MAITÊ

Crônicas

Por Jeno OLiveira

Recebemos a informação que ela nos aguardava em Ipioca, o último bairro de Maceió pela região norte. Era um domingo de dezembro radiante, tão brilhante quanto o presente que estávamos prestes a receber como doação. Subimos de carro pela ladeira até o alto do morro e, ao atravessarmos a pracinha central, a avistamos, altiva, boca aberta salivando, língua pendurada e amarrada em uma coleira ordinária e puxada por uma senhora de meia-idade que parecia ter saído de casa sem tomar o banho matinal, dada a aparência esquisita do seu cabelo e os olhos ainda intumescidos. O pelo macio e preto petróleo da Nina fulgurava sob o sol impetuoso. Foi amor à primeira vista. Ela ergueu as duas patas dianteiras e nos saldou como se nos conhecesse há uma porção significativa de primaveras. "Ela tem sangue de Golden Retriever?" perguntei. "Não, o sangue dela é vermelho mesmo," respondeu à mulher, que antes de nos entregá-la em definitivo, nos avisou que ela já tinha um nome de batismo: Nina.

A colocamos no banco traseiro do carro e voltamos surpresos e felizes para casa. Uma Golden Retriever preta retinta? Uma raridade em um mundo de coisas e gente tão iguais. De branco, só tinha os dentes ainda jovens e saudáveis. Era uma donzela adolescente e simpática cadela de 2 anos que, a partir daquela manhã de dezembro, seria tutelada pela minha mãe, a dona do Tobias, um vira lata puro de origem que não fez conta da Nina. Quando chegamos em casa, a colocamos debaixo do chuveiro externo e ela tomou um banho demorado e sofrido. O Tobias – no canto mais limpo - já tinha fugido para provavelmente se proteger da cena protagonizada pela nova hóspede que acabava de chegar. Antes que alguém trouxesse a toalha, ela ligou o modo de secagem rápida, molhando suavemente quem estivesse ao redor. Como já era perto de meio dia e fazia muito calor, ninguém se queixou.

Sua estrutura óssea não evoluiu como as Goldeens de papel bem tratadas que vemos em shoppings, mas seu pelo, sua forma, seu focinho, sua orelha, seu rabo, sua alma e sua personalidade eram de Golden. Uma Golden ouriçada, como dizia Dona Laura - minha avó. Quando cresceu mais três centímetros, entrou no estro e acolheu a monta. O volúvel Tobias e única opção, não perdoou sua distração. Rapidinho notou-se nela uma preguiça acentuada, a perda de apetite, o aumento das mamas, do peso e avistou-se o volume da barriga. 65 dias depois a civilizada Maitê vinha ao mundo para torná-lo melhor. Uma bola caramelada gordíssima que se arrastava pela ardósia fria do terraço, pois não tinha forças para suportar o próprio peso. Seu olhar molhado dizia-nos mais coisas que uma biblioteca inteira. Desde sempre.

Nasceram 7 cachorrinhos e 6 deles foram distribuídos por terras alagoanas, em cidades distintas. Uma prole generosa do prostituto Tobias e da ouriçada Nina. Não me lembro de nenhum herdeiro que tenha puxado as características do pai. Nem mesmo ela, a ponta de rama que instintivamente não a deixamos partir e passou a primeira semana de vida dormindo sobre minhas pernas.

Quis o acaso que eu estivesse ao lado de ambas – paciente e tutora - no dia do diagnóstico. O ultrassom mostrou um câncer terminal. Metastes já haviam sido espalhadas pelo pulmão e outros órgãos. Cansada, lenta e indisposta, não tinha forças nem para balançar o rabo quando despontávamos no portão. Em uma semana incompleta após o veredito, sua respiração alterou e a levamos para o hospital veterinário. A injeção a estabilizou e seu sofrimento foi atenuado. Até voltou a respirar com normalidade. Prestes a tomar uma bolsa de sangue, no crepúsculo da noite nos veio a notícia por telefone: Maitê descansou. Foram curtos 8 anos de um amor desinteressado, paciente e profundo, como na carta de Paulo aos Coríntios. Não sei por qual razão lhe deram um nome de gente.

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