A senhora é mãe dessa criança?
Não, senhor! surpreendeu-se.
Como “não, senhor”! falou grosso. É recém-nascida. E a mãe? insistiu.
Não sei, não, senhor.
Como “não sei, não, senhor”? engrossou-lhe os modos. Ela tem dias de vida! moderou nos modos. Onde a encontrou?
No li...! e o medo a impediu de prosseguir. Viu-se diante da lei, sob o peso do castigo. Perdida na cidade grande. Distante de Santana. Maceió fê-la perder um couro e nascer-lhe outro.
A celebração do Dia de Reis foi na segunda-feira passada, veio o balbucio nos lábios desenhados de Cleobulina – filha da feirante e curandeira D. Xântipe e do marceneiro de muletas, mortos. Ela brincou a folia de reisado, dançou terno de reis.
Era hora de ir-se embora. Deixou Santana por Maceió, onde morava a sua amiga de infância Pragmática. Na capital, Pragmática brincava Boi de Reis.
O marido de Pragmática era o pedreiro Pérsia, disse Cleobulina no dia em que deixou Santana. Ele veio do outro lado do mar, era Pérsia Zoroastrista.
Pragmática, uma das filhas de Linguística e Morfologia, ainda trabalhava como cozinheira em Maceió. Foi criada nas ruas de Santana com tranças loiras e olhos claros.
A Xepa! ela disse. E, por pouco não perdeu o único lotação, tão apegada que era à cidade.
Cleobulina chegou à praça com a sua pequena mala de couro amarrada por finas cordas. Lentos e gordos de bagagens, os passageiros subiam a Xepa Santana/Maceió, Maceió/Santana.
A filha dos finados D. Xântipe e do marceneiro de muletas à espera da vez. A sombra do sol nas pedras da rua era lerda quanto o tempo. Uma catenga corria atrás de outra catenga, mordiam-se, arengavam, trepavam, destrepavam.
Cleobulina entrou na Xepa. O ônibus começou a subir a ladeira.
A cabeça de Cleobulina era o trabalho de lavadeira, era sabão, água, sol. Ficou no passado o comércio de temperos da mãe Xântipe Feirante.
Só foi por um triz,
Ouvia o comércio,
Comerciante disse.
Na rua, risco de giz.
Ficasse, aí, a feira.
E foi o que se quis.
Era nossa antiga feira,
Sempre no sábado.
Ela nunca saísse daqui! cantarolava Cleobulina num sussurro. O batuque, a folia de reisado, a dança no terno de reis:
Só foi por um triz,
Ouvia o comércio,
Comerciante disse.
Na rua, risco de giz.
Ficasse, aí, a feira.
E foi o que se quis
Era nossa antiga feira,
Sempre no sábado.
Ela nunca saísse daqui.
Não queria deixar Santana, disse às amigas. Era a voz do trabalho que a levava a Maceió. Ficasse, Cleobulina! pediam-lhe. Não posso! respondia à voz da sobrevivência.
Sacolejava a Xepa. Embrulhava o estômago de Cleobulina.
Em Maceió havia trabalho, prédios altos, era litoral, possuía palacetes do tamanho de sarcófagos egípcios. Em Maceió morava a sua amiga Pragmática.
E apavoraram Cleobulina as sombras na caatinga. Elas corriam rápidas, deitavam-se e se levantavam.
Cleobulina via solidão e tristeza em cada canto. Elas confabulavam sobre os seus desencantos.
Nas janelas, repousava, só, o espanto. Assim, a cidade ficou. Ficaram as casas. As ruas ficaram. A Xepa levou Cleobulina a Maceió.
Pulverizada. Se fora aos pedaços e aos poucos. Caixas empilhadas de restos das vidas esmigalhadas, muitas inchadas sobre a Xepa.
Era hora de ir-se embora. Sem amor, sem sonho.
Entes estranhos desnudam quadros, nas paredes. Deixou-as todas nuas Cleobulina ao sair da casa onde vivia desde o dia que chegou à vida.
Muito lentamente se tornaram as paredes vazias de sentimentos.
Os insetos da casa se apavoraram. Eles estavam sós.
A casa ficou sozinha. Figuras gigantescas. Em Santana, a casa na qual Cleobulina morava, ficou só. Fechada. Escura. Habitada por fantasmas.
A Xepa subia as ladeiras de casas sob a crise de tosse do motor.
Figuras gigantescas, ora diminutas. As sombras das casas apavoraram Cleobulina. Na janela da Xepa, ela olhava a cidade que se perdia na curva, mato cobria o lugar.
Não mais lhe alcançava as vozes de suas amigas. Nenhum grito, exceto da Xepa.
Nas arestas, espremiam-se as assombrações. À noite, a amiga insônia.
No silêncio da viagem, as vozes familiares não mais lhe diziam contentes novidades. A violência do tempo atravessava as janelas, na Xepa.
Cleobulina apurava bem os ouvidos e ouvia não haver vozes familiares a dizerem novidades. Tudo era tão-somente o desejo descontente.
Nos corredores de casas, noutra cidade, a Xepa parou. Saiu. Viajou numa lenta viagem. Sertão. Xiquexique, Cactos, Santana-Sem-Água-E-Sem-Luz, Palma Forrageira, Coivarasseca. Agreste. Água Doce, Casa Quebrada, Açude, Anu, Nós-Tratamos-Mas-Não-Cumprimos, Cisterna, Palmeira dos Índios.
Levava no peito sonhos, planos e o endereço da amiga Pragmática. Tinha onde ficar em Maceió, disse. Cleobulina Lavadeira dizia-se independente, cheia de ideias, revolucionária.
Em Santana, Cleobulina planejou, juntou recursos, criou e administrou a primeira lavanderia. Encerra a sua atividade comercial. Tangia moscas à porta, esperava roupas, cumprimentava passantes, tangia cãescachorros com xôs! Cleobulina banhava-se de sol sem nenhum dinheiro que cobrisse despesas.
Em Maceió, Pragmática deu o nome de Cleobulina à sua filha. Pragmática aprendeu a ser cozinheira de talento com a sua mãe D. Linguística; e o seu pai, S. Morfologia, não saía da porta da rua onde fazia cigarro de fumo de rolo e logo o desfazia em fumaça.
Cleobulina Lavadeira atribuía o seu fracasso ao olho gordo dos pais. Eram dias difíceis! ela disse.
O marceneiro de muletas e D. Xântipe nunca botaram gosto no invento de Cleobulina em ser dona de lavanderia. Eles jamais aprovaram luxos assim; era exagero de conforto a quem viveu com roupas de ganho.
Não tive filha com voos de realizar a façanha em ser patroa de si! isto era o que repetia D. Xântipe, na camarinha, com o marceneiro de muletas. No quarto ao lado, a filha começou a ter insônia nessa época.
Ouvia Cleobulina os pais, os sonhos, os planos, via o lugar da lavanderia, a freguesia, o dinheiro. Apostava em sonhos mirabolantes.
Maceió não era São Paulo, Cleobulina, disse Pragmática. Por que não ia morar em Maceió?
A Xepa deixou Cleobulina no Porto de Jaraguá. Ela estava no coração da economia de Maceió com a sua mala de couro amarrada por finas cordas.
Só foi por um triz,
Ouvia o comércio,
Comerciante disse.
Na rua, risco de giz.
Ficasse, aí, a feira.
E foi o que se quis
Era nossa antiga feira,
Sempre no sábado.
Ela nunca saísse daqui.
Corria nas ruas de Maceió um brincante coberto de chitão, dava vida com os movimentos bruscos numa carcaça teatral de cavalo. Outro brincante numa carcaça de boi.
As pastoras e os pastores cantavam, os mateus animavam o povo com a brincadeira. A folia dava piruetas.
Os mateus, bufões dos reis, com o rosto coberto de pó de carvão e cones em formato de chapéus cheios de cacos, espelhos, fitas coloridas. Gritavam e estalavam os relhos, os mateus provocavam o povo, corriam, rolavam e riam.
No mar de Maceió, as garrafas viajavam com as suas mensagens secretas. Nas praias de Maceió, os náufragos morriam na areia.
Morreram 20 baleias do tipo cachalote e uma garrafa sem rumo. Morreram afogadas de desgosto e insatisfação. E uma garrafa sem rumo. Vinte baleias gigantes e uma garrafa sem rumo. Cleobulina olhava as ondas. Aonde iam as almas dessas baleias ao morrerem? perguntou-se.
Os brincantes nas ruas de Maceió. Eles gritavam o grito da dor. Aonde ia uma garrafa sem rumo? Eles bebiam insegurança no solo, presos a uma garrafa sem rumo. E cantavam dó, e falavam si na clave de sol.
Só foi por um triz,
Ouvia o comércio,
Comerciante disse.
Na rua, risco de giz.
Ficasse, aí, a feira.
E foi o que se quis
Era nossa antiga feira,
Sempre no sábado.
Ela nunca saísse daqui.
Quem não desse dinheiro aos mateus, logo recebiam ameaças no estalar dos relhos. Eram homens cobertos por vestes extravagantes e coloridas. A ema e o jumento brincavam no reisado.
Maceió era uma província, Cleobulina. Viesse morar aqui. Maceió não era São Paulo.
Em Jaraguá, Cleobulina viu os armazéns, os trapiches. Ouviu o apito dos navios, o ruído de trem nos trilhos.
Com a mala de couro amarrada por finas cordas, Cleobulina andou a pé de Jaraguá ao Vergel, do Vergel ao Bebedouro. Ela foi de porta em porta, casa a casa à procura de Pragmática. Acabou no Bom Parto.
Maceió não era cidade, amiga. Maceió era cartão-postal. Viesse logo, hoje ou ontem, Cleobulina. Viesse! ela ouvia, por horas e por dias, a forma conjugada do verbo vir na primeira e na terceira pessoa do singular do pretérito imperfeito do subjuntivo. Viesse!
De tanto uso, por semanas, desintegrou-se a terceira pessoa do singular do pretérito imperfeito do subjuntivo. Vi...e...s...se...
O assunto, Pragmática, de que te falei...! – assim, começava a carta de Cleobulina à amiga. Uma carta que começou em Santana e ficou sem a resposta de Maceió.
A crise por que passamos, amiga, não existe mais. E o assunto de que te falei... Neste ponto, a carta mostrou os motivos pelos quais Cleobulina deixou Santana por Maceió.
Saiu do sertão ao litoral. Cleobulina chegou a Maceió. Ela testemunhou, durante a viagem, na Xepa, a secura ser substituída pelo frescor. Os mandacarus deixados na poeira, as jaqueiras floridas nas terras moles litorâneas.
Carroças de burro sumiram, sumiram riquexós. Automóveis barulhentos e ligeiros rasgavam ruas caminhantes nas praias. Navios estrangeiros atracados.
As ruas, as casas pareciam feitas de açúcar, o mesmo que movimentava a economia e fazia circular o povo que ignorava o sertão. Tratava-o como exótico, ambiente pitoresco, violento, terra de gente que idolatrava o Cangaceiro do Rei e as suas astúcias de pirata associadas às conchambranças com a morte.
Cansada de procurar a sua amiga de infância, Pragmática, Cleobulina sentou-se na areia fina. A mala de couro amarrada por finas cordas ao seu lado, ela, com a mão sobre o seu tesouro, temia ser roubada, ser violada.
As ondas lambiam os pés doloridos de Cleobulina, que andou de cabo a rabo em Maceió e colecionou rachaduras, feridas expostas, bolhas, unha fora do lugar após esbarrar em pedras à procura do endereço de Pragmática. Cleobulina praguejava o destino, a vida que foi forçada a atravessar esse oceano, e tudo o que havia depois das águas salgadas, e os bichos miúdos que corriam na areia molhada como se brotassem dela por assombro e voltavam ao mar.
Aves brancas, estranhas, que o sertão desconhece, davam voos rasantes sobre o verde da água temperada com sal. O volume d'água crescia e dobrava-se, quebrava-se, sumia na flotação que gerava a espuma, reaparecia, tornava a crescer, tombava, sumia, corria um colchão d'água, um lençol d'água e lavava os pés feridos de Cleobulina.
As nuvens eram pesadas d'água no horizonte azul que tocava o verde na água salgada. Sol alto. Mar e céu logo se uniam no abraço eterno feito miragem, enganação a quem nunca navegou e era navegado.
Cleobulina encheu as bochechas, soltou ar. Ah! ela fez ao seu cansaço, ao seu desengano, à sua desesperança, ao seu desassossego.
Os navios chegavam com peste a bordo. Havia uma onda de tifo naquelas ruas, nos becos imundos, nos ambientes afastados. Nas imagens pintadas em desenhos de natureza-morta repousavam a náusea e a estranheza.
Um marinheiro aproximou-se da mulher na praia. E não sabia ele ser ela sertaneja. I'm Joe! disse o marinheiro à Cleobulina num jogo de corpo esquisito e, com a mão esquerda, tirou caxangá.
And yours, madam mermaid?
Oxi! reagiu Cleobulina com interjeição de espanto.
O marinheiro sentou-se ao seu lado. Cleobulina mostrou-lhe a peixeira com lâmina de dez polegadas.
Foi o fim do início duma conversa amistosa. E Joe guardou caxangá "I'm sorry!" se foi a repetir "I'm sorry, madam; I'm sorry!" repetiu até desaparecer entre os bangalôs à beira-mar onde os caranguejos corriam nas calçadas.
Na varanda de um daqueles bangalôs, a irmã de Cleobulina, Temistocleia, conversava e ria com o seu marido Cel. Eufemismo. Ao lado deles, Asioteia, filha de Temistocleia. O pai de Asioteia ignorado, o relacionamento entre a mãe e o pai de Asioteia, na casa do coronel, não se sabia nem se falava sobre o assunto.
Fazia tempo que Temistocleia saiu de Santana. Fugiu com um homem casado. À época, Eufemismo era padeiro, que viveu em diferentes lugares, que era estrangeiro em terra estranha, que apareceu no sertão alagoano com a família, que se comunicava na língua de Cervantes.
Eufemismo carregou Temistocleia. Em Maceió, ganhou dinheiro, comprou títulos, tinha armazéns no porto, era identificado na sociedade açucareira como Cel. Eufemismo, morava num bangalô defronte à praia. Como riam Temistocleia, Asioteia e o Cel. Eufemismo. Eles celebravam a vida, celebravam o Dia de Reis com vinho e frutos do mar.
O cheiro de cachaça nas calçadas estreitas de Jaraguá. Havia movimento constante nessa fatia portuária.
Os armazéns no porto estavam cheios de produtos primários a seguirem viagem ao estrangeiro. Os armazéns do Cel. Eufemismo cheios de couro e fardos de algodão. No bangalô, eles comemoravam por dias seguidos a Festa de Reis.
O lugar mais longe em que Cleobulina havia ido, até então, foi em arrozais de Pão de Açúcar. Não sabia sobre a febre amarela que visitava a cidade. Maceió repleta de estrangeiros, que vinham de lugares distantes.
Tudo em Maceió era escancarado, diferente de Santana. Na capital, todos pareciam conhecer a vida de cada transeunte; exceto a vida de Pragmática.
O local de lucro era Jaraguá, onde os armazéns dormiam os seus sonhos de mercadejos com os mais variados produtos que chegavam à capital alagoana. Sertão, Agreste e Zona da Mata não tinham outros caminhos senão as rodagens que os levavam ao litoral.
A cozinheira Pragmática! perguntava Cleobulina em sua última tentativa nos bairros, nas ruas, nas praças, nas casas, e nas escolas, à procura da amiga de infância, e nas igrejas.
Pragmática, ela insistia, que veio do sertão. Não? Ela era de lá. E não era alta, não era pequena; era assim! dizia e mostrava o desenho da amiga com as mãos. Era casada com o pedreiro Pérsia.
Ou era o pedreiro Xerxes? perguntava-se Cleobulina. Não, não! Era Sírio. Não. Era Ciro. Não. Era Dario. Não. Era o pedreiro Esmérdis. Ah, já não sei!
Perguntou Cleobulina ao Mestre, na praça, na Festa do Sol, perguntou ao Rei, à Rainha, perguntou ao Contramestre, à Contramestre, e evitou os Mateus metidos a enxeridos, e perguntou ao povo. Frustrada, ela jogou-se ao meio-fio na primeira calçada.
Cleobulina julgou ver a sua amiga defunta, e teve medo. Sepultou o rosto nas palmas das mãos, decidida não mais procurar Pragmática. O meio-fio estava na calçada, passagem de Cleobulina, filha de Pragmática, ao ia à padaria buscar pães, de manhã e à tarde, servidos aos hóspedes na pensão onde Pragmática trabalhava como cozinheira.
Os mendigos tomavam as ruas. A mendicância era mais rica no comércio. Cleobulina ficou horrorizada ao ver um pedinte estender a cuia à uma senhora e esta respondê-lo com flatulência. Cleobulina percebeu o quanto estava longe de Santana.
A vida de Cleobulina de repente se transformou numa panela de pressão. A economia passava por isso desde 1929. Passou por ela um homem de guarda-chuva aberto sobre a cabeça, que andava de costa, dava as costas ao presente e caminhava como se fosse voltar ao passado.
As pessoas nas ruas de mãos estendidas. Eram crianças, mães, avós e homens novos e velhos com chapéu à mão em direção aos passantes.
O que aconteceu com a cabeça das pessoas, meu Deus! ela quis saber, e não obteve a resposta. Por que a Pragmática não ficou em Santana?
Procurou nos túmulos o nome de sua amiga de infância. Cleobulina vagou por cemitérios, depois de ter ido às praças de Maceió.
A constância de gente em Santana era pouca, muita era Maceió em gente de constância que assustava à compreensão de Cleobulina. Ela perdeu o chinelo de couro e já havia tempo; as ruas na capital comeram o solado, fizeram furo na frente, arrebentaram-lhe as reatas, deixaram-na descalça.
Os cemitérios eram ambientes vazios como prenúncio da morte. Era neles em que se podia experimentar a finitude do que estava vivo e logo já não estava. A nãovida eternizava-se no término da vidavida; exceto na ilusão de algum breve retorno, de alguma volta futura, de alguma revida que compensasse a frustração da perda eterna.
Onde a Pragmática está! gritou solitária Cleobulina.
Aonde foi, Pragmática?
O apito da Great Western acordou Cleobulina. Em esculturas equestres, Deodoro e Florianópolis eram estátuas que nada podiam fazer por ela.
Procurou trabalho, sem êxito. Cleobulina mendigou, sem sucesso.
Conviveu com noites intermináveis, fome, frio. Diferente dos recôncavos, no Raso da Catarina, que dormiam tranquilos, sem fome, sem frio, sem derrota. Cleobulina encontrou abrigo na Rua da Lama.
Nos casarios dos velhos escritores, os poetas sonhavam com a academia de letras. Cleobulina espremida, na Rua da Lama, sem dinheiro que a permitisse voltar a Santana, sem roupa suja de ganho porque o seu ganha-pão de lavadeira a concorrência sem escrúpulos e desbocada lhe tirou nas lavanderias coletivas nas praças da cidade.
O corpo de Cleobulina foi depósito de chofer de praça, de comerciante, de açougueiro, de pedreiro, de assassino, de peixeiro, de guarda da esquina, de jogador, de bêbado, de carroceiro que recolhia o lixo naquela parte da cidade. As vestes tornaram-se-lhe trapos.
Enquanto mantinha os traços de juventude, lutava presa à Rua da Lama. Via muros apodrecidos pela maresia que morriam nas nesgas de calçadas.
O rosto ficou marcado a tapas, o corpo a safanões, socos no estômago, chutes nas pernas, beliscões nos braços, mordidas nas partes. As noites eram eternas, dia curto cabia numa cama de colchão de capim que provocava coceiras e fazia erupções na pele. O buraco que a recebeu na Rua da Lama, dentro, corria um esgoto.
Talvez o fim fosse entre a Praça dos Palmares e a Igreja do Livramento. Na Rua da Lama, não via outra praça, nem casa de preces e arrependimentos.
Decerto a metafísica fosse apenas um elixir que a saciasse por instantes, até a próxima dose. Emplastro – a metafísica – que mascarava momentos assim, momentos evitados na Rua da Lama.
O mundo acabou e ela não sabia. Quando foi que o mundo deixou de existir? Cleobulina não soube se autorresponder.
Percebia-se algo estranho com o mundo, como se não existisse mais, mas desconhecia que era de fato o seu fim. As unhas cresceram e enlutaram-se. As carnes secaram por completo. O cabelo em desalinho. Nos primeiros dias, em Maceió, lhe sumiu a mala de couro amarrada por finas cordas.
Ela começou a dar sinais de comportamento obsessivo; evitava tocar nas coisas, nas paredes, nos postes, evitava ser contaminada com a febre da cidade grande. Cleobulina andava trôpega e delirava, nas ruas de Maceió. Julgava-se perseguida, falava sozinha, olhava o tempo todo, se era seguida, alguém vinha ou não ao encontro dela, dizia ter superpoderes mas era traída por seus próprios poderes.
Havia ratos que corriam numa passagem estreita entre dois prédios, no centro. Etrusco, primo de Cleobulina, passou na Rua do Beco num automóvel.
Era um beco fedorento e sujo. Ela revirava aquele mundo em busca dum par de chinelo, talvez roupa velha. Encontrou um recém-nascido envolvido em panos imundos e úmidos num líquido vermelho escurecido.
Mexeu nos grudentos panos com medo de que neles pulasse um animal. Surpresa, Cleobulina viu uma criança.
Os passantes ignoravam aquele quadro da mulher descalça com alguma coisa nos braços. Cleobulina deixou o beco. Procurou, rua afora, como se dizia em Santana, um espírito samaritano. Apontaram-lhe o Orfanato São Domingos. Ela subiu a ladeira do orfanato com o choro da criança.
Em cada esquina uma casa-grande, em cada casa-grande uma cara feia, nas caras feias o asco estampado dentro duma roupa estranha. O Dr. Laudêmio, empolgado, falava em dinheiro, em moeda estrangeira, com o Dr. Aforamento.
Boa tarde, Dr. ITCMD! os amigos trocavam cumprimentos.
Numa calçada ampla, na Alameda dos Coqueirais, ambos se encontraram com o Dr. Enfiteuse, irmão do Dr. Aforamento. Mais negócios, viagens, moedas estrangeiras, tesouros.
Feliz de quem era feliz! disse Cleobulina. E a felicidade exigia tão pouco.
Os corpos dos doutores, na Alameda dos Coqueirais, caminhavam com as suas bengalas, as suas cartolas, dentro de seus fraques no calor dos trópicos, e acompanhava-os os seus cãeschorros.
Uma menina alimentava pequenos pássaros. As suas pontas dos dedos tocavam à água, que alimentava o corpo das criaturinhas de asas.
A fruta, nos pomares sem começo nem fim, em Maceió, na Alameda dos Coqueirais, amadurece no frondoso pé, tomba ao chicotear do vento, junta-se a outras vermelhas, maduras, mastigadas sob as botinas dos doutores.
No Orfanato São Domingos, a menina alimentava aves do céu; estas não plantavam e colhiam. Perfumava toda a tarde o cheiro de felicidade nos olhos verdes de Cleobulina.
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