SALVE A NOSSA CIDADE DOS CANGACEIROS

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida

A velha mãe de Macambúzio foi morar na Desvalida. O mundo, impotente, dizia nunca mais conseguir harmonizar limão, açúcar, gelo e cachaça.
Era uma paisagem intensa e branca na planície. A camada grossa de tinta cobria o chão e a vegetação.
As pedras soltas na planície que se estendia até depois de onde a vista a alcançasse em todas as direções. Isto fazia imaginar que tudo fosse plano. Havia casas em todo o sertão; havia casas abandonadas, currais abandonados, reses abandonadas.
O mundo parecia ter sido abandonado. Desértica paisagem. E depois tudo ganha uma coloração de tonalidade esverdeada em todos os matizes. Igual a um pintor na fase verde da vida.
No espectro cromático do verde, com as primeiras chuvas, a luminosidade no sertão se comunicava por transmitância. Era o mundo na adolescência.
Eu era esta paisagem, estas pedras, esta vegetação. Eu era também as casas abandonadas, as reses que erravam pelo pasto sem pasto, sem ninguém.
Não havia sequer uma pessoa em nenhuma parte, porque eu não era pessoa. Era apenas as pedras soltas nesta planície que se estendia aonde os olhos fossem.
Fazendas deixadas ao consumo do tempo. Naquela casa havia uma família que se encontrava em torno duma mesa que não existia mais nem mesa nem família, porque tudo se evapora ressecado pelo sol.
Era como se tudo estivesse morto desde uma época da qual não se tinha data, cuja história se esquecera em registrá-la. Era o tempo na paisagem. Não apenas neste quadro de rápidas pinceladas, em todos estava o nada à espreita com a sua força extraordinária.
Seguidos anos de estio fizeram o que fizeram às fazendas e aos seus moradores, registravam as reportagens no Jornal do Ser Tão, reproduzidas em Santana pelo semanário O Liberdade de Expressão, do Dr. Cicrano. O flagelo arrasou os sonhos, arrasou as vidas, arrasou as fazendas.
E mesmo assim neste sertão era a parte no mundo onde não havia gente que não soubesse ler e escrever. Além da leitura e da escrita, dominava todas as equações e todos os teoremas; fossem os cálculos com números simples ou compostos, o resultado nas contas nunca errava.
Talvez parecesse fugir da verossimilhança, o padre Velho e Polissíndeto disseram ao Dr. Cicrano na feitura do semanário, comparar o alto sertão a outras partes. O certo era que no sertão em cada canto a leitura de jornais era habitual.
A história no sertão viajava em forma de seis versos ritmados e todos conheciam a história dos povos de cor. As estrofes eram variáveis e variáveis as sílabas poéticas.
Na Fazenda Desvalida, distante de Santana, atrás da boiada veio a galope o Dr. Cicrano. Ele aboiava o aboio que aprendeu quando criança, e ouviu o seu pai aboiar; o pai decorou o aboio ao ouvir o pai dele. Esta história dos povos era decorada cedo. Aboiava o Dr. Cicrano:
Neonarrativa sertaneja/Seguia o vaqueiro à roça/No aboio do Cangaceiro do Rei/Carro vincava a estrada de chão/Agricultor e agricultura/Ao som do carro de boi/Ricas lavouras sertões, senões//(...). Li no Jornal do Ser Tão/Carro de boi encantado/Os sertões dos sertanejos/Além do velho Euclides citado/Escrito em livro/Toda a história do Scelestus Homo/Navegante das caravelas/Embrenhado na caatinga/Vivente na vegetação branca/Criador de gado/Santana epicentro do lampionismo//Por tantas penas narradas/Desde Troia, e desde Esparta,/Mesmo Peloponeso/Sertão era o cantar da humanidade/Nas terras brabas do semiárido.
Era o polígono do cangaço a Desvalida. Propriedade do Dr. Cicrano desde a época do seu avô que subscreveu a Constituição de 1891.
Homiziaram-se Na Desvalida Macambúzio, que fugia da lei nos primeiros capítulos e era tido como em lugar ignorado e não sabido, Assíduo, que escapou da cadeia, na Rua da Cadeia, em noite de trovoada, além dos vaqueiros errantes que viviam sob o chapéu do Dr. Cicrano e o leite da mãe velha. O doutor aboiava feliz porque comprou o título de coronel.
Os chocalhos faziam amanhecer o dia.
Sol, a mãe velha disse, alevantou cedinho nas longas serras distantes, a mãe velha murmurou ao entrar e sair do curral de onde trazia o leite na cuia. Vi avermelhar-se.
A mãe velha, que era mãe de Macambúzio, filho bastardo do Dr. Cicrano, sorriu sem dentes; todos os dentes da velha mãe se foram. E o sol voltou com força e, quando ficava a pino, o vivente não vivia debaixo.
Distante descampado onde ouvia-se o balir das cabras. A velha mãe por costume equilibrou o cântaro na cabeça sobre uma rodilha de trapo e carregou água do Poço de Zezito até a distante criação de cabras.
Durante o trajeto, a velha mãe formulava palavras rudes sobre o beatismo, o patrimonialismo e o violencismo – representantes das forças do ocaso. O seu murmúrio, como se fosse uma oração poderosa, permitia amenizar as confusões duais entre morte e vida.
Sacrifícios eclodiram nas pedras, na terra seca e nos espinhos de roseta.
A tolerância, a velha mãe falava sozinha enquanto levava água às cabras, não tolerava a intolerância. A mãe velha seguia lenta o balir das cabras.
Tudo vasto, como toda a vastidão eterna, no falar da velha mãe naquele terreno plano onde as cabras baliam. Ontem, disse a velha mãe, visitou a casa-grande o Dr. Biltre, e com ele o coronel seu pai, filho do Barão e da Baronesa.
Alertavam as matérias e as reportagens nos jornais sobre o cangaço. Este fenômeno tipicamente humano encontrava-se em diferentes geografias.
O jornalista que o Dr. Cicrano trouxe do Recife, Lítotes, veio trabalhar em Santana. Polissíndeto, Lítotes e o padre Velho faziam o semanário O Liberdade de Expressão.
Os cangaceiros, escreveu Lítotes em sua estreia com a primeira capa feita em Santana, eram longevos. Ninguém se surpreenderá, pois, se amanhã o povo folclorizar o cangaceirismo.
A costureira Elipse largou todas as costuras e agarrou a campanha: Salve a nossa cidade dos cangaceiros. Jornalista Lítotes, nos socorresse! O Liberdade de Expressão publicava capítulos a cada semana sobre o Scelestus Homo. Este era conhecido, no Jornal do Commercio, por Cangaceiro do Rei.
Naquela semana, o padre Velho lançou mão de sua armadura, o tinteiro, e com a sua lança em riste, a pena, ele não mediu esforços, fez O Liberdade de Expressão praticamente só. Lítotes o ajudou com a manchete, isto foi verdade, disse o padre Velho. O resto fiz sozinho.
Só, e Deus! arrematou o padre Velho. Escreveu:
Jagunço: [subst. masc. adj.] pessoa forte cujas circunstâncias o adoeceu ao vender a sua força de trabalho à casa-grande; agiu como guarda-costas; faz-tudo. Homiziado às condições impostas desde a invasão dos colonizadores. E, plantado, germinou e se multiplicou nas pedras, terra seca e espinhos de roseta; seguiu cegamente os conselheiros e outros os seus próprios conselhos. Era da língua iorubá “jagun-jagun”, com o sentido básico de ação paramilitar ou guerreira; incorporou-se a língua vernácula nas veredas do sertão. Antepassado de jagunço enfrentou e derrotou os paramilitares das colunas que invadiram as suas terras. Jagunço assemelhava-se ao que “O Príncipe”, de Machiavelli, disse ser gênero mercenário.
Àquela época, as causas de boa ou de má sorte adoeciam os homens. Seguiu o padre com a pena no tinteiro em seu gênero textual injuntivo. Jagunços mantinham vivos os estados de seus príncipes ambiciosos, nem sempre fiéis nem sempre disciplinados.
Jagunços, escrevia o padre Velho, sabiam sem saberem que as suas lutas contra monstros careciam de vigilância perene porque, depois deles olharem por muito tempo o abismo sob os seus pés, o abismo penetrava-lhes profundamente na alma. Mergulhava a pena no tinteiro e ela saía com o bico molhado.
Mascates: [nome próprio Mascate; a cidade da qual vieram comerciantes trabalharem em selvas sertanejas; subst. masc. do pl. mascate]. Este vendedor nômade de itens manufaturados: armas, ouro, roupas, pedras preciosas, tecidos, alimentos. Em Olinda, a expressão pejorativa aos portugueses; palavra que deu nome, no ano de 1710, à Guerra dos Mascates.
Volantes: [subst. masc. adj. pl.] caracterizavam a celeridade das brigadas volantes; tropas volúveis que voavam sobre as pedras, terras secas e espinhos de roseta à caça de cangaceiros e de coiteiros daqueles. Agentes repressores do Estado que agiam em pequenos grupos à maneira das decúrias romanas.
Cangaceiro: [s.m. e adj. derivado do s.m. Cangaço, m.q. Cangaceirismo] cangaço caracteriza o animal morto e abandonado no campo, cujas costelas e ossatura eram limpas por carniceiros e delas restava o que se dizia o cangaço que o tempo consumiu e misturava-se a pedras, terra seca e espinhos de roseta.
Isto confirmava-se pelo professor Aristóteles, que foi o primeiro professor em Santana, que dizia aos alunos serem as pessoas animais e animais políticos, porque viviam em rebanhos e jamais sabiam apartar-se da vida comunitária. Animal, professor? Animal dialético porque pensava e pensava com pensamento justo e não justo no uso arbitrário de sua própria linguagem de justiça.
Ó professor! os alunos cercavam Aristóteles. Era isso mermo?
Era! repetia o professor. E era assunto de prova.
Ó professor Aristóteles! os alunos queriam saber. Falar e dar direito à fala do outro era também assunto de prova?
Naquela manhã de brisa sob as folhas dos umbuzeiros, a mãe velha dava de beber ao Cangaceiro do Rei, alçado à galeria dos matadores de santo. A mãe velha saiu do curral com a cuia cheia de leite.
Campo Alegre ajudava a mãe velha. Campo Alegre perdeu tempo da vida quando quis impressionar o pai com tentativas frustradas em todas as vezes nas quais tentou tomar parte nas fileiras da polícia e foi recusado pelo comando por não ter jeito de soldado nem demonstrava possuí-lo, e foi rechaçado pelas forças repressoras atrás de cangaceiros.
A cuia da mãe velha deu de beber a Urupema, um tabaréu na juventude, durante breve período que serviu às forças, expulso por descumprir ordens e falar mal à toa. Ele era aderente de Conveniência, conhecido Cangaceiro do Rei.
Carregava a mãe velha leite de cabra. Deu de beber a Maracajá, que era alfaiate de couro. Deu de beber a Ouro, que foi açougueiro matador de boi, vaca, carneiro e bode vendidos nas quartas-feiras no comércio de rua, nas feiras.
A mãe velha saiu, percorreu o curral de pedras, trôpega sob o sol que lhe mudava a cor do rosto. Deu de beber a Peritiba, que foi barqueiro em Piranhas; desistiu da vida paisana depois de ser preso e torturado por causa dum vinte-e-um. A mãe velha saciou Canelinha, que se dizia, antes de tomar parte no Grupo de Conveniência, bicho inferior a outros, sem leituras nem escrituras.
Canelinha era exceção entre leitores; corria a cavalo e amansava bois. Tipo raro que se envaidece ao ouvir a leitura das crônicas do violencismo irresoluto, nos jornais.
Palma Sola, que foi retirante da seca de quinze e fugiu quando criança da armadilha que aprisiona o pai, a mãe e os irmãos a caminho de Fortaleza. A este a mãe velha deu de beber o leite morno na cuia. E deu de beber a Modelo Armeiro e mestre no ofício que aprendeu com um tio míope, irmão da mãe.
Deixou o curral de pedras, a mãe velha e caminhou lenta. Itapema, que fez grupo com Conveniência, na Época do Alarido, veio a socorro da mãe velha.
Itapema, no cangaço desde o século anterior, fugiu da lei por furtar e fatiar bodes antes de entrar no Grupo de Conveniência. Na fuga, ele deixou cair o seu fura bucho. Fez jura de desistir da vida bandida quando deixou Santana. Ganhou de Conveniência bela adaga portuguesa e sentiu-se outra vez sarraceno.
E não ficou ninguém sob o telhado no curral de pedras ou fora dele sem beber e alimentar-se pelas mãos doces da mãe velha. Lajeado bebeu; ele, que ingressou na vida cangaça após a morte do irmão, atribuída à volante do Tenente Desabafo. E bebeu Cocal, que veio fugido de Pernambuco com dez crimes.
Timbó, que deixou o Maranhão quando menino, apareceu numa manhã de domingo à deriva nas águas – havia escapado das gargantas mortais do São Francisco; foi encontrado nas terras de Pão de Açúcar. Ele também bebeu das mãos doces da mãe velha. Comeu torresmo. E outro vaqueiro, ao lado de Timbó, foi Aurora, que foi amigado com Amanhecer.
Aurora iniciou-se no bando de Conveniência quando se apegou a irmã de Santinho, que recebeu no bando a alcunha de Luz do Amanhecer. A mãe velha tinha especial atenção ao vaqueiro Aurora, talvez por este ser um benjamim, no dizer da mãe velha; e não era à toa que este era tido por filho da felicidade.
Ermo, saciado pela mãe velha, foi marinheiro, e, depois de sacolejar no trem de Piranhas, ouviu as histórias do Grupo de Conveniência; desistiu de servir aos oficiais e se foi servir aos extraoficiais. Santinho, que foi jurado de morte por volantes da Bahia – afilhado da mãe velha – refugiou-se em vários subgrupos, e dizia ter encontrado sossego com Conveniência.
Jupiá, que deixou às pressas o Piauí, ao matar enforcado fazendeiro dito Ranzinza. Dele carregou a filha que não resistiu à gravidez em oito de janeiro, no Raso da Catarina. No Raso mesmo foi sepultada.
Que foi, Jupiá! ele estava perdido no bioma da caatinga.
Não nada não, mãe veia.
Cumaé a estória, rapaz?
Oxi, mãe veia! desculpou-se Jupiá. Fiz não nada não, não senhora não. Me livrasse se fizesse, mãe veia! ele falou como se se encontrasse nele mesmo.
Paial, que fugiu de um grupo religioso no Recife – onde viveu meses – após matar dois irmãos de uma surra, foi alimentado pelas mãos doces da mãe velha. E o irmão de Paial, Gravatal, também o foi.
Em Santana, O Liberdade de Expressão esteve a ponto de entregar os pontos, e o padre Velho o salvou de fechar. Jornalista Lítotes era quem escrevia as matérias sobre o que ficou conhecido em Santana como Scelestus Homo.
O Dr. Cicrano se foi de Santana havia seis meses. Vivia na Desvalida.
A Pharmacia ficou a cargo da professora Anistia, grávida de seis meses do Dr. Cicrano. Responsável pela contabilidade, pelo balcão, pela reposição dos medicamentos, pela gravidez, pelo solar.
Os quatro cavaleiros do semanário do Dr. Cicrano resumiram-se a três.
Tudão voltou ao DF, Rio, frustrado por não ter conseguido relaxar a prisão de Assíduo, que fugiu da cadeia na última trovoada. Depois da fuga, Tudão ficou inútil, rábula imprestável, eram os comentários do padre Velho e de Polissíndeto que rasgaram o sujeito, o verbo e o predicado.
Lítotes atenuava as contendas na redação ao repetir que não estava feliz. O padre Velho defendia a tese do Scelestus Homo e Polissíndeto era o defensor de que Santana foi o epicentro do lampionismo.
Melindres era o nome da velha mãe de Macambúzio, filho bastardo do Dr. Cicrano. Ela foi conduzida à Desvalida quando o doutor da Pharmacia prometeu levá-la a um lugar onde os rios corriam livres e as árvores frutíferas ofereciam à mulher o fruto nas mãos.
O fruto derivado da cesta envenenada, foi o que escutou a velha mãe de Macambúzio numa conversa entre o Dr. Cicrano e o padre Velho, envenena todos os frutos. Melindres aproximou-se da porta, isto gerou a expressão de que as portas tinham ouvidos.
O padre saiu às pressas do solar porque era sábado e tinha casamento a fazer. O doutor abriu a porta de repente e deu de cara com Melindres. Ele puxou a arma e jurou fazer como costumava.
E, naquele sábado, Homônimo casou-se com Homofonia. O padre Velho apressou-se com a cerimônia ameaçada pela trovoada que prometia abalar toda a cidade.
Quiasmo foi caçar com Queísmo, e não voltaram. Quiasmo era dado a inverter a ordem das palavras, e o irmão Queísmo omitia a preposição (de) cada vez que falava e na fala aparece a conjunção integrante (que).
Paronímia sonhava em ser professora de adultos. Via neles o significado diferente do significante que os representava. Por que, Paronímia? a mãe dela investigava com lupa. Porque tudo entre os adultos parece igual: a fala, o andar, o jeito de ser; tudo é muito semelhante, mamãe, e, ao nos aproximarmos deles, mamãe, não há nenhum significado, pois eles não se relacionam.
Homônimo era apaixonado por Homofonia desde o útero, disse a mãe da noiva. Então chegou a vez de Homônimo ouvi-la. E a mãe do noivo disse que o seu filho era o senhor das palavras com significado diferente que se pronunciava do mesmo jeito.
Será por isso, comadre? perguntou a sogra de Homônimo à mãe do noivo. A filha Homofonia, que escrevia diferente e falava igual, meteu-se na conversa, na porta do templo de Santana, no fim da cerimônia do padre Velho, e disse que entre as pedras coco.
Parônimo e Polissemia casaram-se no domingo. Diferente de Homônimo e Homofonia que se casaram no sábado.
A celebração de Parônimo e Polissemia saiu no semanário O Liberdade de Expressão, do Dr. Cicrano. Uma notinha de pé de página.
Parônimo, que era uma máquina de associar padrões, queria ser alguém que falasse palavras com significado absolutamente diferente e as pronunciasse da mesma forma. Em Santana, Parônimo era o oposto de Polissemia. Esta, que era elegante no vestir, no andar, no comer, no dormir, dizia que a mesma palavra quase sempre possuía mais de um significado.
A mãe de Polissemia, que não largava o pé da filha nem esta daquela, corria entre os convidados à festa de comes e bebes e a aplaudia efusivamente, porque a considerava camaleônica em tudo o que fazia. Polissemia virava a cara; odiava a mãe por isto.
A léguas de Santana, na Fazenda Desvalida, o dia a dia era banhado pelo sol. Os umbuzeiros recebiam lufadas. Os carcarás alimentavam-se no chão.
Melindres, a velha mãe de Macambúzio, sob os juazeiros, na Desvalida, alimentava e saciava os vaqueiros com a cuia de leite. Eles espalharam-se nas sombras, jogados, o chapéu de couro num canto, perneiras espalhadas, guarda-peito nos galhos, gibão, sapatos de couro, esporas.
A cuia de leite alimentou Meleiro Bagal, exímio atirador. Era o sanfoneiro, compositor na Fazenda Desvalida, que sonhava em ser artista de rádio. Serviu-se do leite de mãe velha; o leite correu nos cantos da boca.
Mãe velha atendeu a fome e a sede de Campo Erê, que perdeu pai e mãe na luta entre jagunços. O pai fazia parte da jagunçada, nos Gerais, e os inimigos do finado começaram as perseguições, depois de queimar o gado e as terras. Campo Erê foi levado pelo Chico; neste rio conheceu cabras de Conveniência, contou-lhes a história, foi aceito pelo grupo. Foi assim que Campo Erê chegou à Desvalida.
Rio Neguinho, que julgava lorde pertencer ao grupo de Conveniência, era vaqueiro do Dr. Cicrano. Ser vaqueiro no sertão, ele dizia, era receber o título de nobreza. E Areia Branca, que anos depois da liberdade de escravos perambulou sem rumo e foi cooptado por Conveniência, concordava com Rio Neguinho.
A mãe de Macambúzio servia aos vaqueiros, Macambúzio cortava palma forrageira ao gado. Pescaria, que viveu um período em São Paulo e não gostou, acusava a violência, e retornara ao sertão, que não era terra à revelia do tempo, bebeu o leite da mãe velha e alimentou-se da rapadura na farinha de macaxeira.
Xaxim, que era de família abastada numa região do Rio Grande do Norte, acabou na cuia da mãe velha igual aos outros vaqueiros. Igualmente o Menino, que saiu corrido por engravidar a filha caçula de fazendeiro vizinho ao seu pai.
A cuia da mãe velha foi da boca de Luzerna, que motivado a guerrear com o dia e fornicar com a noite, à boca de Ipuaçu, que buscava a vereda curta que a levasse à riqueza.
Havia uma paz imorredoura na Desvalida. Os vaqueiros arriados após luta insana com gado indócil e espinhos traiçoeiros.
Em Santana, a léguas de distância da Fazenda Desvalida, quase um dia de viagem, o padre Velho, que era forasteiro na cidade, dizia ter uma única irmã, freira; chamava-se Prequência. Deixou o templo aos cuidados de Patacão. E viu o tempo lesmar na casa da costureira Elipse.
O padre foi cercado pelas beatas.
E a Prequência, padre? as beatas queriam saber.
Prequência minha irmã? conferiu o padre Velho. Freira. Ela era de ordem religiosa quase em extinção, que pregava o espírito samaritano. Não era grande, o padre adiantou e fez gestos com as mãos, era assim.
As beatas aprovaram a descrição que o padre fez. Continuou a descrevê-la, Prequência, minha irmã, era um livro aberto que mostrava figuras imaginárias que viviam no mesmo ambiente dos livros que espalharam ficções e não fatos.
Ó padre! as beatas fizeram o sinal da cruz. E o padre Velho nunca mais falou na mana Prequência ao perceber que foi reprovado pelas beatas.
Calou-se o padre. Acedeu a costureira Elipse na porta onde alfaiatava o ganha-pão, e acompanhava a conversa do padre Velho e das beatas, que tinha à frente D. Babélica.
Distante a quase um dia de Santana, na Desvalida, a mãe de Macambúzio avistou de longe o Dr. Cicrano. Na montaria, o doutor antecedeu ao comandado de Conveniência.
Enfeitava-se com anéis caros e grandes brilhantes, dedos cheios de ouro e prata, o chapéu com moedas nos barbicachos dianteiros e traseiros. Vestia-se em roupas de couro de batalha.
Arvoredo! o Dr. Cicrano chamou o adestrador de cachorro e amansador de burro brabo.
Seguiram Arvoredo, a cavalo, Vargem e o pai Vargeão, remanescentes de Canudos, cujas mortes e perseguições levaram-nos à Desvalida. Tigroso, que era vaqueiro reiteradamente espancado pelo dono da fazenda da qual fugiu, ele e o irmão Porã.
Urubici rasgou o peito na caatinga, deu fé no descampado. Cavalgava na perseguição de uma vaca recém-parida.
Trombudo, o primeiro a introduzir a mulher no cangaço, segundo se sabia, arrebanhava o gado ao curral. Papanduva zelava pela porteira.
Água Morna, tio de Rodeio, foi morto a paulada por Trombudo; e Rodeio, que fazia viagens com Penha entre as capitais, negociava armas e munições à tropa, se arranchava na Desvalida. Rodeio ameaçava acertas aprumar as suas aritméticas com Trombudo; não na Desvalida! asseverou o Dr. Cicrano.
Maçaranduba, que escrevia bilhetes e extorquia fazendeiros e coronéis, estava preso em Santana. Sombrio e Maravilha embriagavam-se.
Palhoça escapou de ser levado pela volante ao ser denunciado por Mané Cachimbo como o coiteiro dos cabras de Conveniência. Palhoça foi quem furou Mané Cachimbo, e vivia na Desvalida.
Quilombo trouxe à fazenda do Dr. Cicrano o vaqueiro Palhoça. E a mãe velha conversava no alpendre com Piçarra.
O olhar ficava preso à vastidão cujos olhos da velha mãe que se esforçava sem conseguir alcançá-la na luz da manhã dum estio prolongado. Tudo era plano – inculto e plano – onde as cabras abrigavam-se sob a sombra raquítica de arbustos raquíticos.
Estado patrimonialista onde as pessoas desesperadas só faziam coisas desesperadas. Acompanhava a velha mãe o seu cão rajado.
Este mesmo sol que alumiava a Desvalida, alumiava Santana. Mesmo se a cidade estivesse do outro lado na bola do mundo, um dia o Sol alcançava.
No dia em que o jornalista Lítotes foi convidado pelo Dr. Cicrano, ouviu:
Não é dos melhores! um amigo comum do jornalista e do doutor.
Lítotes? o Dr. Cicrano quis confirmar a informação do amigo comum.
Conheço-o, doutor! ele disse e assegurou ser verdade. Lítotes não é flor que se cheire, doutor. Não é dos melhores, como lhe disse. É cheio das ironias, é cheio dos eufemismos e é cheio das negações, das ideias pelo seu contrário.
O Dr. Cicrano matutou as ironias, os eufemismos, as negações, as ideias pelo seu contrário, os argumentos do amigo comum, e virou, e mexeu, e se foi à rua, na rua do Jornal do Commercio e, finalmente, veio cá onde se encontrava o amigo comum. Levou Lítotes a Santana.
A costureira Elipse, que se casou sete vezes e igualmente nas sete vezes ficou viúva, dizia ter experiências. Enfrentava florestas bravas. Desmatava. Fazia pastagem. A exceção a regra era que a costureira Elipse morria de medo do fogo dos cangaceiros. Santana viu a costureira Elipse seguir em sua marcha Salve a Nossa Cidade dos Cangaceiros.
Lampião quis entrar em Santana e teve medo. Ele tinha contas a acertar com certa gente. Se não entrou, não foi pela campanha da costureira Elipse, foi pelo temor respeitoso ao Dr. Cicrano e ao primo do Dr. Cicrano, o Dr. Sicrano.
A campanha da costureira Elipse seguiu a plenos pulmões:
Naquele fatídico dia em que o primeiro ilusionista chegou à cidade, disse a costureira Elipse entre as costuras, e fez das suas em plena feira, Santana não o expulsou. Ele deveria ter sido expulso daqui a pauladas, e não foi.
O finado Machado, com quem fui casada, o Honorável, alertou Santana dos ilusionistas. E a cidade não deu ouvidos ao honorável Machado.
Aquele mágico trambiqueiro, como se estivesse diante de crianças tolas, fez das suas, substituiu a verdade pela mentira. Hoje, gente, a verdade estava morta. Em lugar da verdade reinava a mentira.
Epigrama, amiga da costureira Elipse, era quem pichava paredes, pintava faixas: Salve a Nossa Cidade dos Cangaceiros!
Na saída do templo de Santana, o padre recebeu Sinonímia, Hiperonímia e Hiponímia, que não se separavam nunca. A primeira era repleta de sinônimos, como se os houvesse criado; a do meio era genérica em tudo e a última delas era a mais específica.
Homofonia, que vivia na janela feito um jarro sem flores, dizia ser igual a tudo o que era comum, quando era diferente. Paronímia, que lia em cinco idiomas diferentes, vivia com a cara nas publicações que entravam no Brasil pelo porto do Recife.
Polissemia entrou na Pharmacia do Dr. Cicrano, e conversava com Anistia. Esta com a barriga pela boca.
Toponímia, filha de S. Topônimo, carteiro, sonhava em sair de Santana, trabalhar em agência bancária, ter liberdade, expressar-se, ir e vir sem ser molestada, corrigida ou observada. Toponímia, em sua juventude, não fazia castelos de cartas, recusava-se a ser dona de casa e ter compromisso com limpeza, comida, cama e mesa.
A filha do carteiro conhecido por todos em Santana, S. Topônimo, que não reclamava das distâncias dos lugares – fosse qual fosse o acidente geográfico – vencia-os na força das pernas, na resistência dos braços sob os quais pesavam as bolsas de epistolografias com disjunções de valores entre a terra e o céu e as angústias vividas naquele mundo epistolar.
Na cozinha de casa, Toponímia cantava: Cuidado, pescador, cuidado pra mãe-d’água não se zangar! Quem na madrugada pesca, corre risco, vai deparar-se com fogo-corredor, com a mula sem cabeça ou a mãe-d’água. Nas águas, pescador, peixe fisgado, luta, luta bravamente pela vida, e luta o pescador pelo alimento...
Ao lado do riacho tributário do Panema, no casarão do padre, Diamésica, na cozinha do padre Velho, cozinhava. O padre escrevia, e Diamésica ouvia o padre falar enquanto escrevia. O padre fazia variações entre a fala e a escrita, e olhava Diamésica na cozinha, em dúvida sobre requerimento e carta pessoal. Ouvia Diamésica cantar e escrevia.
Diatópico, casado com Diamésica, divertia o padre Velho com variações. E ora dizia macaxeira, ora mandioca. O padre enxergava Diatópico pela abertura da janela. O padre escrevia, Diatópico puxava terra com a enxada.
Diastrática, que ajudava na casa do padre Velho, usava incelença por excelência. O padre avaliava Diastrática, e ouvia as expressões de cada estrato social e nas diferentes profissões.
Diafásica, no casarão do padre Velho, era uma beata que andava com o terço enrolado na mão. Diafásica às vezes comunicava-se de maneira formal, quando se dirigia ao padre Velho, e era informal quando falava com Patacão.
Na Desvalida, o Dr. Cicrano tinha a cabeça em Santana. A cabeça do Dr. Cicrano estava no solar de sua infância:
Negligenciar, mamãe?
Castigo físico! a mãe o beliscou com severidade. Entendeu, Cicraninho? É isto, meu filho. Castigo cruel, degradante, meu filho... Como meio de correção, meu filho... Como meio de castigos físicos.
Ai! a lágrima molhou o rosto. Castigos físicos, mamãe?
Disciplina, meu filho! ela disse. Os maus-tratos que descambam e tornam-se tratamento degradante.
Balir das cabras preenchia a imensidão. A cabeça do Dr. Cicrano voltava à Desvalida. A fazenda distante de Santana onde era confeccionado O Liberdade de Expressão.
Lutou o padre Velho a semana inteira até que concluiu os seus textos de injunção. Afeito a marcadores linguísticos com explicações acerca do povo, do sertão, do cotidiano. Esta edição do semanário O Liberdade de Expressão trazia na segunda capa:
Pedras: [pl. de pedra] do greco-latino “petra”; na estrutura, o radical grego e latino da palavra pedra, que é “pedr”, e “a” surge como partícula na unidade linguística que dá significado à palavra (pedra); sendo “a” morfema formador da palavra pedra, que liga radical “pedr” à desinência “a” e forma o tema com o radical e a vogal temática.
Pedras [pl. subst. fem.] sentido de minerais sólidos e rochosos presentes na natureza; do radical “pedr” – com o substantivo primitivo, simples, comum, concreto (pedra) surgiram os derivados – pedreira, pedreiro, pedregulho, pedraria, pedrinha, pedrisco e, finalmente, Pedro que, sendo da Família Beatus, com origem no alto sertão de pedras, terra seca e espinhos de roseta, era de Beatus chamado.
Terra seca: o que era periférico. Espinhos de roseta: soliva anthemifolia.
Fazendas: [do lat. facienda; pl. do subst. fem. fazenda] é o que caracteriza propriedade agropecuária; o terreno rústico fora da cidade; tesouro público; tecido ou que estava feito; mercadorias.
Feiras: [do lat. feria; pl. do subst. fem. feira] ou locais destinados ao povo nos quais se comercializam tudo. Subst. fem. que complementa dias na semana. Zunzunzuns; balbúrdias; barulhos; falatórios; confusões; brigas; rixas.
Coronéis: [do lat. columnella; pequena coluna; subst. masc. pl. de coronel; abreviado Cel.]; oligarquias rurais patrimonialistas.
Coiteiros: [subst. masc. adj. pl.] ou couteiros abrigados nos valhacoutos que fazia das moradias refúgio nos quais ocultavam foragidos; caracterizavam mudanças circunstanciais do viver no mato, do viver na linha divisória entre o sítio e a rua como razão moral e vital; a geofísica do sertão circundava-os por ser o próprio corpo deles.
Beatos: [subst. fem. adj. pl.] com sentido básico de felizardo e de origem no latim (beatus); com sentido de quem buscava, durante a vida, gozos das bem-aventuranças terrestres e mimetiza imagináveis e eternos gozos no céu.
O Liberdade de Expressão estava na praça. A cidade lia O Liberdade de Expressão.
Estavam na praça em cujo obelisco ostentava o busto engravatado de D. Pedro I, Apóstolo, Apóstrofe e Apóstrofo, quando chegou a Xepa. Eles, atentos, observavam quem eram os passageiros da vez.
Este sujeito, apelidado de Apóstolo pelo padre, tratava-se dum mensageiro que disse que veio a Santana na época da efervescência do cangaceirismo com uma missão secreta. E a figura apelidada de Apóstrofe pelo Dr. Cicrano, abusava do verbo à vontade; não podia ouvir conversa que interrompia as falas da pessoa com uma invocação ou interpelação. E Apóstrofo, que era sem predicado, era o inventor da supressão de letras nas palavras.
Prequência, irmã do padre Velho, chegou à cidade. Desceu da Xepa. Viu as casas, franziu a testa. Santana – leu nas caras – uma novela. As caras eram os trava-línguas Apóstolo, Apóstrofe e Apóstrofo.

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