O vento da manhã agitava a craibeira. Era Santana durante a Semana Santa de pleno estio. Crucifique-o! a turba incentivada a acender o conflito. Crucifique-o!
O enredo pertencia ao galo que encantava a manhã a Esculápio, lembrando às vezes nas quais se curava, e às vezes em que também se adoecia. Talvez houvesse nas brumas escuras do sertão algo que acordasse o dia e amanhecesse, feito a linha que salvava o herói, no labirinto de Creta. A lavadeira Ariadne vinha àquela hora trazendo roupas lavadas no Panema. Dizia a lavadeira que se sacrificava por amor, como se sacrificou a lavadeira Medeia, que veio antes.
Se fosse enumerar cada pessoa sem sorte – outra vez cantou o galo, – tantas vezes em que de amor adoecia-se, disse a lavadeira Ariadne, todas as noites no mundo eram poucas a tantos sem sorte. Ou mesmo as noites todas de algum universo, porque nada, agora, o coração silenciava, estas vezes em que de amor adoecia-se.
Ladeira acima, a lavadeira Ariadne lembrava-se da avó, Julieta, que também se sacrificou por amar. Ariadne nunca se esqueceu da prima Esmeralda, que adoeceu o coração de Quasímodo. Ariadne falou sobre Dulcineia, que enlouqueceu o coração de Dom Quixote. Suada, Ariadne ouviu a turba nas ruas de Santana, aos gritos.
Era tradição sertaneja, principalmente no Dia da Paixão, interpretar no teatro de rua a peça “Conto da Paixão”, com atrizes do povo e atores das ruas e praças que transitavam de chapelinho em dias solares. Os corpúsculos, durante as interpretações, ganhavam ares de álulas, e suas aselhas voavam sobre as serras, serrotes e morros de pedras brancas.
Vinha o povo diante do carro de boi. Jovens traziam instrumentos de cordas, velhos tocavam tambores, mulheres palmas. Crianças brincavam, corriam, rindo, e pedindo e recebendo oferendas do numeroso público, na porta da rua, que acompanhava o espetáculo.
No cortejo, seguia o carro de boi: tilintava o argolão; imóvel, o eixo reclamava, e girava a vida em sua circularidade presa ao tempo; roíam e trituravam pedras no caminho as gastas braçadeiras metálicas; o sol despejava sobre o carro de boi desfigurando o chumaço, a orelha, o cabeçalho, a oca, a cheda, o cadião, aro, cocão, chaveta. Passavam juazeiro, xique-xique, macambira, e o carro de boi ganhava a rodagem deixando umbu, acácia, aroeira.
Da Maniçoba, o carro de boi. Ecoou o gemido que vinha e eternizava-se nos murais que, pintados na cidade, bairro a bairro, exibiam diferentes motivos que acentuavam fauna, flora, personagens. Em trechos miúdos como trincheiras, ruas de pedras soltas, ruas de barro batido margeavam o Panema. Na mesa do carro, balançavam-se os fueiros, giravam rodas de madeira presas ao eixo. Da Maniçoba, as vozes, no cortejo, entoavam mantras por todo o percurso.
No Panema, canoeiros imaginavam as grandes navegações do passado. Nas margens, os pescadores arriscavam o destino; as lavadeiras praticavam seu ganha-pão; as crianças jogavam bola. A descrição, que se encontrou com o cotejo da Maniçoba, voltava da feira de onde trazia coentro verde a ser usado no feijão-de-corda.
O grupo de teatro representando anunciava o eclipse total do Sol, em Santana; onde o céu era revelado durante o almoço, quando o Sol se apagasse ao meio-dia. O dia era 27 de março: Dia do Teatro. As falas de personagens voavam, e transcendentais os temas, e mais o subjetivismo, e a música na poesia das palavras habitando as enfermidades abissais. Personagens, nas mímesis, imaginavam um parnasiano deprimido que recriava versos feito um vampiro, que enaltecia a doença e a morte qual romântico liberando suspiros. No eclipse, o gótico no mórbido dos mistérios. O halo naturalista e o determinismo. Na zoomorfização, o cabelo de crina na mulher do centurião lembrava o cemitério como a poesia de Poe e Dos Anjos reinauguraram os desertões neste lado do Atlântico.
Os tipos textuais foram-se reencontrando no caminho do teatro de rua. Expositivo, que era professor no início da vida profissional antes de ser bancário e não banqueiro, como sonhava desde criança, foi didático; falando de amor, fez palestra sobre os relacionamentos, citou reportagens. Argumentativo, que conduzia uma carroça de burro, apontou na espinha dorsal da estrada, na Maniçoba. Argumentativo era uma carta aberta. O relho cobria o semovente. Argumentativo fazia teses sobre o trabalho que herdou do pai, que recebeu igual ofício do avô. O dia em que o carroceiro Argumentativo se dizia inspirado, era capaz de falar coisas que davam um caçuá de artigos científicos, sem se esquecer de título, resumo, palavras-chave, introdução, metodologia, resultados, discussão, considerações finais e até referências bibliográficas.
Injuntivo apareceu no grupo que fazia do feijão com arroz seu teatro, e ofereceu manual de instrução, propagou o viver mais e melhor ao se fazer teatro de rua, e trouxe a receita do Método, onde, no Teatro da Vila, os irmãos ouviram e falaram a respeito da dramaturgia e do método de criação adotado naquela peça há 42 anos. A iluminação, como elemento natural no teatro, era a luz das ruas. As cores usadas não se diferenciavam das aquarelas. No figurino, vestes comuns do povo. O som era o que se ouvia nas vozes e atritos. Rua e escola, ambientes propícios a este teatro, nelas encontravam-se os objetos teatrais, como na mesa do trabalhador encontravam-se o feijão com arroz.
No espetáculo da Semana Santa, apresentava o grupo que, ao nascer, Jesus recebeu três visitantes ilustres com três presentes reais. Sendo agora três a Sagrada Família. E, por três vezes, o asno participou de sua vida: no nascimento, atravessando o deserto, e chegando à metrópole. Durante três dias foi professor de doutores, no templo. Batizado aos 33. Por três vezes atentaram-lhe, após o tempo em que no deserto jejuou em orações. Bem-aventuranças representavam a tríplice imagem da Trindade. Ensinou três profissões: pescador, pastor, semeador. Por meio dos fariseus, ficou sabendo da intenção de Herodes; e respondeu-lhes que fossem dizer àquela raposa que expulsava demônios e realizava curas hoje e amanhã. João, Pedro e Tiago eram os três amigos mais caros. No monte Tabor, por três vezes recebeu três entes divinos. Comovido, por três vezes verteu lágrimas. Não mais de três foram anúncios da paixão. Sob o chicote de cordas, mesas e moedas espalhadas, e prometeu o milagre, ao ser destruído o santuário, a Casa de Deus então transformada em mercado, em três dias levantava. Três mortos foram ressuscitados. Pedro o negou três vezes, embora houvesse por três vezes revelado seu amor. Três admoestações a Pedro e aos filhos de Zebedeu, no lugar chamado Getsêmani, que não entrassem em tentação. Três vezes voltou a orar com insistência ao Pai, que realizava o impossível. Durante o julgamento, três autoridades foram juízes e interrogadores. Três vezes Pilatos manifestou a declaração de inocência. Caiu por três vezes no caminho atroz do conhecido Lugar da Caveira. Três crucificados no dia da preparação dos judeus. Três, duas vezes, a idade na qual expirou por volta das três horas da tarde de sexta-feira, como encontrava-se na tradição. Vendido por 30 ciclos. Ressuscitou ao terceiro dia. Durante três anos adotou pequenas narrativas, por meio de alegorias, pelas quais a multidão aprendia sobre ética e moral. Três mulheres o visitaram no sepulcro perto da cruz onde o elevaram. Após a ressurreição, por três vezes o Filho do Homem manifestou-se aos discípulos. Três pessoas na Santíssima Trindade.
Com olhos doces de jabuticaba, a Princesa Ariadne, filha da Rainha do Reisado, Dona Abantesma, perdeu a hora. Admirando o espetáculo “Conto da Paixão”, apresentado nas ruas de Santana, a lavadeira Ariadne divertia-se com a turma do teatro. Ela pôs a trouxa abaixo, cruzou braços, admirando seus amigos da Maniçoba no teatro de rua. Teatro com gosto de feijão com arroz, mesmo sabor, mesma textura em panela de cerâmica, mesmo aroma, consistência e riqueza nutritiva. Alimento, genuinamente, brasileiro que lembrava a Festa do Feijão em Santana em uma reportagem na revista O Cruzeiro.
(*) Autor do livro, com 12 nanocontos, “O dente cariado de MonaLisa” – e outros títulos neste gênero literário. O nanoconto “Quando Santana acordou, já era Domingo de Ramos”, este título é um conto em outro que narra brevemente a procissão de Domingo de Ramos, em Santana.
Comentários