Para além da feira livre, como território de uso popular do experimento próprio de sociabilidade, está a magia que se constrói, viva, nos detalhes do cotidiano, em uma mescla de cenas que se movimentam. São imagens quase estáticas, que se conjugam as manifestações tradicionais e peculiares da cultura das gentes. Em Santana do Ipanema, cidade sertaneja das Alagoas, essa experiência quando vista, generalizada, incorpora-se ao registro comum do ir e vir e das relações estabelecidas, à compra e venda de produtos, apenas. Porém, nos espaços subliminares, onde os sentires estão à guisa da observação sutil, elas traduzem seu repertório, à maneira singela do viver da feira, onde estão expostas expressivas conotações poéticas, daquele universo das eventualidades, dos sons, das palavras e dos gestuais.
Os cenários modificam-se constantemente, permanecendo no cerne dessa movimentação, o registro de vivências, que se apresentam genuínas e espontâneas. São barracas, bancas, que dispostas lado a lado, criam a comprida passarela, onde desfilam seus frequentadores. Os feirantes com seus pregões, os compradores, o burburinho, os murmúrios dos carreiros, as frases soltas e anônimas, o sobe e desce ladeiras, e até o andar dessa gente, que parece reinterpretar-se em seu próprio e costumeiro papel. Visitam as mesmas barracas, falam aos mesmos feirantes dos quais são fregueses, compram praticamente as mesmas coisas. E encontram com frequência semanal, os amigos, seus compadres, comadres e afilhados.
Andar pela feira livre é como embarcar em uma aventura tardia, visto o surgimento de outros modos de expressões contemporâneas, que também afirmam a cultura e o sobreviver material. Visitá-la, porém, é festejar olhares sobre cenas que, múltiplas, se inauguram. Vê-se, por exemplo, claramente, que aquela mulher, carregando uma sacola de palha, neutraliza-se, abstraída, como se ali não estivesse. O que lhe passa à cabeça? Livre à atenção da dona, a sacola diverte-se, derrubando o que alcança sobre as bancas, e ela nem vê. O rapaz maltrapilho apropria-se da costumeira cara de triste, que como uma máscara, coloca-a sempre que pede coisas. Cheira a pinga tão cedo da manhã e quer dinheiro para comprar pastel. Quem acredita nele?
A feira tem alma e vida próprias, e à cidade cheia de ladeiras, ela é a nobre senhora que convoca romaria em trajetos sobre calçamentos íngremes. Se o destino a que se encaminham as gentes, leva-as a decida, chega-se até o Mercado Público. E ainda mais para adiante, aos seus becos estreitos. Se a direção é outra, amplia-se a feira pela Praça da Igreja Matriz Senhora Santana. É neste local onde o Museu Darras Noya impõe-se, construção antiga, tendo sido primeiramente, a residência do Dr. Arsênio Moreira, médico contratado pelo Governo, para dar assistência aos soldados, em campanhas às buscas de Lampião. Seja de que modo for e para qualquer das direções, todo o seu percurso, acompanham-na o rumor das vozes e de passos misturados.
A cada momento que se destina o cidadão a percorrê-la, é sempre única e performática, em sua territorialidade popular. Antiga, renovando-se, ei-la, ritualizada nas falas apregoadas pelos vendedores ambulantes, no erguer matinal e sempre ordenado das aparentes mesmices que a evocam e são por ela evocadas. É um fervilhar de encontros, onde é comum as pessoas esbarrarem umas nas outras. É também espaço de levezas quase imperceptíveis, que ali existentes, permite-se manifestar sob os diversos aromas, sabores e sons. Às mãos da gente, as mais variadas texturas e aos olhos, a profusão de cotidianidades onde tudo, ora mistura-se, confunde-se, ora salienta-se, exaltando a singularidade de cada coisa, formando um conjunto, como um painel de naturezas mortas que vicejam.
Homens, mulheres e crianças, que se projetam juntas e ao mesmo tempo em majestoso coro, somando-se à audição da vida que é tecida, contemplando e somando-se às feiras, logradouros e tempos. A alma da feira é fortalecida em suas falas pelo sotaque próprio, oriundo dali, e expressões comuns derivadas desta mesma origem, que une e define um lugar no inconsciente coletivo. Destinado aos símbolos que os constelam, renovam, sobremaneira, a vivência das tradições. O santanense pode sempre estabelecer-se, sendo representado como tal, também, no ambiente da feira livre. Pode-se, por licença poética, afirmar, que o clamor que dela emana, é a sua própria voz, recitando através da sonora e sempre cheia de força, sua verve, a que expressa à genuína cultura popular.
Carrinhos de mungunzá, de CD´s e DVD´s, de pastel. Assim como os outros, o seu condutor entra à roda viva, que exige e imprime ritmo à condução dos passos de cada um, para um caminhar de todos - àquela sensação despercebida conscientemente à maioria -, que naturalmente a integra, em todas as repercussões, e potencializa, revitalizando o lugar, esse, próprio, que se constrói quando se erguem suas rudimentares estruturas, e evapora-se magicamente, quando do ritual de desconstrução desse cenário. É interessante perceber a existência dos mecanismos, que agregam mais elementos que personificam e pontuam singularidades à feira, como local de convergência humana. A exemplo do seu ritmo, que vem a ser uma característica marcante, definidora do espaço, como via frenética, que estimula o conjunto que nela transita, ao mesmo espírito que traduz o sentido de unidade.
Aqui, grande parte do que é exposto à venda nas bancas de mangaios, traz consigo, subjetivamente, signos icônicos, indiciais e simbólicos, que servem ao estímulo à preservação da identidade local, compartilhada por todos. Ativadas e agrupadas pelos objetos, comunicam pertencimento e podem servir de ponte para os vínculos desta cultura às novas gerações. A peteca - brinquedo artesanal - dado agora à modernização do material do qual é feito, mas, conservando a mesma feitura e as mesmas características, lá estão. Encontra-se o pião, o cachimbo, o apito. Os sons dele extraídos, repercutem uma espécie de vibrar interior, que pode incentivar o desejo de constância à autoestima, daquilo que reforça no santanense, tudo o que de sertanejo ele é.
O matuto na feira. Dentre outros tantos, dois comportamentos básicos e distinguíveis. A saber, aquele que vem à rua a passeio e faz da feira o maior acontecimento semanal. Come, bebe e passeia o festejar da descontinuidade, esgarçando o seu cotidiano na roça. São mulheres, moças e crianças, que desfilam exalando fortes perfumes. Os rapazes, a maioria, tendo aposentado o cavalo como meio de transporte, aparecem com suas motocicletas e, talvez, se possa dizer - do uso do coxim sobre o assento -, que eles figuram como resquícios culturais, transpostos, adaptáveis, do lombo do animal à máquina. Remetendo àquilo, ainda e possivelmente, para a observação de que possam estar ali o que deve, talvez, ser considerado como indicativo da presença expressiva de restos simbólicos.
O outro tipo estabelece-se no cenário, com voracidade à aventura de negociar seus produtos. Destacam-se as boas vassouras de palha, as panelas de barro, as galinhas e os ovos de capoeira, ervas medicinais, bolos, tapiocas, os colares de ouricuris, esses, batizados nos suores dos pescoços das crianças antes de serem comidos. Para atrair o freguês os chamamentos acontecem. Os chavões criados se fixam na memória popular, atravessando os tempos, perpetuando seus personagens, da vez que a verbalização exprime fácil e bem humorada linguagem: “É pra encher a bolsa com pouco dinheiro”. “Sai daí, dona Maria, quer enganar a quem?”. Dona Menina, quando a senhora ia pegar os cajus, eu já vinha com as castanhas! ”Olha aí, olha aí o pastel quentinho. Moça bonita não paga, mas também não leva”!
Cenário sim, um múltiplo e diverso lugar, onde todos contracenam. E a despeito dos seus limites e da sua territorialidade, o experimento de percorrê-la e misturar-se, e ser multidão, vai muito longe. Muito além de onde ela possa fisicamente, começar e terminar. É para muito longe do simples e autômato comprar e pagar. Ele estende-se, verdadeiramente, pela cidade interior que habita cada um, em sua própria feira pessoal e faz nova interpretação, para retornar à ela. Sempre a mesma e sempre outra. Constela, por fim, razões que dinamizam a estética cultural, onde permeiam um sem-número de signos, atuantes e que permutam entre si, a experiência e o sentido humano, que mergulha suas raízes e finca-as, no seio do povo.
Expressos por meio de artefatos, esses, deslocados de um contexto comum onde tais costumes são cultivados, podem estar sendo trazidos de forma espontânea, apontando para uma possível ressignificação do simbólico, em benefício do vínculo cultural, reorganizando, naturalmente, as imagens que os captam e os congregam em torno da identidade sertaneja, em função do coletivo. O que permanece implícito, entre os silêncios da rua, quando ela, a feira, lá não está? É essa gente, personagem que dá vida à sua magia. Gente santanense, abençoada pela sua padroeira, Senhora Santana, testemunha das águas do Rio Ipanema, e que agrega de si mesma à cultura local, enriquecendo-a, página por página, à sua constante história a esta bela experiência compartilhada, sob o azul sertanejo do céu aberto.
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