas pequenas, grandes cidades havia um que cavalgava um cabo de vassoura, o seu cavalo de pau, e conquistava reinos imaginários, prendia o vento com as mãos e bania os reis cruéis, que oprimiam as formigas. Esqueceram-se de avisar ao cavaleiro em seu cavalo de pau, que esse poder apregoado por ele só existia mesmo em sua cabeça? Mas ele ameaçava os grupos seculares como se fosse possível apodrecer os corpos saudáveis por dentro, como fazia o câncer. Método surgia com figuras de retórica, firulas, filigranas e eufemismos. Apavorava com as suas hipérboles sobre a morte, a vida após a morte, o fim do mundo. Já não se enfrentaram sozinhos. Os fanfarrões e covardes, os fujões e alargadores de medos. Naquela realidade tão distante e tão próxima, o cavaleiro cavalgava em todas as ruas parará-parará-parará! Lá ia ele rua afora. Baixava normas, que o sol não deveria, a partir de seu decreto, sair em dias ímpares e somente poderia aparecer durante à noite, e a lua que fosse já, já se lixar e parará-parará-parará! Ele cavalgava o método como se cavalga um cavalo de pau parará-parará-parará! pela cidade. Em seguida, outros e outros e outros, que cavalgam em seus métodos de roer por dentro que nem cupim nos móveis caros, ancestrais. A cada dia, um decreto novo, a cada dia, um novo decreto. Assistiam a tudo os órfãos do senso crítico, filhos da cognoscência deficitária, eles participavam em efusivas aglomerações, as faixas, palavras, rojões diante de casas, diante do respeitável público e a turba fazia ameaças à história se acaso viesse alguém contrariar o cavaleiro a desfilar rua afora parará-parará-parará!”
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“Quando as famigeradas notas naquelas provas me reprovaram, porque eu não sabia exatamente a diferença entre moderno, do latim modernus, que só na faculdade aprendi, nem sabia que modernismo foi palavra usada por artistas europeus ao desestabilizarem a estética tradicional, e só mais tarde soube da boca dum ex-namorado, onde guardava a minha língua nas aulas. Modernidade era uma língua numa boca molhada. Modernidade não só uma língua, também uma sociedade governada pela ciência e pela razão, eu disse. Não havia razão melhor do que uma boca tocando em outra boca sem limite nenhum.”
...
“Mais churrasco, aí?”
...
“Foi uma violência o que fizeram comigo, no seminário.”
...
“Achava antes que ia conseguir financiamento; errei.”
...
“Ninguém odiava mais o livro do que eu. O livro só me trouxe prejuízo.”
...
“Acaso gostaram da carne de hoje?”
“Me pareceu no ponto.”
“Preferi o sorvete de goiaba.”
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“Minha desgraça foi meu dilema com jogos; qualquer dinheiro que caísse em meu bolso, no menor bolso, eu saía correndo e ia apostar na sorte. Passei a vida toda apostando na sorte.”
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“Tudo passava. O Dia dos Pais, Dia das Crianças, Dia das Mães.”
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“O pai e a mãe formavam os filhos. Um engraxate, outro alfaiate.”
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“Talvez, se eu tivesse aprendido mais com a minha tia, talvez hoje, eu e a mulher tivéssemos essa pensão cheia de filhas e filhos.”
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“Amava o seminário, porque era meu terceiro lar. Se já considerava meu segundo lar a igreja, o primeiro não era a casa de meus pais.”
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No outro lado da cidade, na Rua Boa Vista, na sala da direção da escola:
Avalio, nesses casos, disse o monsenhor, a escola é um desafio humano.
É? Não sabia. Desde quando?
Como se diagnostica o que se desconhece? olhou sério o encardido lenço a ir duma mão à outra e parar na fronte suada do professor.
Hã! disse com o lenço à boca.
Avaliação diagnóstica é um erro, professor! Educação é ciência, e avança por trincheiras de erros e acertos, e o ponto de partida é a hipótese, é a avaliação prévia, não a avaliação diagnóstica. Qual, professor, é a sua?
A mi-nha...? engasgou-se diante do monsenhor. Foi como se afundasse em texto injuntivo, ele dividiu a dúvida em sílabas, e pareceu alguns dicionários, que esmiúçam unidades léxicas. A mi-nha...
Rege a todos, em outras partes, governa, o direito das obrigações. Nessa escola, professor, não é diferente. Obrigação de fazer, obrigação de não fazer.
Sim, sim, monsenhor! engoliu a seco; pigarreou outro texto injuntivo.
A prática pedagógica é um inventário.
Um in-ven-tá-rio? levou o lenço à fronte. Não sabia.
O inventário envolve, no mínimo, áreas de Ciências Jurídicas; exigem-se conhecimentos sobre direito das sucessões, direito de família, direito das coisas, guiados pelos códigos civil e de processo civil. E, ainda assim, nas esquinas da cidade, há pessoas a torto e a direito que convencem o tolo que é fácil interpretar um processo de inventário e partilha.
Pro-ces-so de in-ven-tá-rio e par-ti-lha?
A escola, professor, é um processo de inventário e partilha.
Não sa-bia.
O problema do senhor, professor, com a realidade em questão, é que ficou aposentado durante 80 anos. E agora voltou a ensinar com o atraso de 63 anos.
Na cozinha da escola.
Não para de morrer gente! disse Cleobulina.
A banca de Cleobulina, em Maceió, na Feira do Passarinho, não surgirá da cartola, como a usava o Conde Passapano. Ela, durante o seu ofício na escola primária, sequer se imaginou dona de barraca de temperos, de frutas e utensílios, na feira, conforme havia sido a sua falecida mãe.
Não, amiga, disse Esmeralda, não para. Me deixe ir ao fogo, Cleobulina, antes que esse mingau do monsenhor grude na panela. Não posso perder esse emprego, depois que Quasímodo morreu.

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