(dedicadas ao Sr. Pois-É e à Sra. Mas-É, os primeiros cangaceiros)
E o estio afastava os rios voadores. A caatinga seguia na perda das folhas em terras secas, pedras cobertas por ferrugem e espinhos de roseta.
Santana. Sertão.
O grilo, um tipo descuidado, cricrilava e cricrilava sem perceber o coaxar do sapo banguelo à espreita, e com fome. No princípio do último século, Santana era uma mistura amedrontadora, homiliou o padre Velho o versículo que usava a metáfora do rico e da agulha, e, na semana seguinte, reproduziu no semanário O Liberdade de Expressão sobre a bagunça das vogais.
O Dr. Cicrano vivia na Desvalida onde dedilhava a sua viola como se fosse uma arma de repetição. Disse:
D. Xântipe, a finada curandeira da Rua da Cadeia, mulher do marceneiro de muletas, praticamente viu Assíduo nascer e o acompanhou desde os cueiros.
Havia coisas inquebrantáveis entre os mistérios deste universo onde esta Terra foi gestada. Entre o cangaceiro Assíduo, que fugiu da pena por correr com faca de ponta atrás de Temistocleia, filha da curandeira, e o Dr. Cicrano, primo do Dr. Sicrano, havia vínculo considerado pelo doutor que se alimentou do leite materno da jovem mãe de Assíduo.
Em Santana, o tempo viajava pelas paredes das casas. Estava escrito:
O romance era a família
Cheia de filhas e filhos,
Vizinhos, brigas e fome.
O conto era uma parceria,
Um casal ao desengano;
E vivia às favas contadas.
Crônica era a passagem,
Uma servidão nas ruas
Com os temas cotidianos.
Poesia era outro papo:
Mostrava sem contar.
Ali, na rede balançando.
Na época de estios prolongados era o medo do cangaço que fazia crescer o terror. Neste ofício que escolhi ouviam-se histórias e passava-se o tempo preso ao silêncio; eu passava muito tempo em silêncio.
O padre Velho e o jornalista fluminense conversavam sobre reportagens e longas viagens. O padre disse ter atravessado o Mar Tenebroso com a leitura de Navios Negreiros, o jornalista na revisão de uma nova edição de seu livro.
E o silêncio navegava desde 1530. No silêncio, disse o repórter do Jornal do Ser Tão ao padre, eu reescrevi este livro.
Queria lê-lo, o padre Velho pediu ao repórter que, durante semanas de aflições, subiu do Rio a Maceió nas águas do Atlântico, e de Maceió a Santana na trepidante Xepa. O jornalista entregou nas mãos do padre o pesado volume:
REFLEXÕES DE UM REPÓRTER SOBRE O FENÔMENO DO CANGAÇO
(dedicadas ao Sr. Pois-É e à Sra. Mas-É, os primeiros cangaceiros)1.
O homem era fraco porque não era forte. Era o desespero do homem fraco que não lhe permitia ser forte.
2.
Inimigos eram vingados por inimigos nas emboscadas, nas cidades ou no mato. Se não quisesse vingança, não procurasse inimizade.
3.
O que se exigia do cangaceiro era ser útil ao bando, às ordens de quem lhe dava. Nem traiçoeiro nem fanfarrão. Caso não conseguisse, servisse ao líder do bando e ao dono, este liderava a todos e aquele ao subgrupo. Ainda assim fosse difícil ser útil, fosse aos mais próximos, se difícil fosse, então fosse útil a si.
4.
O cangaceiro nasceu à morte.
5.
O cangaceiro, qual sertão, mesmo tranquilo, havia agitação.
6.
Primeiro, os nossos; depois, os nossos.
7.
Cangaceiro era aquele que tinha confiança em si.
8.
Aproximava-se de corpos doentes qualquer cangaceiro que quisesse adoecer.
9.
Se findava na Santa Gulora, o cangaceiro que se entregava à ânsia da glória.
10.
Quem dava fama e riqueza ao cangaço era o próprio cangaceiro, e não o destino.
11.
Vida de cangaceiro foi acorrentada à sina.
12.
Toda vida era serviço.
13.
Quem quisesse viver na paz do padre Cícero Romão, não fizesse artes privadas ou públicas.
14.
Cangaceira e cangaceiro eram somente quem acreditava sê-los.
15.
Só havia tristeza onde não houvesse alegrias.
16.
Cangaceiros não eram antissociais ou antinaturais; eles eram o que eram.
17.
No sertão, a oligarquia não se alternava, pois não aprovava a mudança de mãos.
Lia o padre Velho a esmo, enquanto folheava o livro do repórter:
200.
Todo cangaceiro possuía o exato tamanho do seu caminho.
201.
O cangaceiro era o cangaceiro e as suas condolências.
202.
O que se sabia era apenas o que se sabia.
203.
O homem na natureza era sinal de que não havia natureza.
204.
Cada manhã, cada dia na semana, dia a dia, a criatura era acordada pela sorte. O destino a convencia a permanecer dormindo.
205.
Desconfiasse da pessoa que não gostava da poesia.
206.
A sabedoria sempre foi reconhecida como inclinação natural.
207.
O homem falava por falar, sem saber o que falava.
208.
Até a data de hoje ninguém disse ter sido a morte criada pelo desejo dos vivos.
209.
Como se livrava das tristezas? Se livrasse das doenças.
210.
Música e dança eram bálsamos a dor.
211.
Os negócios públicos eram embaraços aos privados.
212.
O mundo sertão era um capítulo à parte.
O padre Velho perdia-se na quantidade de páginas. Folheava, abria o livro aleatoriamente. Relia-o:
500.
A mentira era um saco de penas.
501.
Toda a verdade não passava de uma invenção da fantasia.
502.
A morte era como um sono que caía sobre a vida como um presente.
503.
Roubasse somente o que pudesse carregar, seu burro!
504.
O que era a vida senão uma sucessão de ações mal compreendidas.
505.
Tudo era eterno mesmo quando chegava ao fim.
Quanto mais o padre Velho lia, mais era atraído pela leitura:
1029.
Guardasse o que não lhe servisse mais por sete, oito, nove, dez anos; e depois mudasse de lugar. Se o que guardou ainda assim não lhe servisse, guardasse-o por mais sete, oito, nove, dez anos. Isto dava sentido à memória.
1030.
A loucura era a regra entre os homens.
1031.
O suicídio era o melhor remédio quando não se encontrava remédio.
1032.
Um chefe de bando só se mantinha chefe se observasse aqueles comandados.
1033.
O conhecimento ainda era misterioso.
1034.
O homem sempre quis ser um deus, sem ser, e por isto era humilhado e adoecia.
1035.
No sertão, quando não havia batalha, o cangaceiro arengava consigo mesmo.
1036.
O princípio da posse sempre foi tiranizar.
1037.
O jogo e a guerra eram devoradores do dinheiro.
1038.
Em território hostil, o cangaceiro andasse feito gato.
1039.
O bom combate era a paciência.
1040.
O inimigo sempre mostrava as suas deficiências.
1041.
Só quem ficava de tocaia à espera do inimigo conseguia ficar descansado.
1042.
Quem comandava o homem eram as gêmeas siamesas ética e moral.
O padre Velho lia avidamente. Molhava as pontas dos dedos com a língua, esfregava-os entre aquelas páginas, encontrava-se, desencontrava-se, passava à próxima página, seguia a leitura. Era como se nunca mais fosse parar de ler.
2022.
Garantia a vitória na guerra a harmonia de cabras dispostos à luta.
2023.
Evitasse fazer acampamento em lugares hostis.
2024.
O inimigo sempre dava sinais.
2025.
Usasse a linguagem hostil e demonstrasse agressividade se quisesse acanhar todos os seus inimigos.
2026.
Punições não podiam exceder o castigo.
2027.
Festejassem todos depois da luta.
(...).
Curioso escrever, respondeu o padre ao repórter ao devolver-lhe o livro.
Gostou? quis saber o repórter fluminense do Jornal do Ser Tão.
Político era animal sagaz. Li as partes curtas, pulei as partes longas. Vi que este seu livro era cheio de promessas.
Livro era objeto que fazia promessas, padre.
Li em seu livro que viver era buscar felicidades.
O vovô, Dr. Vil, queria felicidade eterna, padre, e a buscava nos prazeres da crueldade que fazia a si mesmo. Crueldades feitas no corpo.
No corpo?
A família aceitava, pois ninguém tinha coragem em contrariá-lo.
Estranho.
Era menino, quando testemunhei as peripécias do vovô. O Dr. Vil, contou o repórter ao padre Velho, depois que voltou da Europa, disse que os estudos feitos na outra banda lhe ajudaram a ser ibarmenxi.
Estranho...
O que era ibarmenxi ninguém sabia. Sabia o que eram as perversidades nas fazendas do vovô.
Talvez, meu filho, ele fosse submetido à autossacrifícios somente como forma de autocastigos.
O vovô talvez desejasse limitar a perturbação que lhe afetava o equilíbrio. Na vida de autoflagelo, padre, o vovô conseguia ser recompensado?
Talvez, meu filho!
O vovô carregava pedras na cabeça, no serrote acima.
Pedras?!
Pesadas como pensamentos degenerados. Era como viver sem acreditar que vivia. O vovô era um animal eternamente enfermo. A lua era a sua pequena alegria.
Lua ou luar?
Uma lua assim, padre, conseguia livrar o vovô de qualquer mal-estar.
Lua...! coçou o queixo.
Ele era atormentado pelas ideias de pecado.
Pecado? coçava o queixo.
Acordava aos gritos e caía da rede onde dormia.
Pecado.
Uma alma doente não era possível suportar o peso histórico do pecado.
Conheci o Dr. Vil, na Roída! disse o padre. Quando fui apresentado a ele pelo Dr. Cicrano.
O Dr. Vil governava, não pelo prazer em governar. Governava porque não aceitava ser governado.
O sertanejo acreditava de maneira absoluta! atalhou o padre Velho. Como acreditava Santo Agostinho e São Tomás de Aquino.
Esta moral do tempo do vovô foi o que recebemos como legado, padre.
No mato, meu filho, o besouro e um passarinho reconheciam-se besouro e passarinho porque tinham inteligência.
O moral do vovô era bangue-bangue.
O padre disse ao repórter ter sido vaqueiro em sonho. E trouxe ao repórter um chapéu. Este era o lado carnal no chapéu de couro do vaqueiro, que usava chapéu de aba bem curta. Observasse bem, neste lado carrascoso espinho não varava; carnal era a parte interna e áspera no cucuruto do chapéu, o lado externo era liso.
Cangaceiro era o contrário do vaqueiro. O primeiro gostava de andar com a testa estrelada, o segundo não. O cangaceiro era gente que se inimizava facilmente.
Na conversa entre padre e repórter, na varanda do casarão, Prequência, surgiu. Sorriu. Trazia a bandeja de prata com licor de jabuticaba. O padre Velho e o repórter foram servidos.
A irmã do padre vivia perdida dentro do acaso. Ia, voltava do pomar, sem ter outra vez o que fazer na tarde do domingo de outubro. Prequência Prequela surpreendeu-se ao ver o irmão recluso na camarinha a pregar botões na batina.
Na hora da merenda! disse a irmã a si mesma. Por que ele não me pediu? Eu teria pedido à sobrinha Elipse que pregasse os botões.
A maior riqueza em Santana era a água potável. No casarão do padre Velho havia cinco cisternas. E todas cheias pela boca com a melhor das águas.
O conjunto de árvores frutíferas no terreno ao lado do casarão abençoado com água do riacho Camoxinga. Até mesmo em longos períodos sem chuva, o solo mantinha a sua riqueza em umidade e nutrientes.
Prequência Prequela, no salto, trazia a tela, as tintas e os pincéis na cesta de vime. Pintou à tarde, no pomar do padre Velho.
De único mamão maduro, Prequência Prequela viu voarem uns vinte bem-te-vis. Cada um com o bico tingido com a cor da polpa do mamão maduro.
O padre Velho chorava enquanto escolhia os botões, as linhas, as agulhas e encolhia-se num canto. Mantinha às vezes o seu comportamento antissocial:
Ó Deus! reclamava. Por que envelheci tanto? espetava-se sem enxergar a agulha que furava o tecido preto da batina e o dedo que se tingia de vermelho.
Aprendi em Santo Agostinho desde a infância inocente, disse a si mesmo. Foi respeitosa a meninice, e a adolescência paciente. E tropecei tantas vezes na juventude, e tantas vezes nenhum mérito na maturidade. Por isto não alcancei a velhice sábia, como pedia Santo Agostinho.
Ó São Tomás de Aquino! rogava; as lágrimas desciam-lhe atraídas pela força da gravidade. Socorra-me na hora das lembranças e atribulações. Sempre as dúvidas em saber o que deveria crer, e o que deveria querer. O que fazer, São Tomás?
O casarão era o mundo do padre Velho, e a camarinha em particular. No correr da linha, o tempo era uma agulha pela qual passava ávida a vida. A linha era uma divindade cega de Cronos derivada. A criação do povo santanense fazia congelar o tempo, na voz do padre Velho:
Santana é terra séria, de homens sérios, de gente séria! ouvia-se esta voz que saía do quarto do padre Velho. Ora!
O domingo cedeu a segunda-feira, como cedera nas semanas passadas, nos meses passados, desde que o padre era padre. Antes mesmo do padre ser padre, o mundo cedia às segundas-feiras, e nem sempre ele se dava conta.
Sabiá-laranjeira acordava o padre Velho. Despertador dádiva da natureza. Passava a mão no cabelo, jogava os pés nus no xoboi, saía chelepelepe corredor adentro.
O padre Velho ia da camarinha ao banheiro. Água na cara. Corriam dedos das mãos na pele do rosto vincada e sem conserto:
Meu cabelo branco, minhas sobrancelhas; o loiro se metamorfoseou em prateado feito o caixeiro-viajante metamorfoseado em inseto repugnante, um rola-bosta.
Os xobois chelepelepe do banheiro à cozinha. Esperavam o padre os seus pastéis de açúcar e o queijo de coalho, o leite, o café.
Chelepelepe. As formigas numa maratona sobre a tábua da mesa, no café do padre. Moscas em voos rasantes. Veio a canjica, veio a pamonha, vieram as frutas: mamão colhido em casa, que cabia uns vinte bem-te-vis, jabuticabas com as quais fazia doce, licor, bolos e cachaça. Abacaxi, caju e manga rosa.
O padre Velho alimentava um antigo costume. Quando tirava o dia, falava tanto tempo sozinho que até se convencia de que falava, não com um outro eu, e sim com um outro alheio.
Enchia os espaços de assuntos.
Não era por loucura, longe disso; tampouco por causa da idade. Segundo dizia, quando surpreendido e acusado de fraco das ideias.
Era hábito adquirido desde a sua época de Coimbra, onde fez os estudos. Falar sozinho era antes o exercício da memorização, o meio, segundo se sabia, que mantinha a sanidade de quem praticava.
No casarão, o padre Velho chelepelepe. Quais se todos os fantasmas não fossem um destino, tais se os destinos não fossem apenas velhos e conhecidos fantasmas. Se a vida fosse fácil, repetia o padre, não seria difícil.
A montaria do padre foi trazida por Patacão. Comia no monturo. Patacão chegou ao quintal do padre Velho, abriu a porteira, passou, puxou o bicho, selou com a sela costurada pelo filho caçula do coiteiro assassinado. Deixou o burro e foi informar ao padre Velho.
As sabiás-laranjeira haviam cumprido a sua função de chamarem o padre Velho. A segunda-feira trouxe o sol, e este o mormaço de braços com a falta de ar. Tremulava o chão de terra seca, pedras soltas, espinhos de rosetas.
O gado não passava sede nestas terras de pedras cheias de lajedos. Em cada lajedo havia um caldeirão d’água.
Descia o padre Velho o serrote. Sacolejava em lombo de burro.
Fosse eu acreditar em promessas! disse o filho do coiteiro ao padre Velho. O filho do coiteiro estudou no Recife por indicação do padre.
Quase morei em Santana, padre. Não fui. Recebi convite na rua, se quisesse ser inspetor de quarteirão.
Aproximou-se o burro do filho do coiteiro que havia sido assassinado.
Aqui, eu tinha o sal na gamela, na gamela tinha açúcar de rapadura, tinha casa de farinha em riba; e o apurado aqui era maior.
O padre Velho apeou do burro.
A família era toda daqui mesmo. Éramos nascidos e criados em Gramas.
O padre Velho procurou água. Tirou a tampa do pote. Serviu-se d’água de pote com uma concha feita de meia casca de coco da baía.
Essa vida na rua era de se desconfiar.
O padre matava a sede. O filho caçula do coiteiro que levou o bizunguinha recém-nascido dos cangaceiros ao casal Polissíndeto e Prosopopeia desabou a conversar. Ele falava na roça e nos perigos de volantes e cangaceiros.
Era da seguinte opinião, padre, quem falasse bem de monstro era porque era mostro também. Se quisesse, eu tinha sido alistado e tomado parte na tropa de Santana; e não quis. Tive vizinho jagunço, o Mameluco, era chamado assim pelo finado Euclides, o coronel, não Euclides, o bacharel, nem o fazendeiro Euclides ou o juiz de paz, que também era Euclides; este era daquele tempo de meu pai. O juiz Euclides também tombou emboscado por um lobisomem.
Conheci todos estes! o padre interrompeu a água que lhe corria no queixo. Conheci até o Pai da Geometria.
No mundo beato, padre, via-se de tudo.
Outra vez, o padre Velho mergulhou o utensílio no pote d’água – blum! – e trouxe água gelada. Estibungou outras vezes a concha com o cabo de madeira. O meio-dia ameaçava derreter as ceras nos ouvidos de qualquer cristão.
Um dia, padre, o opulento Dr. Vil mostrou aos jagunços daqui o caminho de volta. Não ficou um por essas bandas. Eles tomaram o rumo do rio, desceram pela cabeceira, escalaram as barrancas do São Chico, tomaram giro da venta e se meteram gerais abaixo com as orelhas na cabeça e os calcanhares atrás.
Blum! estibungou o padre o braço na boca do pote.
Fui batedor, padre. Sabia? Batedor dos bons.
Foi? o padre Velho passou as costas das mãos na boca, e tirou o excesso d’água.
Se visse uma pedra, uma pedrinha qualquer virada, logo sabia o rumo que a cabroeira tomou. Aprendi com os Fulni-Ô, meus parentes, padre.
O padre Velho abancou-se.
Nunca quis viver de embornal, fuzil e 200 cartuchos na cartucheira, padre. Vestido de roupa grossa de azulão. Enfrentar o zunido das balas não era coisa certa a fazer. Era? Respondesse.
O padre Velho calado. Assuntava o filho caçula do coiteiro que perdeu o pai assassinado, não havia uma semana. Voltou do Recife carregado de sonhos, como sonhou Bé Carroceiro, que se tornou Bé Saboeiro, e se fez Bé do Algodão.
Vez ou outra, padre, eu lia nos jornais que chegavam do Rio, as sedições feitas no sertão. As tropas viviam a promover sedição mesmo nas terras santas dos beatos.
Assuntava-o o padre Velho. O caçula do coiteiro morto queria ouvidos que lhe dessem atenção. O padre entendeu que o afeto era o melhor remédio.
Essas terras, primeiro, foram terras de jesuítas, padre. Quem tinha o corpo fechado não se preocupava com isso. Com a expulsão de Pombal, logo foram essas terras reocupadas por bichos.
Voltou a estibungar o quengo: blum! emergiu-o, levou a água à boca.
Me disseram que ficasse no lugar de coiteiro, como ficou o finado meu pai com a morte do finado meu avô, o pai dele. Recusei, padre. E fiquei no couro. Sabia costurar. Era ganha-pão. Essas, costurei com fivela dupla; elas ficavam melhores e mais seguras, nos pés. Mudei cores, ponteei, com outra qualidade.
Usava espinho de jurema nesses pontos?
Aprendi com o finado meu avô.
O padre, saciado no pote d’água, tomou outra vez a montaria, Esperança-de-Nunca-Mais-Empacar, e agradeceu ao filho caçula do coiteiro o presente, que esperava não ser de grego. O caçula do pai assassinado que o presenteou com o animal, não entendeu – ou fez de conta não ter entendido – o fim da conversa que lembrava a história da guerra de quase dez anos. No asno, o padre Velho visitava os sítios próximos a Santana.
E coisas do universo sem explicação aparente aconteciam ao Dr. Cicrano que, baleado por lobisomem numa emboscada, segundo noticiou O Liberdade de Expressão, saiu da Desvalida. Com voracidade sexual de locomotiva, ele retornou à Roída. Nela, reunia serrote, tábuas, pregos, martelo e enxó na construção da plataforma que pleiteava o cargo do primo Dr. Sicrano a qualquer preço.
Não se esqueça de alimentar as piranhas, disse o Dr. Cicrano. A professora Anistia, com o bastardo de colo, filho do doutor, nunca entendeu todos aqueles bichos empalhados, no solar. Agora, essas piranhas! A arte da taxidermista Fruição decorava os corredores e a sala principal ao lado da biblioteca onde O Liberdade de Expressão saía do tinteiro às mãos dos leitores.
Na Fazenda Roída, o Dr. Cicrano tecia a sua bandeira de luta, e escrevia os artigos.
Havia homens caçadores de bichos. Os cangaceiros eram caçadores de homens.
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