O inconsciente amontoa botijas de ouro que se transformam em vespas?
Cleobulina dirigia-se apressada, apressada atravessou as portas da igreja e se ajoelhou apressada ante as imagens esculpidas, nos nichos da Livramento. Cobria Cleobulina a cabeça com um véu de tule e a boca com o sinal da cruz na ponta do polegar direito.
Se paixão é o afeto, afetividade é vida plena? Faz-se a vida por emoções, por sentimentos aumentados e diminuídos quão poder de agir, disse o celebrante na Livramento.
Todos os 40 dias, contados na folhinha, ela estava na Livramento. Orava e pedia perdão. Daquela Quarta-Feira de Cinzas à Quinta-Feira Santa.
Não deixava a cabeça de Cleobulina o homem gordo que abria as portas no Cartório e morreu sob o sol de ouro de Maceió, no centro da capital. O homem gordo, que abria as portas no Cartório, foi morar no Ergaomnes.
Era o período de penitências, jejuns e caridades. Ecoava em Cleobulina, que fazia orações no genuflexório da Livramento, de quando em vez aquela voz de trovoada de Guabiru Lambujem, o filho do cangaceiro Camundongo.
Que fazia aqui? perguntou a Guabiru Lambujem. Era apenas a imagem, a lembrança do filho do cangaceiro Camundongo, tio de Cleobulina.
Escondesse, aí, depressa, escondesse na banca, depressa, Cleobulina, escondesse esse revólver, aí. Mais tarde, venho buscá-lo! disse o jovem Guabiru na linguagem do velho hábito dos cangaceiros. Ele sabia que ela era uma esfomeada. Isto começou em Santana, onde a chamava de Cleobulina Esfomeada; como a fome e a sede eram infinitas, enquanto vida tivesse, depois a chamava apenas de Esfomeada. Escondesse, aí, escondesse, aí, depressa, Esfomeada!
Os jornais em Maceió não sossegaram os olhos de Cleobulina, a cabeça, as mãos da feirante cheias de jornais com a imagem de Guabiru Lambujem. As reportagens, que eram contínuas, traçaram o dia a dia da pistolagem.
Escondesse, aí, escondesse, aí, depressa, Esfomeada!
No genuflexório, a feirante Cleobulina entregava o corpo, os pecados, a alma arrependida à penitência, ao jejum, a caridades. E no Cemitério Ergaomnes o túmulo do notariado que abria as portas do Cartório. E Lambujem envolvido na morte do homem gordo que abria as portas no Cartório.
O marceneiro, meu pai, chegou a Santana, saiu fugido de Água Branca; o meu finado pai, que andava de muletas no sertão, era irmão de Camundongo, o mesmo assim chamado Camundongo, que era metido a tocar sanfona, a fazer versos, contar piadas, encher o mundo de pulhas, fazer bagaceira, matar, roubar, fazia e acontecia, acusado de ser cangaceiro. Os jornais traziam Camundongo da época do cerco a Olho D’Água dos Lírios. Os cangaceiros entraram em Olho D’Água dos Lírios e queimaram a igreja e o cartório.
Cleobulina no genuflexório da Livramento. Cabisbaixa. Os lábios trêmulos balbuciavam orações e pedidos de perdões.
Por que o tio Camundongo não fez, ajoelhada, disse Cleobulina, como fez o tio, irmão dele, Cangasso, que fugiu do cangaço, foi ser coveiro em São Paulo? Ave-Maria cheia de graça...! Quantas vezes, o pai aconselhou o tio Camundongo a deixar a vida de cangaceiro, como o pai deixou e deixou o seu irmão Cangasso! Salve Rainha, mãe de misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, salve...! Isso parecia um castigo o que fazia Guabiru Lambujem. Eia, pois, advogada nossa, esses Vossos olhos misericordiosos a nós volvei.
Celebrada pelo Pe. Prognóstico.
Passou Sábado de Zé Pereira, passou o Bloco do Bacalhau. Ecoavam na nave principal os gritos dos foliões imaginários:
Se encontrar castanha assada, compre um litro. Outra vez, ecoou a voz de um dos foliões imaginários, também serve como tira gosto.
Não se esqueça de comprar um quilo de bolo de mandioca! disse outra voz imaginária na nave principal próxima ao genuflexório no qual Cleobulina tecia orações, prometia penitências, jejuns, caridades pelos pecados cometidos e não cometidos durante o Carnaval.
Um café com lasca de bolo!
Caso encontre ralador, compre um, pois logo chegará à colheita do milho verde!
No milharal começaram a aparecer bonecas com lindos cachos loiros! riu. Afundou-se Cleobulina nas orações e nas promessas de penitências, nos jejuns e nos compromissos com as caridades vindouras. Quando as bonecas ficarem ruivas, já era hora da colheita!
Caso encontre inhame, traga uns dois bons pedaços! disseram outros ao lado de Cleobulina. As vozes dos foliões tardios, na Quarta-Feira de Cinzas, lhe cercavam por todos os lados.
A efemeridade tocava Cleobulina com as pontas de seus dedos claros. E, por breve instante, a piedosa foliã viu ante os olhos um derramar inconstante de pesadas cinzas.
Pe. Prognóstico falava sem parar as palavras lidas no Testamento Antigo:
Viemos das cinzas e a elas em breve voltaremos!
Iam e voltavam as vozes dos foliões inconformados com o fim do Carnaval em torno de Cleobulina.
Vá! disse outra voz. Compre agora, já, logo, sem demora, e compre rápido uns três ou quatro buchos de bode. Almoço às visitas nessa época de Carnaval. Há sempre parentes vindos à festa. No farinheiro, compre farinha de mandioca. Não se esqueça do feijão-de-corda, pois é sempre bem-vindo. Tem quem goste de pinha; se puder comprar um balde, sempre está baratinho, um balde ou dois consumidos numa sentada. As outras coisas? Compre o de sempre. E caso haja novidades na feira de Carnaval, compre também. Neste calor que se faz é bom sempre ter um pote de barro, uma quartinha. Não se esqueça. E por falar, quase me esquecia de outra coisa. Traga da rua uma panela de barro que cozinhe feijão; aquela panela de barro que tinha em casa acabou de rachar e perdeu todo o sabor que conservava.
Viemos das cinzas e a elas em breve voltaremos! disse o Pe. Prognóstico. Jamais se esqueçam disso.
Ontem, eu encontrei uma daquelas crianças que sempre trazem a feira à nossa casa por qualquer moedinha. Contrate logo uma. Não é bom que seja em carroça de ferro; preferível trazer as comidas em carroça de madeira, pois essa coisa de ferro pode contaminar os alimentos.
Viemos das cinzas!
Não se esqueça da pimenta e do cominho.
As cinzas, disse o Pe. Prognóstico, as cinzas, repetia diante de Cleobulina. E, com o polegar mergulhado nelas, úmidas n’água, abençoadas por suas mãos, cinzas das folhas de palmeiras secas, que vieram da queima, o padre fazia sinais da cruz na testa dos fiéis.
Vozes de foliões tardios não paravam em torno de Cleobulina, outra vez e outra vez, no genuflexório. E ela se entregava totalmente às promessas, às orações, às juras de penitências, aos compromissos com a caridade e o jejum.
E lhe anuviavam melões-de-são-caetano, graviolas e açafrão-da-terra. E lhe choviam e lhe afogavam as graviolas, melões-de-são-caetano e açafrão-da-terra em torno das margens do Panema.
E o polegar do Pe. Prognóstico mergulhava no poço de metal à mão indo de testa em testa dos fiéis em fila indiana, na nave principal. Balbuciava o padre:
Lembre-se, pecador! sério. Lembre-se, pecadora! zangado, numa língua sem familiaridade com a língua pátria. Somos mera poeira de pó e à poeira logo, logo voltaremos, che ra’y, che membykuña!
Via-se Cleobulina de armarinho em armarinho, em Santana. Em um, ela comprava linha branca; em outro, ela comprava fitilhos rosas.
O padre, com as cinzas do último Domingo de Ramos, avançava sobre as testas dos que o olhava com admiração e respeito. Em breve, todas as cabeças estariam marcadas com o sinal escuro que escorria sobre os olhos, nariz, boca.
Converte-se, incrédulo! disse. Converte-se, incrédula!
Cleobulina, assustada, adentrou no redemoinho da interpretação de texto. No caminho, encontrou encontros vocálicos, consonantais; tropeçou em sílabas tônicas e as ouviu serem classificadas em oxítonas, paroxítonas, proparoxítonas. E ela viu diante de seus olhos, na Livramento, adjetivos e locução adjetiva. Riu alto ao ver a acentuação das palavras na voz do Pe. Prognóstico, que mergulhava no poço de metal cheio de cinzas úmidas.
Naquela loja, em Santana, Cleobulina, vende-se serpentina. Corra, vá até lá e compre umas. Crianças gostam tanto das serpentinas. Como gostam, não é mesmo, Cleobulina, de chuvinha e traque no São João?
Falando nisso, veja se tem missa na segunda-feira de Carnaval, pois vai fazer ano de luto de vovó e quero pedir missa. Qualquer coisa, Cleo, estou aqui. Vai ao Carnaval esse ano? Os anos passam e as coisas não mudam.
É uma velocidade a vida. Uma vela acesa, que logo se apaga.
Cleobulina naquele escuro e infinito corredor. Guiava-lhe voz estranha do Pe. Prognóstico:
Che ra’y, che membykuña!
Substantivos simples, compostos esbarravam em Cleobulina e lhe pediam desculpas. Ela sempre tropeçava na pontuação.
Há coisas que não avançam, Cleo. Ali, estáticas. Muitas vidas vivem em oposição à dinâmica, completamente em repouso.
As situações sempre as mesmas. Viu ontem, no clube? O povo girava, girava em direção ao fuso horário. Aqueles afoitos, agradecidos à bebida; outros tímidos, a cara no chão, arrependidos da vida, encostados nas paredes sujas, pelos cantos sujos, com o copo sujo e quente na mão, um cigarro. As situações, Cleo, as situações.
Uma toalha ao pescoço. Suor. O acolhimento da toalha no corpo molhado e frenético. Giravam os corpos, giravam os braços, tremiam as pernas ao som dos metais.
Até o final da festa, Cleo. O suor corria em bica. Até o final da festa, Cleo. Até o seu corpo magro exaurir-se e cair como graveto cai da árvore.
Um passo à frente, dois atrás, Cleo. Chego já, chego já! A euforia musical e os cantos desafinados, Cleo, varrem os pesares até Quarta-Feira de Cinzas.
Não se esqueça de comungar, Cleo! disse. Pedir perdão por tanta heresia em uma noite. O badalo na igreja alto informa à cidade que se prepare à eterna vida.
Molhava chuva as calçadas e lavava a alma do agricultor. E nessas nuvens de chuva, Cleo, pessoas se transmudavam, rãs transmudadas em aves nesses telhados banhados. Meios-fios abraçavam a água que se espalhava nas ruas. As bocas-de-lobo famintas quão faminto Sócrates ficou por sua filosofia.
Na corrida sem propósito e desabalada, Cleobulina, cada um carregado pela enxurrada veloz, desconhece a velocidade da vida sem freio. Não custa ao homem em seus devaneios envenenar o próprio homem e o seu meio num arroubo de quem herda só a solidão.
Nesse instante, disse o Pe. Prognóstico em sua homilia, o homem logo se apavora, devorado pela fúria da natureza selvagem. Constrói às pressas uma nave e quer fugir; compra veneno na farmácia ou uma corda, e ameaça tirar a própria vida; não se importa em gastar o que não tem com a melancolia; e sonha em morar em outro planeta deserto onde reiniciar toda a sua história de vida.
Armagedão! gritava a mulher de véu prata. Armagedão! fugiu feito corisco da Livramento, de joelhos pela nave principal. Armagedão! Armagedão!
O homem, que vinha de joelhos pela rua, se levantou ao ver a mulher de véu prata deixar a porta principal da Livramento. Ela não parava de berrar sobre as forças maledicentes contra a bondade numa batalha astral.
Voltou a ajoelhar-se o homem que vinha de joelhos, na rua. A palavra foi substituída de armagedão por apocalipse. Espelhos gigantes refletiam os oceanos, nos olhos de Cleobulina; eles revelavam os porquês de navios. O interior da vida íntima de embarcados e desassossegos das marinhas sob as ordens de navios que chegavam ao porto.
Cleobulina via os navios. Eles chegavam na velha mesa na sala de estar de D. Aurora.
O seu lugar não é aqui, Cleobulina! disse. O seu lugar é na cozinha! saiu D. Aurora num resmungar. Essa gentinha não sabe o seu lugar!
A essa hora, no solar do Cel. Dr. Cicrano, na mesa ampla banhada de sol do sertão, disse Cleobulina de joelhos e cabeça baixa, enquanto o homem que veio da rua de joelhos recebia o sinal na testa, repousavam café e leite quentes e as reclamações geladas de onde veio esse café tão caro?
O custo de vida atropelava os dias de Cleobulina, em Maceió. Como tudo pode ser tão caro! Vem de qual planeta, de qual sistema estelar? E vem de qual cafeeiro esse café na rica mesa do Cel. Dr. Cicrano, primo do Dr. Sicrano, que foi assassinado barbaramente no centro de Maceió a plena luz do sol de ouro? De que Lua vem o alimento à mesa, disse Cleobulina entre as orações, promessas de penitências, jejuns e caridades, de que lua tão pálida e chegar a essa xícara tão grande?
E esse gosto, essa cor tão escura? De onde veio esse leite tão falho? De que úbere esse líquido tão fino? parecia uma oração que escapava entre os grossos lábios de Cleobulina.
As orações de Cleobulina, na Livramento, era um atravessar o mundo de águas tão lentas. Viajavam por horas as suas petições de perdão e desculpas, no genuflexório, por leite de estrada tão escura.
Tão-só Cleobulina rogava por pedidos em silêncio das coisas dentro do silêncio das lembranças, do silêncio das saudades, do não pensamento, do silêncio da sonolência do dia. Os gritos, as ordens, os mandos, a torneira na pia, na casa de D. Aurora, choramingava a lenta torneira. No banheiro, arrotos na descarga tomavam dimensões tacanhas.
Nas bancas, na Feira do Passarinho, especiarias se comunicavam com os dedos. Quanto é isso, quanto é aquilo, por que é tão caro, faz por menos, vende fiado?
Mostravam-se os caminhos do descobrimento no rosto de D. Leocádia, que também foi patroa de Cleobulina. O que faz aqui na sala, Cleobulina? Seu lugar é na cozinha!
A exuberância de seu corpo morto de sonhos sempre na rede, no alpendre ao lado dos marimbondos. D. Leocádia pimenta, D. Leocádia de fogo.
Em silêncio D. Leocádia. D. Leocádia rezava todas as orações conhecidas porque temia perder a alma, queria salvar o espírito. Os mosquitos em torno de D. Leocádia.
À mostra o caminho de vênus, as curvas em Cleobulina, que D. Leocádia as condenava ao fogo eterno. D. Leocádia sem graça, as carnes de D. Leocádia roídas de marimbondos.
D. Leocádia em pecado. D. Leocádia sem pecado. A rede ia e voltava. A brisa do mar a bronzeava. D. Leocádia adorava o vento, no frescor dos pelos. Na panela caranguejos, ah, Cleobulina sem pecado!
D. Leocádia rezava, passava o dia cercada de orações. Queria salvar o ânimo. A rede bamba. Espraia-se o perfume de D. Leocádia, que passava a mão nas curvas de Cleobulina e a recriminava por tê-las em tanta exuberância.
Deus castigas! disse D. Leocádia. Ouviu?
Embebeu o mar em ondas. O vento em sua blusa. Conspirava-se em sua cama a democracia dos pedidos, das bocas, dos toques das pontas dos dedos, do calor, dos silêncios, dos gemidos, dos sussurros, dos gritos de pavor. Depois adormecem em seus seios os marimbondos.
D. Leocádia dormia. Cleobulina não saía da cozinha. D. Leocádia brigava com caranguejos vivos na panela de água fervente.
Subia a rede. Voltava a rede. D. Leocádia cansada da luta. No mangue, Cleobulina coberta de sono.
Deixe isso às lavadeiras, que lavam, quaram, enxáguam, secam, tornam a lavar, a quarar, a enxaguar, a secar a sua vida nas pedras. Amar é tão-só uma brincadeira. Mata no sonho os momentos bons de agora. Ninguém leva mesmo a sério o amor.
Sucumbe toda tarde a mulher sobre tábuas no açougue de mercados com o mesmo perfume nos vários organismos exíguos de tinta. No genuflexório, não parava Cleobulina de recorrer às orações com promessas de penitências, jejuns e caridades.
Mesquinhos de trelas no mundo quixotesco gerado em Cervantes, que só cabe mesmo dentro dum brechó e nos bancos escolares ferve o tacho bruxólico onde o poeta canta e o pintor expõe telas.
Outra vez, venta em Maceió.
Outra vez, o vento vence a morte nas ruas, nos becos. Cleobulina no solar de D. Célia Laluna. A sua nova patroa canta salsa, canta rumba, dança tango D. Célia Laluna.
É da milonga. Canta o amor. E canta samba. O cavaquinho a acompanhou D. Célia Laluna. No chorinho, amar é ser acaso platônico? Como é boa a magia. De que é feito o amar de sonhos, de fantasias?
De que é feito o amar, da mesma química ignota de quem sonha sonhos idênticos ou antagônicos, cantarolava o dia inteiro D. Célia Laluna. De que é feito o amar, D. Célia Laluna?
Não queira saber, Cleobulina, disse D. Célia Laluna, não queira saber. O amar é feito de manhãs claras de sol. E quem anda só, Cleobulina, com quem ama quer viver a sós.
Em cada galho um macaco, como um dia falou Darwin, o caco de que é feito o amar, Cleobulina! Não queira saber, Cleobulina, disse D. Célia Laluna, não queira saber.
D. Célia Laluna acende a pira. Silencia. Não me fale, Cleobulina, de seu passado, não me fale do que viveu na Rua da Lama. O fogo acende e me pede, pede-me: regue, regue a planta sem veneno na garganta. Silencia. Não me fale onde eclodem gritos.
E as ideias se calam no ardor das lembranças de quando se é feliz, de quando se foi feliz, de quando seremos felizes com a felicidade perto. Verbo transitivo direto.
De que é feito, D. Célia Laluna, aqui em Maceió, esse amar de águas que dançam salsa pondo limite ao imenso mar?
De que é feito esse amar, Cleo. Toque-me com os seus lábios, pois tudo na natureza é perfumado. Minha amada toque com os seus lábios os meus lábios e descubra do coração o que ele quer.
E se D. Célia Laluna sumisse por encanto e aparecesse com o seu olhar de saudades que não têm braços, mas aperta+aperta a salsa de D. Célia Laluna, que matou Tupã. D. Célia Laluna com os seus olhos tristes de salsa. Dança D. Célia Laluna salsa e canta salsa+salsa+salsa. Seria D. Célia Laluna um brâmane sem casta, obediente e casta? Gueixa presente de Kama?
Cleobulina logo mergulha nas espumas escumas, no mar verdazul. Seria D. Célia Laluna presente ou só imaginação da própria fome? Cleobulina, que se foi de Santana a Maceió, não encontrou a irmã Temistocleia, a sobrinha Asioteia, o cunhado Eufemismo, a amiga de infância condenada feito Tântalo.
A patroa de Cleobulina, D. Célia Laluna, longe dessa decisão maldita do mito do corpo doce recolher frutos, de suas covas as águas recolherem. D. Célia Laluna, ao sentir fome ou vir a sentir sede, sabia saciar-se de ecos: silenciosos gritos.
Hoje, o mar amanheceu com essas cores tristes quando o sol riscava mar e seu disco escarlate-fogo se molhava e se apagava devagar. E D. Célia Laluna todos os dias quer sentir-se Iracema a quem a vida só é vida se tem prazer, gozo e poesia. Ela oferece-me o coração, e o vento lhe sopra a chama na brisa trêmula tão-só lá menor e fá sustenido. Abrem-se as portas num sorriso. Se queres amar, Cleobulina, desiste.
Numa balada à Senhora dos Afogados, D. Célia Laluna disse outra vez à Cleobulina:
Se queres amar, desiste!
Cleobulina ouviu as palavras de D. Célia Laluna como se ouvisse da boca da Senhora dos Destinos. Desculpe-me, Cleobulina, se despertei o seu coração.
Eu preferia fazer previsões alheias, Cleobulina, acender velas, pedir aos orixás, dançar, dançar, fazer previsões amorosas e tristes em doces bacias com água de rosas ou em estrelas cadentes, errantes cometas. E quem lhe mandou, Cleobulina, atrair com o seu sorriso, e com esses dizeres de que estou disponível?
Florescem, Cleobulina, florescem os botões. Estão agora nas romãzeiras. Sinto o aroma. Como cheiram os seus cheiros, os seus sabores.
Desiste ao modo de ushaia fugere urbem, D. Célia Laluna, fugere urbem.
Na mulher amada a poesia busca abrigo. No redemoinho, o calor das aias. Por que não lhe deixam brincar nas ruas, quando criança, por que lhe tolhem as brincadeiras, culpa da indiferença? Que será dessa criança, no boticário?
Silêncio, Cleobulina, silêncio. A juriti ainda voa oculta e colibri em seu seio busca abrigo. Cleobulina quer viver o não vivido, quer beber o não bebido.
Na luz âmbar, Cleobulina veste-se na roupa dos olhos de D. Célia Laluna que, de volúpia, o vento sob a luz âmbar nos botões de lótus, os seus olhos estão nus no mar azul, que Santana não tem. Cleobulina busca os sagrados do grito-tupã, pede-lhe que quer viver a vida amando.
Cleobulina, apaixonada, grita ao sol-pôr; vestida no cheiro jasmim-manga. Em seu canto melancólico de jaó, que aprendeu no lar de D. Célia Laluna.
Há de dizer, disse D. Célia Laluna, num lamento triste, não mais existe o amor. Amar? Os amantes aboliram a palavra, e a sua intensidade orgástica a de banhar-se no igarapé de seus lábios?
E este pôr-do-sol por enquanto é de graça, gritam as expressões aflitas das araras. O Destino prometeu acorrentar amantes feito Prometeu? Cupido não traga uma vida dessas de Traumas, encharcadas de carmas, beco sem saída. E logo murmura Cupido:
Reles vida, reles vida, reles vida!
Bebamos mais um trago em copo de vidro grosso, disse D. Célia Laluna, é Carnaval, Cleobulina. Mais tequila, fatias de caju e sal. Talvez caipirinhas numa dessas taperas, na praia. Caldinho quente de sururu. Mulher que anda descalça ao fim do dia, mulher que liga planetas de cem luas às estrelas, mulher que ri sorrilargorriso cleobulina.
Derrama-se adrenalina da lua cheia. A Lua, por fim, prenha. De quem será a pomba que arrulha cujo bacurau calado, ali, espreita? Não é vida o Príncipe que amou Branca de Neve na urna funerária. E o vento, deusa Iansã, soprado na janela durante toda a madrugada. No Evereste, bom é viver a vida sem pressa. Apaixonar-se feito criança, que erra tarefas por brincadeira. Nadar nas ondas côncavas e convexas das curvas de Cleobulina.
Adormeceu Cleobulina no leito de Netuno. E conviveu Cleobulina com os perigos assombrosos de Adamastor.
Outra noite por uma mula, gritou Adamastor na porta do quarto até perder a voz, na Rua da Lama, onde conheceu Cleobulina. Um cavalo coxo, ele berrava, um pão dormido, um grão de feijão, um gato morto.
O sonho que o surrealista sonhador preenchia papéis, outros sonhadores queriam transformá-lo em realidade. Mandava ao espaço seres como se fosse possível dar vida às letras nos papéis, como se não houvesse consequências mortais. Outro dia, após juntar pedras, foi a vez da Rua da Lama aturar os gritos de Netuno na porta do quartinho onde vivia Cleobulina.
Netuno, depois de construir castelos, após conquistar reinos, anunciou ao mundo o poder de seu dinheiro e prestígio. Netuno foi apontado na Rua da Lama como se apontavam os imperadores nus.
Quão o voo livre do pássaro seguido pela fome do falcão volátil e súbito se torna o pão um prisioneiro da esperança de Pandora. Rápido, fecha a caixa e a vida, presa ao fio, balança.
Numa manhã de Maceió, Cleobulina deixa a cama, na Rua da Lama, deixa o imundo quartinho a lamentar a vida, só, pelas calçadas; cumprimenta portões adormecidos e calcula o comprimento da alma. Molha-se nas ruas e reclama do tráfego que emperra a vida e o tráfico que agride a calmaria nas casas.
Uma chuva molhadeira se derrama, lentamente se derrama na estrada. E Cleobulina se vai, distancia-se da Rua da Lama. Conversa com botões. Talvez a vida seja isso; nada mais.
Quantas vezes, Esmeralda, quantas vezes debruçada à janela, ah! disse Cleobulina. À espera do cortejo, outra vez anunciado. Não sabe Esmeralda, a mudança não vem do palácio de Quasímodo.
Vamos fugir de Maceió, Esmeralda! Propôs Cleobulina.
Ir aonde? disse Esmeralda.
Ir no destino dos trilhos!
Descem rápidos e desembestou os carros na ladeira da vida; na pressa, atravessam a fronteira da infância; na pressa, passam a alfândega do país adulto e chegam à velhice num jogo de pião gira, que gira, que gira, que gira como gira o mundo e giram os dias na gaita o blues e isto leva a vida. Vai a vida ao amanhã ilusório e óptico; logo passam as férias, logo a vida passa, à tarde; à noite de lua carrega à pressa. Todo cenário é uma musse; há quem dele almoce; e uma velha espirra, outra tosse; há quem se coce; há nos vagões birras; há também mortes. E o trem, que sai de Maceió, chega ao Recife. É noite. Recife mar. Recife escura. Recife aquática. Anfíbia Recife.
As formigas no açucareiro se dizem felizes! disse Cleobulina.
Recife? disse Esmeralda, na porta de madeira podre no quartinho da Rua da Lama. O que se encontra nesse lugar?
Singra a jangada de Butim, no mar das tempestades. O homem provoca motim. Ele escreve a História e, por causa dos farnizins, ganância sucateia. Logo espalha no mundo pantim e, quando é cobrado, fi-lo e quí-lo.
Enjoo, disse Esmeraldo, no balanço dos trilhos.
Enjoa? disse Cleobulina.
Antes, o enjoo vinha do balanço nas águas, que fazia jangada ao navegar.
Cleobulina deixou a rua da Lama. Nessa hora em que, diante da Senhora Santana, nos perdoe os ritmos, perdoe os tropeços nessa vida.
De frente à Livramento, por onde Cleobulina passava todos os dias, ela viu o perdão nos olhos e o rosário estendido nas mãos da mulher do véu prata. Iam as contas no rosário do polegar ao indicador, as contas passavam do indicador ao polegar.
Na grama, grilos reclamam da chuva da noite anterior. As plantas, nessa noite, agradecidas. Adormecem as janelas. Distantes são abertas outras janelas de luz. Iluminada a grama nos pingos da chuva.
Nas pedras se reflete a luz das estrelas. E não é na lama da rua, na poça, que se reflete a luz da lua na praça?
Saio no próximo trem em direção ao Recife, Esmeralda.
Duvido!
E os prazeres do corpo são o sol numa manhã simples, amor e mais água no feijão. Caminhar por esses lugares distantes, nas estrelas, e os prazeres na psique são viajar na metafísica comum! alerta o abismo no caminho. Alegria e mais água no feijão.
Na filosofia dos prazeres, só, aprendeu Cleobulina, a noite chega quando a noite chega, o dia é outro dia novo do mesmo dia nessa nova filosofia dos prazeres. O corpo pede o ânimo necessário e a alma, mesmo aflita, se acalma.
Maceió povoada por prédios. Unidos a telhas sobre paredes. A amizade é essa rua, Esmeralda, preenchida por telhas. Há pedras na rua, poeira. Há sol, que brilha, e há lua que ilumina. Também chove na rua amizade. Essa rua curva ora afunila, ora se alarga, ora aproxima, ora desaparece, e o caminhar por essa rua é o que mais nos favorece.
Adeus, Esmeralda.
Duvido dê-ó-dó!
Em minha casa todos versam músicas com as suas violas de cocho. Se o Recife não for uma boa viagem, Esmeralda, rumo viagem ao Mato Grosso.
Versavam os pés de Cleobulina nas ruas, periferia do capitalismo. Versos de seis pés.
Viajava Cleobulina num martelo agalopado.
O canto que se canta é mais rimado 10 versos feitos com esmero e luz. Essa noite de insônia e chuva forte li na Bíblia sobre a sorte da palavra. Viajei na lembrança de outros livros numa Europa mítica, medieval, falsa, onde heróis de quadrinhos liam gibis, não conseguiam salvar nem sua capa.
Onde Cleobulina estava, estava Santana.
Os passarinhos em seus galhos; o galo-de-campina acorda coleirinha; no açoite do canto acorda Santana os canários-da-terra presos em gaiolas. Acorda o azulão. Na serra, surge o sol.
Não foi ao Recife?
Ainda não!
Não vai?
Faltou coragem, Esmeralda! disse Cleobulina. E o bilhete pelo preço dos olhos.
Na casa de D. Eva, onde foi trabalhar Cleobulina, D. Eva preservava no quintal cansado formigueiro; alimentava-o com açúcar do engenho do pai, que sonhava em ser usineiro. Outros, na capital alagoana, preferiam formigas num quadro, emolduradas em vidro, penduradas à parede. O que se encontrava na identidade era a coleção de passados armazenada em lembranças.
Lupus est homo homini! disse o Pe. Prognóstico, e isso fez acordar sob o véu Cleobulina, que cochilava em suas orações, muitas promessas vindouras de penitências, jejuns e caridades.
Tudo perdeu a cor diante dos olhos de Cleobulina.
O que o padre quis dizer com lupus est homo homini?
Como se fosse natural à terra fértil ficar deserta, e o Sol apagar-se e a Terra esfriar, e a galáxia explodir, e o dia terminar no formigueiro que se preserva no quintal como amuleto. Cleobulina quis saber o significado de lupus est homo homini. E tinha vergonha de perguntar.
Na cadeira de rodas, o pai de D. Aurora. Na sala silente, repousa o dia na casa de D. Aurora. Na parede da sala, gemem as janelas esquálidas com olhares de distância, à espera do sol, que se entretém entre nuvens.
Sentimentos preservados entre janela e sol atravessam a eternidade das formigas. E a mesa é tão plácida. O que significa plácida? quis saber Cleobulina. E a mesa, além de plácida, indiferente, pressionada pelas cadeiras, pela toalha, pela louça.
Tudo se reúne em torno da mesa: a comemoração da chegada em efusivas gargalhadas, os gritos efusivos, ao silêncio da partida, lágrimas num jorro súbito. O que significa jorro súbito?
Os primeiros raios da manhã atravessam a sala. Terça-Feira Gorda morre e nasce Quarta-Feira de Cinzas. E a pesada chave gira e, assim, a fechadura cede à tranca, e a maçaneta abre a porta ao jardim.
Cada dia é um outro abrir de cortinas onde habitam os grilos e as formigas.
O oratório protege a metafísica, o armário protege louças e talheres; o céu não promete chuva, e há nuvens d’água no céu.
Aos poucos o relógio retoma o tique-taque.
O melhor é quebrar o relógio! disse o pai de D. Aurora, e passou as mãos grudentas nas pernas nuas de Cleobulina. Vamos parar o tempo?
Que é isso, seu enxerido! reclamou. Vou correr e contar à sua filha.
Não faça isso, minha filha! ofereceu-lhe dinheiro.
D. Aurora não vai aprovar o atrevimento do senhor, meu senhor!
Não seja capciosa.
E o que é capciosa?
Coisa de quem vive na capital! esboçou um riso numa boca sem dentes. Seja sertaneja, meu anjo. A engrenagem do universo diz ser tudo tique-taque.
Na cadeira de balanço, confortavelmente alimentada, D. Aurora lia outro livro em francês. O velho pai de D. Aurora, na cadeira de rodas, viaja num cochilo apressado e ancho feito jovem. Esquecido, o velho sonhava que o amor era filho de Recurso, mas também filho de Pobreza.
Chuviscos no horizonte de chuva em todo o Estado. Pingos. Ora jorros. E logo nuvens escuras cercaram os bairros em completo desaforo. Maceió voltava à origem etimológica. Derramou-se água como se fosse choro. E choveu um mês sobre a terra; esta cedeu; e as suas ruas abriram crateras, casas foram engolidas e a cidade tomada pelo pavor das pessoas nas ruas. Nenhuma delas podia buscar socorro senão nas orações de Cleobulina, na Livramento. Apavorada. O mundo sugado como se fosse caudaloso rio que devorasse pedaço por pedaço, telha por telha.
As pálpebras de Cleobulina se encarregam de entregá-la a uma visão de Santana que Santana não tinha. Uma sensação inesperada, ela viu uma Santana diferente da Santana que conheceu.
Essa geração chegou aqui em disco-voador? Hoje, o homem vai a Marte, pois a Terra já não dá; escuta-se só conversa vazia, e conta a pagar. Pero Vaz ao Rei escreve: Em Marte, a terra é boa; os marcianos amigos trocam miçangas por terra, água; comida por pedacinhos de espelho faz um marciano feliz. Antes, a viagem era além-mar; hoje, se vai além-Terra, e tudo há solução à fome. Fim da carestia.
Luzes que brilham no universo refletem próximas ao poste de luz. Sofre, como sofre essa luz artificial porque sabe não ter luz própria.
Correm os carros de rolimãs. A velhice é sempre nuvem pesada d’água, nuvem que se derrama. Cleobulina, sob o véu de tule, fazia sinais da cruz sobre os lábios. Santana. Dia do Pau-de-Sebo, Dia do Laço-de-Fitas, Dia do Quebra-Pote. Santana. Sob o véu de tule, fazia sinais da cruz sobre os lábios.
A essência da cidade era outra, com certeza, era outra. Foi uma aparição breve sobre Santana sob as pálpebras de Cleobulina. E viu a cidade manifestar-se por novas comunicações, novos transportes, novas moradias, novos tipos de trabalho que ela jamais tinha visto. Ao reacender os olhos, ela ainda estava de joelhos, na Livramento. Ela secava os olhos com o véu prata.
ORAÇÕES, PENITÊNCIAS, JEJUNS & CARIDADES
ContosPor Marcello Ricardo Almeida 09/03/2025 - 23h 37min

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