Como um livro, as páginas da minha mãe são feitas de material poroso, ora flexíveis, ora incompreensíveis, ora claramente abertos e dispostos a serem lidos. Terão sempre o cheiro de perfume doce, que enche a casa de uma vontade de estar-se ali. Ela é folheável. Todas as vezes que olhei pra ela, querendo ou não, olhei para dentro de mim mesma. E dos seus olhos miúdos, quando saíam as lágrimas, eu, ainda pequena, chorava as minhas. De dentro dela saíram a alegria e nossos risos compartilhados. Minha mãe tinha seu jeito de dizer coisas sobre a vida, vivendo escassezes e vivendo farturas, e demolindo tristezas, e até por muitas vezes, atropelando as alegrias. Aprendi a vê-la sentada sob a luz de um abajur, lendo romances e, enquanto os lia eu a ela lia, decifrando-a. Estava ali uma mulher que sempre contava em casa, sobre os seus dias de parteira, as noções de um mundo para muito além da nossa casa. Um mundo de éteres, de roupa branca, de hospital e de sentimentos. Muitos sentimentos. Minha mãe escrevia em seus cadernos e sofregadamente, suas estações. Suas flores e sua primavera abriram pétalas para o meu jardim interior e me ensinaram a tradução humana da beleza, da amplitude e do que podem dizer as palavras e em como elas influenciam as cores do coração da gente. Seus invernos choviam sobre a minha cabeça e dentro da minha alma, todas as águas. As barrentas e aquelas completamente límpidas. O significante e o significado. A simbiose. Conheci também seus longos outonos. Suas queixas, suas insatisfações, naquela sua maneira de dizer as palavras com tal gravidade, que me cortaram muitas vezes em duas, em três, em múltipos fragmentos. Minha mãe era humana. Tinha seus defeitos e qualidades, debulhava o terço, rezava orações, dizia impropérios quando tinha raiva e depois, serenizada dos afetos mais impetuosos, fazia seus bolos, fazia os domingos serem festivos, fazia nossos natais. A casa, a cozinha, nosso lugar, dos meus irmãos e o meu, de vê-la se mover e de ouvi-la falar, de escutar o som da sua voz cantando, mora agora em um tempo que se desdobra, eterno, mágico e tão leve, que podemos levá-lo aonde formos. Eu irei sempre andando, buscando na ausência da minha mãe, a sua presença forte, o aconchego do útero que me gerou, os braços que me embalaram, o colo, o ombro onde deitei minhas lágrimas. Minha mãe é o meu livro. Nele, em nenhuma página, sua vida tem um final. E a sua história termina. Nunca. Nada sobre isto está nele escrito. Doravante, os caminhos, os passos, a marcha, o percorrer da minha jornada retornam de onde começaram. Eu, que aprendiz das coisas que ainda não sei como são feitas, sempre precisarei folheá-la. Que preciosidade foi você, minha mãe. Que preciosidade...
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