23 DE MAIO

Crônicas

Por Jeno OLiveira

Há exatos 79 anos, em 23 de maio de 1945, nascia em Alagoas o homem mais inédito que conheci. O quinto, de 20 irmãos, que tardou em andar – ele próprio ria sobre isto: só com três anos comecei a engatinhar, dizia, pois sempre foi homem de contar desvantagens, não o contrário. Já na labuta, foi precoce – dessa parte ele tinha orgulho. Com 10 anos, já atendia clientes em um dos Barracões de seu Zé Neto – seu pai e avô que não conheci - na insólita e úmida São Luís do Quitunde, cravada na região da mata, espiando a traiçoeira Al 101 norte. Observava por trás do balcão de mogno os meninos de sua idade investirem as tardes no campo de futebol esverdeado, pescando, subindo em árvores, apanhando brincos-de-viúva no chão, matando bichos com estilingues, empinando pipa e todas essas traquinagens de crianças criadas no interior. Anos mais tarde, em um desses almoços de sexta-feira, ele me confessou com os olhos aguados: sou um homem que não tive infância.

Registrou-se no cartório na cidade vizinha com o nome Jobson de Lima Neto. Batizou-se na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, fez o primário na terra natal, o ensino de base no Brandão Lima e, depois, aventurou-se no curso técnico de contabilidade, para, com 22 anos, ser admitido como escriturário, em 1967. Foi no escritório da Usina de Açúcar Santo Antonio, que homenageia o santo casamenteiro, do qual desconfio eu, ele o subestimava, pois deu trabalho para casar-se com Maria, minha mãe, que menina, matuta, linda e turista das bandas do sertão, sucumbiu a um único recado. Diz ela – já curada dos atropelos - que ele era demasiadamente augurado entre as ouriçadas moças que viviam no final da década de sessenta pelas ruas da primeira cidade planejada de Alagoas, com planta assinada pelo engenheiro alemão Carlos Baltenstern, lá pelos idos de 1892.

Conservou sua caligrafia peculiar, da qual gostava de exibi-la, embora, como Deus, fosse discreto, mas se habituou a anotar os preâmbulos mais singelos do seu cotidiano, como o dia em que trocou a pilha do relógio ou o dia em que tomou sorvete com uns – dos agora - dez netos e uma bisneta. O Nestor, seu neto caçula, e a Helena, sua primeira bisneta, ele não teve a sorte de pô-los nos braços. Pô-los ou botá-los? Certamente preferiria botá-los; só para homenagear o botafogo de General Severiano, sua paixão pessimista. Ele gostava mesmo era de uma gramática. Qual o plural de pôr do sol? – Pores do sol. Não errava uma. Foi no 59° batalhão de infantaria motorizada que aprendeu na maioridade a banhar-se em menos de um minuto. Sempre saia do banheiro com espumas nas orelhas e nas axilas. Só foi desacelerar muitos anos depois.

Quando o escritório da usina deixou o 7º andar do antigo Produban na rua do comércio e foi para rua Barão do Jaraguá, ele já era pai de família aos 26 anos, mas Micheline – que virou anjo – não resistiu ao tétano e morreu no segundo dia de vida no hospital de Santo Antonio, com nome tão inconscientemente simbólico. Não demorou muito para a chegada do primogênito homem, que muito bem não poderia ter vindo, depois que ele, na companhia do Petrucio, amigo de mesma idade, capotou com o carro da empresa quase defronte ao escritório onde trabalhava. No intervalo do almoço, inventaram de tomar umas boas doses de whisky nacional. Ele próprio – encabulado - me contava essa estória.

Gostava dos livros de piadas, mas rejeitava 90% delas. O que o despertava para o riso, não fazia o mesmo efeito em 99% dos leitores e vice-versa. Era homem de tino aguçado e gosto curioso. Abdias do acordeom, que o diga. Especializou-se a pagar os boletos antes do vencimento, a gastar menos do que ganha, a ser rigorosamente pontual e até emprestava uns miúdos a juros - coisa pouca - só para distrair a aposentadoria e ainda fazer uma rendinha extra. Quando retirava do bolso sua carteira abarrotada de papéis “inúteis” e que mais parecia um sapo-cururu, eu já sabia do que se tratava: sátiras recortadas de jornais. Um autoproclamado realista com inclinações naturais para o humor. Uma daquelas almas cuja presença e o olhar remediavam todo entorno. Deixou fãs incondicionais, um retrato de Nossa Senhora de Fátima que guardo carinhosamente comigo, 5 filhos e muita saudade. Bota – e não põe - saudade nisso. Jesus salve nosso 23 de maio.

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