E, pé ante pé, esquivava-se de ser notada a gata de D. Xântipe à caça de alimento. Viver era dormir, acordar, levantar-se, comer, voltar a dormir, no pensar dos animais? Avançava, parava – com o cuidado de mercador sem perder a sua oportunidade – olhava fixamente o alimento, atenta as orelhas.
Naquele dia, aproximava-se de Santana um grupo de ciganos. A cidade vivia sob o medo de ataques dos cangaceiros, que existiam desde a chegada dos colonizadores nas caravelas.
Sentada na frente de casa, no chão, Linguagem ganhava a vida na feitura de tarrafas. Consertava as velhas, e engendrava as novas. Linguagem, casada com um soldado sumido, que caçava nas selvas nordestinas gente que vivia em bandos cometendo crimes, adotou o legado de fazer tarrafas com esta herança de seu pai.
Arapuás trabalhavam de graça, e fizeram morada nas telhas de D. Xântipe e do marceneiro de muletas. A mãe de Asioteia, Temistocleia, filha de D. Xântipe e do marceneiro, fugiu com um homem casado havia dois anos.
Os ciganos não eram bem-vindos! os comentários atroados de D. Xântipe estremeciam o marido de muletas.
Peste! descompôs o marido diante das conversas trazidas da freira por D. Xântipe. Me ajudasse, peste, com esta tora de pau-d’arco que caiu em cima do meu pé.
Xântipe, disse o marido, parasse com conversas de feira. Deixasse estes assuntos de feira lá na feira. Não me falasse sobre ciganos e cangaceiros. Não tolerava este tema da guerra.
Quem começou com isto de guerra? quis saber D. Xântipe do marido, que gemia com o pé machucado.
Guerra só podia ser invenção de Satanás! cuspiu o marceneiro. Nunca vi guerra trazer benefícios a Santana. Toda a guerra era o roubo justificado, isto foi o que ouvi tantas vezes do mano Camundongo.
Taí! atalhou D. Xântipe. E aquele Diabo, o cunhado Camundongo, não era guerreiro? Ele saía duma guerra, entrava noutra.
Deixasse o mano longe da prosa! zangou-se. Guerra não tinha fim. Nunca fui a favor! abancou-se com sangue que escorria, no pé. Fosse, trouxesse pano limpo; amarrasse o meu pé.
Os almocreves, que eram comuns naquelas terras de passagem, davam notícias de Santana. As notícias atraíam famílias e criações de gado.
Povos que existiam na terra antes da cruz e da lei, admiravam o surgir doutra era no mormaço sertanejo. E este lugar assentou-se entre promessas da Igreja e ameaças do Estado.
Era verdade?
Quê!
As paredes, na casa de D. Xântipe e do marceneiro, forradas de imagens sacras em quadros com fitilhos azuis e encarnados que os cingiam.
Os ciganos.
Era.
Diante da oficina do marceneiro, uma gata triturava entre os dentes um passarinho que acabara de caçá-lo. Barulho de ossos quebrados na pressão que a gata fazia ao mastigar. E se lambia, e se olhava, e prendia o alimento entre as patas, que se debatia e morria.
Esse povo, Xântipe, sabia, rogava praga! disse o marceneiro, que recebeu da mulher um curativo no pé inchado.
Foi o que eu ouvi na banca, na feira.
Essa gente jogava maldição, D. Xântipe. Dessa gente nem soldado, nem praça, nem volante, nem sargento. Ouvi que o último fugiu pra Amazonas, talvez se perdeu na Amazônia.
O gado chegava a Santana e saía. Ficavam os aboios dos vaqueiros, e a trilha pontilhada de esterco.
Na Rua da Cadeia, Mil-Ciências, que tangia oito ancoretas sacolejantes no lombo de dois burros de aluguéis. Estalava o relho sem piedade, e levantava poeira entre os pedregulhos naquelas ruas e becos esburacados que ecoavam os aboios dos recém-vaqueiros e fediam ao esterco da última boiada.
Os bêbados trocavam socos na rua. E os insultos voavam entre os braços e as pernadas. Desequilíbrios seguidos por quedas nas pedras, ante a casa de D. Xântipe e do marceneiro.
O vendedor d’água a domicílio ganhou o apelido de Mil-Ciências porque espalhava na cidade que a ciência tinha pressa. E tinha mil coisas à espera de seu empenho, de sua hora de trabalho. O dia era curto. Trabalhava de 16 a 17 horas por dia. O dia era curto e a noite era veloz, dizia Mil-Ciências.
Dia e noite, de tão antigos tornaram-se melancólicos.
Acordava diariamente Mil-Ciências no escuro, levantava-se de susto com o par de burros e comercializava a sua força de trabalho nas ladeiras de Santana com a venda d’água do Panema. O aguadeiro, desde que se sabia, corria atrás dos burros com um relho à mão, estalava-o nas pedras de ruas e becos pelos quais acessava o rio.
Crianças pulavam os muros, nas casas, furtavam o que podiam levar dos pomares. Os pássaros também se alimentavam nestes oásis.
Ouvia-se de longe o tamborim das ancoretas presas às tábuas curvas nas barricas com cinturões de ferro sobre a cangalha. Quando não eram estalos nos lombos dos burros, o aguadeiro esfregava o polegar ao indicador e pensava em ganhar mais, cada vez mais, como se fosse possível. Mil-Ciências amanhecia, anoitecia com oito ancoretas nas cangalhas.
O casamento era uma batalha na qual se lutava dia após dia. Morfologia, antes de casar-se com a costureira Elipse, teve dez filhos com Linguística. Estes o mundo os absorveu.
Os tipos brasileiros encontravam-se em Santana. Os devotos de Santana organizavam procissão. Acompanhavam o cortejo à santa avó de Jesus, os Fulni-Ô miscigenados aos que chegavam das nações nortistas e aos moçambicanos trazidos no passado à ferro, que chegavam vindos de além-mar.
Eram os irmãos de Morfologia, Fonética, Fonologia, Sintaxe, Semântica, Pragmática, Estilística, Lexicologia, Terminologia e Filologia. Este era professor, em Recife. Fonética casou-se com um sapateiro, e ambos moravam em Juazeiro, Ceará. Fonologia deu pra vida. Sintaxe virou comerciante, morava em Palmeira. Semântica pedia esmolas, nas feiras. E Pragmática trabalhava como cozinheira em Maceió. Estilística não vingou: morreu nos cueiros. Lexicologia embrenhou-se na caatinga arrastada pela paixão pelo cangaço. Terminologia, criança, sumiu da cidade na época em que passava na sede do município um grupo de ciganos que vinham de Pernambuco em direção à Bahia.
Asioteia, deixada com os avós – marceneiro e D. Xântipe – quando a mãe Temistocleia fugiu com um homem casado, caminhava em direção ao galinheiro onde, semana passada, matou a pau uma raposa. Levava uma cesta aonde ia, e trazia ovos.
Durante o dia, Asioteia ajudava a avó.
Corria D. Xântipe atrás de Asioteia com vara de marmelo. Demônia! a avó gritava. Vagabunda! ao pensar ter ouvido ela falar o nome de Assíduo.
Vivia Assíduo no cárcere havia dois anos, desde a semana na qual correu e ameaçou Temistocleia com faca de ponta. Foi atrás dela, na feira. Jurou matá-la.
Na prisão, Assíduo planejava viver qualquer dia com Temistocleia a quem passou a chamá-la de Tetê. Escrevia e desenhava nas paredes da cadeia que o doce matrimônio com Tetê amargava dentro de sua vontade.
Dividia Assíduo a cela com outros apenados, e sonhava casar-se com Tetê assim que deixasse a cadeia. Imaginava as cores dos convidados, que iam do verde claro ao escuro, iam do sol da aurora ao caramelo do crepúsculo, iam do roxo ao celeste.
Assíduo via o quadro na parede.
Cabiam os bebes ao papai Ninguém! na cela, Assíduo repetia, planejava, replanejava. Os comes cabiam à mamãe Nada. E depois Tetê e eu íamos aonde Tetê quisesse.
E o quadro imaginado na parede com as cores desenhadas por Assíduo. Indo do verde claro ao escuro, do sol da aurora ao caramelo do crepúsculo, e do roxo ao celeste. O casamento de Assíduo com Tetê, sob as bênçãos da Igreja. Assíduo via-se no cartório, Tetê e ele assinavam o livro do Estado. E bebiam, e festejavam a este dia.
Apressado, na mistura de latim e língua vernacular, padre Velho, sobrinho de Seu Caquético, corria, rasgava o coração de Santana. Balbuciava orações. E entre os passantes, dizia, vão em paz e todos os sonhos vos acompanhassem hodie et in aeternum. Arrastava as xobois, e levantava a poeira. Avançava entre as crianças e as abençoava, pelos preços fazia o sinal da cruz.
Ao saber da fuga de Tetê com o homem casado, Assíduo prometeu reagir. Em vão, Nada e Ninguém ajoelharam-se aos pés de Assíduo. Pediram-lhe que não fosse. Assíduo não deu ouvidos à mãe Nada e ao pai Ninguém.
Costureira Elipse, a casamenteira, que costumava comprar temperos na tolda de D. Xântipe, ficava horas de conversa. Ora sobre isto, ora sobre aquilo.
Bé Carroceiro prosperou, na Rua da Cadeia, e, por causa das atividades com sabão caseiro, passou a chamar-se Bé Saboeiro. Graças à sua atividade, ele perdeu o velho apelido de carroceiro e ganhou o novo de saboeiro.
Bé Saboeiro, filho de D. Xântipe e do marceneiro, inaugurou a sua banca de sabão caseiro, na feira. A costureira Elipse era freguesa de mãe e filho.
Falava Elipse que, quando os primitivos descobriram a técnica da costura, e costuravam couro com pedaços de ossos, faziam linhas de fiapos de couro. A tecnologia deles sequer imaginava a revolução tecnológica que estava presente na vida.
D. Xântipe não tinha tempo de ouvir a costureira Elipse. Mesmo assim, ela não parava:
Li num jornal alemão. Agora, não me lembrava mais se era um jornal alemão ou uma reportagem de jornal francês. O que valia era que li que haveria fusão, D. Xântipe, e a cabeça do povo ia revolucionar mundo afora.
D. Xântipe não alcançava as palavras da costureira. Elipse redizia:
Ontem chegamos à longevidade. E amanhã? D. Xântipe, chegaríamos à imortalidade! Imaginasse, D. Xântipe, onde a capacidade nos levaria.
Quê!
Com licença, D. Xântipe! desculpava-se a costureira. Tinha muito serviço em casa, muito tecido a ser cortado.
Anáfora vendia comida na rua, desde menina. Aprendeu com a tia doceira, que fazia quebra-queixo, morosilha e doce de melão-de-são-caetano. O matuto saboreava a consistência elástica e densa do quebra-queixo.
Polissíndeto medicava o povo, e comercializava remédios a domicílio de domingo a domingo. Polissíndeto foi sócio de Léxico, um dos ex-maridos finados da costureira Elipse.
Santana achava o estrangeiro Polissíndeto simpático, pois a sua principal característica era a repetição de conjunções. O ex-sócio do finado Léxico gerava, durante as suas conversas, belo efeito e intensificava o discurso.
Polissíndeto fazia promessas de tratar todas as doenças, e nisto concorria com D. Xântipe, feirante e curandeira da Rua da Cadeia.
Professora Hipérbole, naqueles trajetos estreitos de ruas e becos, descia as ladeiras santanenses em direção à feira. E encontrava-se a professora com gente do seu agrado, e soltava coisas assim:
Nossa vida deixou de ser sintática, e passou a ser semântica. Sintáticas eram as máquinas que obedeciam sem reclamar, e exerciam a sua função sem pestanejar; era só apertar uma coisinha assim, ó, e a coisa era vrum-vrum!
A professora Hipérbole não parva de falar:
Vida semântica era a nossa, porque criamos coisas, inventamos dias de feira, e damos aulas ao invés de vendê-las, fazemos festas, dizemos ter alma, e talvez tivéssemos mesmo, e, na igreja do padre Velho, realizamos batizados, casamentos e, por fim, morremos; e, nas três portas da eternidade das quais não poderíamos jamais retornar, estavam o Purgatório, o Inferno e o Paraíso, como líamos, nas aulas de português, os tercetos do velho Dante.
Atrás do templo de Santana, ladeira acima, casas residenciais começaram a surgir naquele ano. Dos fiéis, o padre Velho recebeu belo e murado casarão, às margens dum riacho tributário do Panema durante as estações chuvosas.
Apóstrofe e Gradação falavam de política, na porta do templo de Santana. Nuvens transitórias formavam xales e chapéus nas serras que circundavam a cidade.
Em corredor estreito e silencioso, ladeado por estátuas de madeira, outras de mármore, algumas de pedra-sabão, chegavam os visitantes ao casarão às margens do riacho afluente do Panema. Os visitantes eram recebidos por diferentes santas e santos. Na sala de estar, um piano de cauda, que veio de algum país europeu, esperava músicos santanenses e noitadas festivas.
O padre velho ganhou um papagaio de um almocreve que se hospedava no murado casarão às margens do riacho. O pássaro passava o dia com o dístico:
A-bai-xo o Deo e o Dó-ro, e res-pei-tas-se a hi-e-rar-quia;
E di-ses-se dia a dia de noite e de dia vi-va à Mo-nar-quia.
O papagaio, que ficou no casarão às margens do riacho, recebeu do padre Velho o nome de Platão. Os saguis, habitantes no pomar do padre, apedrejavam Platão cada vez que ele repetia o dístico.
O cobrador de impostos, Bentivi, foi visto pela última vez com Hipácia, a filha caçula de D. Xântipe e do marceneiro, a caminho de Paulo Afonso. Durante a viagem, ele fazia promessas. Hipácia queria Penedo e não Paulo Afonso. Bentivi, uma asa sobre o ombro da filha de D. Xântipe, ouvia dela os nomes, um a um, dos dez filhos que Hipácia queria tê-los.
Almocreve Patacão, que ficou infantil depois de ter sido vítima da aranha-armadeira, desistiu de viver sob o telhado e ter o alimento na mesa de D. Xântipe e do marceneiro. Foi viver nas ruas de Santana.
Crianças e desocupados, nas ruas de Santana, de longe viam Patacão e atacavam-lhe aos gritos:
Inventor de Deus! a saraivada era ininterrupta. Inventor de Deus!
Patacão corria rápido, perseguia a todos e agredia-os à mordida, tabefes e pontapés. Quando Patacão conseguia alcançar uma criança, mesmo que não houvesse lhe agredido, ele a segurava no pescoço e a arrastava rua afora.
Padre Velho acolheu Patacão, que o ajudava em rituais eucarísticos e nos serviços domésticos. Inventor de Deus higienizava os móveis e as estátuas, no casarão às margens do riacho.
No comércio de Santana, Prosopopeia atrás do balcão da farmácia.
Santana veio a ser Santana entre as residências de aparências coloniais, as casas neoclássicas de negociantes, as vias estreitas e longas, a imponência do templo a Santana, a feiura e a sujeira da cadeia, e a largura do cemitério. Nas bocas de aluguel corriam, às portas de mercados, comentários de que S. Fulano não era perfeito. Vossa Mercê não era, S. Fulano. E S. Beltrano? Vostè também não era, S. Beltrano. Perfeito mesmo era S. Caquético.
E, assim, S. Caquético recebeu a patente de guardar Santana daqueles considerados malfeitores. A primeira missão do tio do padre Velho foi afastar da cidade os ciganos arranchados na beira do Panema. S. Caquético corou, tomou coragem e repetiu as palavras do Príncipe-Regente do Brasil. Santana aplaudiu a bravura de S. Caquético.
O tempo passava em Santana como se corresse. D. Xântipe, com a sua cultura de subsistência, o marceneiro reformava móveis que chegavam à oficina anexa à moradia, Bé Saboeiro amontoava sebo bovino em barricas, na porta de casa.
O vento soprava flores da gameleira. Sob a vigília delas, que formavam a alameda no rio, o dia passava.
O que queria o vento, o que desejavam as flores? A visão aérea de urubus via a cidade como um amontoado de habitações, caminhos tortuosos de pedras e o risco do rio na terra espinhosa.
Enterrou o chapéu na cabeça e saiu S. Caquético com promessas de cortar os invasores a facão. Planejava conversa pouca, talhos muitos da cabeça aos pés. Via o sangue retalhado nos rostos, os cortes nos braços, nas pernas, e via a fuga dos invasores.
S. Caquético acendeu cachimbo de barro em seu vestuário de autoridade do Estado. Queria expulsar essa gente daqui, disse e dirigiu-se à outra margem do Panema.
Não ia deixar que procurasse arranchar-se em Santana.
Nutria medo.
Crimes contra o patrimônio santanense jamais. Tragou outra vez, e longe, S. Caquético arremessou a cusparada. E percorreu a vereda que o levava ao rio.
Levava S. Caquético na cintura a sua arma carregada de balas. O facão afiado abria veredas. O cão que o acompanhava, ora adiante, ora atrás dele. E a faca de ponta sob a sua camisa branca, aberta, mostrava o peito. S. Caquético trazia nas costas o peso de ser surpreendido pela traição.
Os ventos formavam-se entre Camonga e Cruzeiro, e cobriam Santana nas primeiras horas. Bé Saboeiro, com a navalha na cara, rapava barba e bigode na porta da rua, na Rua da Cadeia.
A caminho do Panema, Mil-Ciências descia a ladeira que dava acesso ao comércio de Santana. Tangia ancoretas no par de burros.
A cidade presa a um cinturão de serras. O rio espremido entre serrotes.
O Poço dentro da serra. Mangueiras e jaqueiras farfalhavam as folhas.
Antonomásia, devota do Apóstolo dos Gentios, entoava canto de trabalho, enquanto estendia roupas no varal e coloria Santana por dentro. Onomatopeia, o sapateiro, vizinho de Antonomásia, remendava sapatos com a boca cheia de pregos.
A névoa ameaçava cegar à cidade. Densa e baixa, a manhã de leite tomou ruas e invadiu as janelas das casas. Santana amanheceu sob intensa neblina. Era como se a qualquer tempo fosse a serração descortinar-se e dela surgir um terrível animal pré-histórico.
Na porta da rua, com a visibilidade reduzida, D. Xântipe mal enxergou as suas próprias mãos; não viu o tempero verde a ser colhido e levado à feira naquela quarta-feira de manhã. Aquele nevoeiro espalhou-se pela Rua da Cadeia, chegou à Rua da Feira, tomou a direção de outras ruas e becos.
O professor de matemática não gostava de ficar por baixo da professora de português, e todos em Santana sabiam. Hipérbole dava aulas de português e Pleonasmo de matemática. E, naquela manhã de quarta-feira, eles de mãos dadas desciam as ladeiras em direção à Rua da Feira, à banca de D. Xântipe.
Zeugma cortava tábuas, limpava-as, fazia móveis, enverniza-os. Artesão vivia próximo ao templo de Santana, era rival do marido de D. Xântipe. Ele obteve esta rivalidade porque, com prejuízo, diminuía o preço de seu trabalho ao saber que o marceneiro, na Rua da Cadeia, trabalhava no mesmo serviço e o valor que cobrava era sempre menor.
Na frente da oficina de Zeugma, Aliteração dedilhava a sua viola de cocho, e assobiava a harmonia que lhe preenchia o espírito. As músicas de Aliteração sonhavam em alcançarem as estações de rádio.
Numa rua abaixo do tempo de Santana, Assonância fazia a lição de casa, preparava-se para um exame imaginário. S. Anacoluto, viúvo e pai de Assonância, que voltava do templo a Santana, onde foi confessar-se com o padre Velho, porque dizia ser atormentado dia a dia, noite e noite com os pensamentos mais impuros que se pudesse imaginar, trazia um terço à mão, e perguntava-se em que ano estava naquele ano diferente de tudo o que se viu na vida.
Aqueles núcleos dramáticos eram muitos cujas figuras, umas associadas às palavras, eram de linguagem, outras associadas ao pensamento combinavam às ideias, e havia as de construção que modificaram a estrutura, na cidade. Era outra quarta-feira no sertão, e uma feira assim era impossível o núcleo dramático único de quem cantava às vésperas da batalha entre S. Caquético e o grupo de ciganos acampado na margem direita do rio.
Um conhecido passou com um caçuá na cabeça, e perguntava de tolda a tolda: O que mandava, minha patroa? Mulheres de lenço repetiam: Vixe, Maria! E os homens: Oxi! E o conhecido de caçuá na cabeça ganhava o maranhão de bancas, na feira livre circunscrita ao templo de Santana.
S. Anacoluto, viúvo e pai de Assonância, esta que não fazia outra coisa a não ser estudar, morava sozinha com o pai em casa, depois que os irmãos, Eu, como era conhecido o ferreiro Eleutério, adorador da liberdade que bateu asas e se foi de Santana em direção ao Recife. E a Mim, a Minerva, que demonstrou paixão e passou a morar num convento longe dali, sonhava trazer à cidade o convento de sua congregação religiosa. O último filho de S. Anacoluto, Deo, fugiu de casa, segundo noticiou um jornal, em Recife, e se uniu aos cangaceiros, após o episódio de um criador de cabras, seu primo, ter sido costurado à faca por dois, de uma volante, dias antes do assassinato do pai de Lampião.
O cão sumiu. Vinham do leito do Panema o nevoeiro espesso e o frio, e chegavam à outra margem que viria a ser conhecida como a Rua da Batalha. Porque nela se travou, o que S. Caquético imaginava que se travaria, a sangrenta luta entre a força que ele representava e os invasores na margem do rio.
No medo que penetrava em todos os poros de S. Caquético, os ciganos ameaçavam queimar Santana e transformá-la em banho de sangue. E neblinou à cabeça de S. Caquético que reunia coragem dentro da cerração antes de aproximar-se do acampamento, na margem direita do Panema.
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