QUANDO EU NÃO SENTIR MAIS SAUDADE

Crônicas

Por Remi Bastos

Depois que passar a tempestade e a bonança vir sobre mim como um orvalho de ternura; depois que eu perceber que a luz no horizonte perdeu parte do seu brilho e o amanhã se tornará um acontecimento lento e duvidoso, então, procurarei no lago do meu interior uma saída que me conduza ao sentido da vida. Quando eu não puder mais distinguir o espinho da rosa e não pressentir que o abismo está à minha frente; quando eu não ouvir mais os cantos dos pássaros enaltecendo o dia em sua plenitude de primavera e não puder contemplar o desabrochar da flor, carregando em suas pétalas a fragrância da felicidade. Depois que tudo isso passar, mesmo na minha solidão, distante dos amigos e das ruas por onde andei, lembrarei as pegadas que deixei ao longo do caminho e que foram apagadas pelo vento do entardecer. Quando eu não conseguir mais ir à pracinha, não me sentar naqueles bancos à sombra dos pés de figos, de bater papo com os amigos, não ver o carrinho do vendedor de pipocas nem ouvir o grito do pãozeiro e do cavaco chinês nas tardes silenciosas do meu bairro; não escutar o repicar dos sinos da matriz assinalando a hora da Ave Maria e o cantar das águas do meu rio e do riachinho deslizando sobre as rochas ao cair da noite. Somente quando eu não conseguir mais lembrar de mim e esquecer que a vida não termina com a morte, que o dia seguinte sempre virá em cada amanhecer e com ele os voos dos colibris osculando as rosas da mocidade, então, em meu derradeiro momento, com o coração vedado pela dor e o sofrimento, tendo as lágrimas como meu último refrigério, direi:“Quando eu não sentir mais saudade”.

Crônica publicada no livro LEMBRANÇAS GUARDADAS (SWA Instituto, 2022 p.193)

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