A teia de aranha é o aço de borracha, vovô? Era fácil deixar-se enganar por um rostinho de anjo.
A netinha do conde captura moscas e as leva vivas à teia de aranha. Fortes e elásticas, as teias com a sua cola natural recebem as presas vivas trazidas pela menina com riso dos ruídos de ventania que atravessam janelas.
O aglomerado de proteínas líquidas dentro da aranha ganha elasticidade e solidez, além de resistência da seda que tece a teia. Diverte-se o rostinho de anjo.
Na rua do conde não pode haver barulho antes das nove horas. Em razão disto surgiram as expressões maceioenses, que se espalharam, quais:
Amanhã às nove horas...
Aquilo? Só depois das nove!
Até amanhã às nove horas!
Esse sujeito é cheio de nove-horas.
Isso? Só às nove.
Os únicos sons que se ouviam antes das nove horas eram dos passarinhos. Os vendedores ambulantes evitavam a rua do conde; caso fossem obrigados a atravessar a rua do conde faziam a travessia em silêncio. Evitava-se até o ruído dos pés em atrito com os pedregulhos antes das nove horas.
Depois das nove, as mulheres e os homens passavam com o tabuleiro na cabeça. As crianças e os jovens vendilhões de doces, de frutas, de frituras ou de frutos do mar. Apregoavam-se os preços e os produtos caseiros; o anúncio deles era acompanhado por seu canto numa espécie de mantra:
Cada canto vale a vida,
Cada vida vale o canto! ouvia-se de longe a voz agressiva dos vendedores de peixe, de cocada de leite, de pirulito, de tabaco, de sururu, de bolo, de tapioca, de rapadura, de caju, de manga, de jaca, de abacaxi, de pitomba, de jabuticaba, de laranja, de cavaco, de tecido importado, de xoboi, de gibão, de chapéu de palha de ouricuri.
Cada canto vale a vida,
Cada vida vale o canto! o ritmo musical ritualístico guardava nos versos a finalidade mágica dos vendedores ambulantes.
Cada canto vale a vida,
Cada vida vale o canto! era o canto místico apregoado nas ruas de Maceió o dia inteiro como algo além do comércio de rua, uma prática psicofísica.
Só havia dois tipos de criaturas, disse o Conde, que eram acordadas com os gritos desses vendedores ambulantes:
Uma que preserva a servidão e outra que sonha em aboli-la!
E quando se ouvia na rua do conde:
Cada canto vale a vida,
Cada vida vale o canto! sabia-se passar das nove.
Na voz do conde, os que preservaram a servidão eram todos bem-vindos. A sua política era a de refutar quem falasse em aboli-la. Acordava mal-humorado o Conde Passapano em sua cama larga sob o mosquiteiro, sob a qual um penico se enchia durante a noite.
O sol de ouro inicia-se a cada dia em Maceió com um sol particular a cada vivente. E as mudanças transformam o comportamento animal e impulsionam imigrações.
Chegam os navios a Maceió com família e mais família do Leste europeu. O chefe de uma das famílias trabalha como caixeiro-viajante, outro é mercador.
As famílias emigraram por causa das guerras em seu país. E famílias imigram impulsionadas por novas oportunidades estrangeiras. E famílias migram dentro do novo país que lhes acolheu qual generoso pai de braços abertos.
Ao chegar de Santana, Cleobulina, antes de conhecer a viúva de Cruz das Almas, viu tantas vezes passar entre a Rua do Sol e da Livramento um senhor esguio de terno, que a sua maternal terra não tem, e nobres suíças. Desconhecia Cleobulina que trabalharia no castelinho do conde. Lavou e passou na residência do Conde Passapano.
Cleobulina chegava cedo, porque não podia dormir no trabalho, numa rua de casarões e solares, castelinhos de imensos jardins. Ela andava nas calçadas aos tropeços, olhava de um lado, olhava de outro, admirava uma fachada aqui, um janelão ali, uma construção acolá; lá, um prédio afastado e protegido por uma vegetação de viço grosso e sombras mágicas.
O que se esconde naquelas manchas? perguntava-se Cleobulina. Algum crime sepultado entre as raízes das árvores, algum segredo de amor adúltero?
Os escorpiões não se davam conta de tantas baratas. E se contentavam em se alimentarem de grilos com os quais diversificaram a sua dieta, e animaizinhos que perambulavam à noite e também roedores, ou pássaros cantores na aurora.
À noite, as baratas reinavam absolutas sobre os jardins. Elas voavam dum lagar a outro, corriam na grama como se brincassem com outras. E as lagartixas competiam entre si numa batalha que disputava quem comia mais baratas.
Famintos sapos de língua grudenta arremessavam-se, abatiam barata em pleno voo. Traziam o alimento à boca rasgada e fina quão um risco de carvão na parede das casas no bairro de Cleobulina.
Os gatos, que eram famintos e buliçosos, Cleobulina assistiu-os como fez tantas vezes em poleiro de circos que costumavam apresentar-se em Santana, pulavam e brincavam com as baratas iguaizinhos às crianças umas com outras. As baratas, que eram muitas vindas das profundezas, pulavam e brincavam quão se festejassem o primeiro dia da criação.
As noites eram abafadas nesta época do ano, e as manhãs brisalvas com o canto de bem-te-vis. Cleobulina escutava o murmurejar do mar, ouvia as ondas na arrebentação, os apitos de navios que se iam, os que chegavam ao porto com as novidades trazidas no depósito de carga.
As formigas-carregadeiras sob os cajueiros arrastavam a carcaça de uma aranha-caranguejeira. Cercaram o invertebrado e dividiram o banquete.
Sombrosas mangueiras, que reinavam naquela areia escura fina e solta, deixavam desprender-se nos galhos as folhas que tombaram junto às mangas. A brisa leve, que levava as folhas mortas, corria entre as árvores.
Murmurava um olho d'água num canto, uma nascente murmurava noutra parte; em cada lugar na cidade brotava água potável. E, neste quadro, a netinha do conde aprisionava insetos; arremessava migalhas de alimentos, iscas às suas presas; capturava os bichinhos vivos e os levava às teias de uma aranha que lhe parecesse faminta de algum alimento vivo.
A netinha do conde assistia, feliz e presa a um riso infantil, ao espetáculo da aranha que surgia desconfiada e atenta de seu esconderijo e avançava sobre a pequena presa que se debatia, que fazia barulho, que tentava fugir inutilmente. A aranha, agradecida, cobria a presa viva com a fúria e a fome de sua natureza e, apressada, retornava ao minúsculo e misterioso esconderijo.
Às vezes em que Cleobulina tentava corrigir a menina com um olhar furtivo de não, não faça isso, isso é pecado, Deus castiga. Ela percebia no jeito e nos gestos dela uma perversidade latente, um compromisso atávico com toda a mentira e a enganação. Cleobulina recuava.
Na porta do Teatro do Povo, cujo prédio se encontra entre a Rua do Sol e da Livramento, está escrito O MAL POR SI SE DESTRÓI. Como a inscrição no Oráculo de Delfos CONHECE-TE A TI MESMO. Ou mesmo o que se lê na porta do Inferno LASCIATE OGNE SPERANZA, VOI CH’INTRATE.
O decadente Conde Passapano vive nas ruas de Maceió. Na cabeça dele, um homem cheio de virtudes; na cabeça do homem comum, mais um passageiro que perdeu o trem.
Inveterado defensor da Coroa. O Conde Passapano foi um dos únicos que se encontrava no porto quando Alagoas partiu e levou em sua carga a Família Real que foi devolvida à Europa.
No cais, no Rio, o Conde Passapano foi um dos que acompanhou a queda do último Imperador. O conde puxou da lapela o seu lenço branco e agitou em direção a Alagoas. Por fim, o Conde Passapano tirou o chapéu e o arremessou no ar, quando o representante-mor de sua classe deixou o Brasil.
Ele ficou aqui por 49 anos! disse. E viu o paquete construído na Inglaterra, que recebeu o peculiar nome de Alagoas, partir. Aquele mundo diante de seus olhos se foi com um suspiro lento e gradual.
Cleobulina, que lavava e passava no castelinho do Conde Passapano, viu no olhar dele a cor da água do Panema. Através da janela, a lavadeira ouviu o som da vendedora de cocada de leite; na rua tortuosa passava a vendedora com o tabuleiro de cocada. Em seguida, os vendedores de água potável. Esse quadro emoldurado pela janela transportou Cleobulina a Santana.
Ele era o parvo mais imbecil entre os tolos! disse o Conde Passapano ao descer a escada caracol (uma longa escada de madeira que se assemelhava a um tombadilho).
O barulho dos passos do Conde Passapano ocupava o castelinho. Rápido se espalharam os passos nos jardins e expulsaram os cantos dos passarinhos, que silenciaram em reverência monárquica enquanto o Conde Passapano deixa o imenso jardim.
Sabiá-laranjeira retomou o canto. Cleobulina retornou à lavação de roupa suja.
Corram! Corram todos! gritava o povo nas ruas. Panema vem com água!
Cleobulina está no passado. Santana amanhece. As crianças desde cedo brincam o jogo de bola na areia do rio. As águas serpenteiam pelas margens.
Sibilam garranchos na superfície d'água que ocupa às margens. A água férrea do Panema cobre as pedras miúdas, as locas de pedra e abastece os poços com sede.
Atenta, a mãe dá fé da ausência do filho. Vê-lo de uma janela na cozinha. O filho criança num jogo de bola no coração do rio.
Panema vem com água! disse o conhecido aguadeiro Mil-Ciências atrás de oito ancoretas vazias que sacolejam nos ganchos da cangalha sobre o lombo dum par de burros.
Água no Panema! Crianças gritavam e corriam entre a areia e a água que chegava. A água sobe lenta qual a serpente que se aproxima da presa.
Panema com água! correu o grito de aviso da mãe aflita às outras.
O grupo de mães desce rápido nos becos imundos, entre buracos e lixo, cacos de vidro, fezes, estercos. O grupo vence as cercas de avelós, o bosque, a mata ciliar, o mato seco, as pedras, a terra seca, os espinhos-de-roseta.
Na beira do rio, mães divisam os filhos, que brincam, que não percebem a ameaça da água. Os jogadores mirins no misterioso jogo de bola. Vinha a água de ambos os lados do rio, tomava os flancos, inundava.
Os gritos das mães recuperam os filhos.
As criancinhas, assustadas, não com as águas, com as mães.
Os braços das crianças quais palitinhos de fósforos. Rapidamente, em um destes palitinhos de fósforos, cada mãe de braço forte e grosso fechou os dedos de uma das mãos num braço do filho e a outra mão quebrou um galho seco.
O cipó violentamente em lapadas slapsh! pula o jogador slapsh! que berra desesperadamente slapsh! que se lembra das lições de catecismo slapsh! com o nome de santos slapsh! que roga perdão slapsh! que pede milagres slapsh! que roga em vão slapsh! que se joga ao chão slapsh! que roga clemência slapsh! que jura vingança slapsh! que promete fugir slapsh! que pede perdão.
Rodam as crianças na saia das mães. Panema botou água! gritava o povo na ponta da rua. Cleobulina era uma dessas crianças.
Cleobulina no castelinho do conde Passapano é trazida do passado pelo grito de satisfação do rostinho de anjo da neta do conde. A garotinha admirava a aranha devorar a presa na teia.
Debatia-se. Insistia. Voltava a brigar na tentativa de fugir, livrar-se da teia. Inútil. A garotinha esperava a vítima parar de brigar, debater-se. Cleobulina via o rostinho de anjo. A aranha, satisfeita, retomava o caminho de seu esconderijo. A garotinha saía à procura de uma nova vida que alimentasse outra aranha.
Maceió cercada por mascates estrangeiros. Famílias que se exilaram por essas bandas enfrentaram revoltas armadas, fugiram de perseguições políticas, atravessaram conflitos, escaparam de destruições bélicas, descambaram morro abaixo em guerras transnacionais qual a pedra carregada por Sísifo.
No rajado céu de sangue de Maceió sob o sol de ouro tremula nas águas o reflexo de luz. No Cemitério Ergaomnes encontra-se escrito à entrada principal O EFEITO DESTA TERRA AFETA CADA PESSOA.
Nesse cemitério trabalham os coveiros Inumação, Aforamento, Exumação e Jazigo. Riem e conversam durante a labuta de cavar sepulturas, afastarem lajes, receberem cortejos fúnebres, indicarem caminhos, identificarem locais em que se encontram os mortos.
Aforamento, gordo e simpático, era o único que veio transferido do Cemitério Santa Luzia. Lá, ele recebeu o domínio útil e perpétuo e nele sepultou o pai Enfiteuse, que tinha desde o pai dele garantido o direito real transmissível por meio do qual lhe foi assegurado o domínio perpétuo.
A vida, quando vivida, reduz-se a memórias reais, desejáveis, possíveis, verossimilhantes. Em Maceió, Ergaomnes é um recorte das experiências com a morte.
Em cada sepulcro há uma imagem humana feminina, masculina, jovem, criança, adulta, anciã. Em cada pedra de mármore na qual o sol de ouro ilumina uma imagem há diferentes datas, diferentes histórias.
Cleobulina vê de longe o Ergaomnes.
O cemitério mais longevo de Maceió foi inaugurado como Ergaomnes. Protegido por muro de pedras e lanças pontiagudas na extremidade. Com um único portão à entrada, alta e larga, e com pavimento que interligava as diferentes alamedas.
Acesso a catacumbas de ricos adornos, estátuas de santo em tamanho real, anjos barrocos. Mausoléus de ousada arquitetura com capelas minúsculas, esculturas em bronze de vários falecidos de uma mesma família. Imitações de pirâmides, cópias do Taj Mahal.
Uma das lendas na cidade era a de que, na inauguração do Ergaomnes, veio a plenos pulmões a máxima O SER HUMANO É LEVADO A SER SEMPRE O MESMO SER HUMANO. O nome deste cemitério foi escolhido por ele ser o único a atingir a todos independentemente de classe, gênero, categoria, espécie.
Coveiro é o que se quer que ele seja! disse Aforamento, que demonstrava deslocado no emprego. Há muitos enredos, narrativas, conflitos e personagens em torno dos sepulcros no Ergaomnes.
Não era de duvidar ou estranhar-se que o cemitério mais antigo na cidade ocupasse cinco quadras. Todas preenchidas de túmulos cercados por flores.
A rotina de um coveiro não se resume, disse Exumação, à sua convivência com os mortos, com os familiares afogados em sentimentos, as dores profundas, memórias que nunca terminam e a sensação irreparável de perda. A rotina está associada a sepulturas, a extração de cadáveres e ossos de defuntos, a covas, a lápides, a pedaços de orações.
Perdiam-se crônicas sobre os defuntos. Enterrados no Ergaomnes líderes religiosos, professores, intelectuais alagoanos, médicos, políticos, militares importantes na História, artistas, poetas, dramaturgos, jornalistas, usineiros, industriais, capitalistas, revolucionários, filósofos...
Cada coveiro, para além de sua rotina de trabalho, possuía a sua fantasia particular. Um descrevia ao outro sobre o seu parentesco com um dos tripulantes nas primeiras caravelas de Pedro, outro falava sobre os seus familiares entre os invasores holandeses da parte de Nassau, conde e militar germânico embarcado ao Brasil em nome daqueles, havia quem provava com robustos argumentos ter origem na linhagem de Zumbi, e um quarto coveiro dizia ter nascido de santos que visitaram Alagoas na época das capitanias.
Os assuntos entre os coveiros no Ergaomnes tinham verossimilhança pois os seus fatos possuíam semelhança com a verdade. Apesar das características ficcionais das narrativas entre os coveiros, comprova-se que a verdade se prova com o que cada personagem diz sê-la, e não a aparência de inverdade ou delírio alucinógeno causado pelo fumo compartilhado entre eles durante a labuta diária que atende a todos os túmulos naquelas quadras entre a sombra de árvores.
Nos intervalos de almoço ou final de expediente, os coveiros falavam entre si sobre a biografia deles. Um garantia ao outro que o seu período de coveiro era provisório; reuniria cabedal político, pois, mobilizaria o eleitorado, faria comícios, abraçaria eleitores, visitava-os, influenciava-os, impressionava-os, e criaria uma rede nos bairros de seus correligionários, participaria de festas, festejos, pagaria comes, bebes, contaria piadas, dormiria tarde, por fim, ficaria tranquilo, esperaria o resultado, festejaria a vitória.
Outro disse que jamais ficaria muito tempo no Ergaomnes. Foi convidado a trabalhar no Cemitério Nossa Senhora da Piedade, recusou; recebeu convite e não aceitou trabalhar no Cemitério de Casa Amarela. O partido estava de olho nele, e admirava as suas habilidades políticas.
Um dizia que recebeu e não aceitou um convite do partido que lhe queria candidato no próximo pleito.
Recusou?
Recusei! disse.
E por quê?
Simples, disse, em razão de rompimento político.
Acontece! disse.
Muito comumente. O caso do homem do Cartório; ontem, sepultado aqui perto, naquela outra quadra.
Não paravam, disse, os cortejos fúnebres. No fim do intervalo, Inumação, Aforamento, Exumação e Jazigo estavam de volta ao ossuário, aos corpos em decomposição.
Cleobulina tirava o pó das pinturas. Os quadros do Modernismo expostos no mais importante museu alagoano. A arte moderniza-se entre os artistas e as suas obras, disse a curadora, e lamentavelmente ainda é pouco conhecida nesta parte do mundo.
Um enxame seguia viagem. Na Igreja, a mulher de véu guiava as orações de outras beatas.
Abelhas pairam nas cabeças baixas de mulheres pias, ajoelhadas e mãos postas. A líder entre elas faz um gesto com a mão e o enxame se vai. A mulher de véu flutua entre as beatas que não mais lhe admiram quanto a admiraram ao vê-la pela primeira vez.
No bairro de Cleobulina, a língua falada era a linguagem de ponta de rua. Cleobulina não poderia empregar essa linguagem no castelinho do conde.
O homem gordo que abria as portas no Cartório foi morar no Ergaomnes. A mulher com a cabeça sob o véu prata entrava e saía da Igreja com o sinal da cruz.
A mulher sob o véu prata testemunhou o homem gordo que abria as portas no Cartório ser alvejado por tiros de revólver, e cair. E o assassino evaporou-se entre a turba que via o homem gordo que abria as portas no Cartório tombar sob o sol de ouro de Maceió.
Morreu, disse, a poucos passos dali. Dele surgiu breve chafariz de sangue que formou a poça sob a sua cabeça. A mulher sob o véu prata quis ressuscitar o homem gordo que abria as portas no Cartório, pôs sobre ele as mãos antes de seu último suspiro.
Sussurrou a mulher sob o véu prata no ouvido dele, e chamou o homem que abria as portas no Cartório por seu nome como se o conhecesse. O homem que abria as portas no Cartório não respondeu à mulher sob o véu prata.
Tombou a imagem gorda sob o sol quente na rua. Ele ficou numa poça de sangue. A imagem da morte no espanto do povo. E houve o sumiço da autoria dos disparos, talvez sugada pelos becos estreitos de Maceió.
Na rua passavam mendigos transnacionais, miseráveis nus.
Na pensão da filha da viúva de Cruz das Almas... Ele era inquilino, como todo o mundo deveria sentir-se no mundo; tinha um quarto alugado ali, naquele tempo.
No início da gravidez da dona da pensão, que estava nítida a todos os hóspedes, o velho ex-comerciante de livros, um tipo herói civilizador, trouxe a cópia de uma história que havia comprado. Sugeriu-lhe leitura.
Certamente! ouviu feliz a voz da dona da pensão, filha da viúva de Cruz das Almas. Cada certamente chegava acompanhado de maravilhoso sorriso de agradecimento. O herói deixara a cópia do livro na cozinha, em mãos delicadas, ia cachimbar formigas na sala.
Especialmente, naquela noite, o velho ex-comerciante de livros notou sobre a mesa, na cozinha, deliciosos pães caseiros que descansavam em fôrmas; pães graúdos que fermentavam sob a toalha. A dona da pensão, agora, fazia os seus próprios pães.
Pragmática, amiga de Cleobulina, e a sua filha Cleobulina, faziam os pães da mulher da pensão. Preparava a massa, usava o fogão a lenha.
A cozinha carregada com um cheiro ácido, talvez o cheiro viesse do fogo. Esse cheiro contribuía com o ar da cozinha e o azedo que se despregava do lixo. O cheiro do cachimbo do velho não conseguia disfarçar o ar pesado.
Alegria aqui na pensão se dizia livro, disse o velho ex-comerciante em tom de brincadeira.
Certamente, com todo o aluguel em dia? foi a pergunta do velho à grávida dona da pensão. E, certamente, foi a resposta ao velho ex-comerciante de livros.
O velho ria e cutucava com a unha do indicador o fumo. Na sala dominada por fumaça de cigarro, fumegava o cachimbo.
Voltara o velho à cozinha à procura da caixa de fósforos e disse à mulher ao vê-la folhear a novela, por favor, senhora, tão logo a senhora conclua a leitura dessa novela maravilhosa... Agora eu não sabia se esta novela era isso mesmo – maravilhosa – ou daquelas novelas do tipo fantástica. Eu gostava quando era sobrenatural, embora aceitasse quando era surpreendido pelos acontecimentos que... Ao ler, senhora, a senhora descobriria. Quis falar que, pessoalmente, eu gosto quando a novela tropeçava em fenômenos sobrenaturais. Não se ofendesse por motivo nenhum, senhora, não se ofendesse, senhora, com as coisas que acaso eu viesse a falar por brincadeira. Senhora, gravidez, senhora, em minha modesta opinião, era um desses fenômenos sobrenaturais, senhora.
Certamente! disse.
Com aquele assunto de novela, o velho ex-comerciante de livros disse que havia por algum motivo alheio à vontade esquecido de pagar os aluguéis atrasados; e prometeu à mulher grávida dona da pensão acertar o restante ainda esse mês de fevereiro, antes do Carnaval. Não ouviu mais o certamente da dona da pensão, filha da viúva Dodona. O velho leu o recibo no valor quitado em suas mãos enrugadas com sinais acinzentados e outros escuros.
O recibo escrito em papel de embrulho foi lido pelo velho. Não se achava um talão de recibos, como ficou comprovado após serem consultadas todas as gavetas disponíveis nos móveis da cozinha.
A letra fina da mulher grávida naquele papel grosso de embrulhar pregos. Nele ficou escrito que o velho ex-comerciante de livros acertou os aluguéis atrasados até a presente data no ano de Nosso Senhor Jesus Cristo.
O dia de Cleobulina no castelinho do conde foi concluído com os olhos do rostinho de anjo. A netinha do conde, sentada na varanda, lia uma novela que recebeu das mãos do avô. Os olhos no rostinho de anjo acompanharam Cleobulina na alameda no jardim do avô. Cleobulina ganhou as ruas e se foi. E lá fora a voz dos vendilhões:
Cada canto vale a vida,
Cada vida vale o canto! o ritmo musical ritualístico feito mantra.
Cada canto vale a vida,
Cada vida vale o canto.
O rostinho de anjo abandonaria a novela, correria escada abaixo, brincaria na escada de madeira, pularia os degraus. Iria se ocultar nas folhagens do jardim do castelinho do avô. Caçaria iscas vivas, levaria à teia de aranha, presenciaria a vítima imobilizada pela ferocidade e rapidez da aranha.
CADA CANTO VALE A VIDA, CADA VIDA VALE O CANTO
ContosPor Marcello Ricardo Almeida 16/02/2025 - 20h 59min
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