L1 & L2: A CHAVE DO TAMANHO

Crônicas

Marcello Ricardo Almeida1 (*)

Vamos falar sobre livros?

Nas escolas, em Santana, há crianças surdas, e não é diferente em outros lugares mundo afora. Há o modus vivendi surdo na alfabetização e letramento. A criança surda usa outro sistema em lugar da fala, este é a Língua de Sinais onde o sistema gesto-visual prevalece sobre o oral-auditivo.
O termo fala é utilizado tanto na modalidade oral quanto na sinalizada. Quem sinaliza também fala, porém de outra forma.
Os livros povoam a imaginação quais as pás de moinhos movidas pelo vento.
Pedagogicamente, a criança surda carece apreender L1 e L2 no processo de alfabetização e letramento. L1 é a sua língua natural; L2, na modalidade escrita, é a chave do tamanho com a qual a criança surda interage no mundo letrado. Língua Portuguesa escrita não é natural à criança surda, porque a sua língua materna é a Língua de Sinais.
A criança surda aprende a ler por meio de representações (palavras, cores, imagens e outros recursos pedagógicos) mediados por seu professor que lhe ensina, simultaneamente, em Libras (L1) e (L2) Língua Portuguesa escrita. Esta segunda língua (L2) ocorre pela apreensão visual para a criança surda no processo de alfabetização e letramento.
Há uma viagem de 20.000 léguas submarinas, quando o assunto é livro.
Português, como modalidade escrita, é a alfabetização da língua escrita, e a Libras, por ser visual, garante-lhe aquisição mais fácil se comparada à Língua Portuguesa, segunda língua para a criança surda cuja modalidade é associada a diferenças fonéticas e morfossintáticas.
Línguas orais carecem dos articuladores laringe, garganta, língua, dentes, lábios, por exemplo; enquanto os articuladores, nas línguas de sinais, são os braços, as mãos, o corpo, o rosto, por exemplo. Línguas de sinais também apresentam níveis de conhecimento gramatical fonológico (isto com a mudança da sinalização), morfológico (modo, tamanho, plural, gênero), semântico (significado), sintático (estrutura, organização) e pragmático (visto, implicitamente, no contexto comunicativo).
Livro, comparado à amizade, é um por todos e todos cabem no livro.
A forma e orientação das mãos são representações na escrita de sinais, além de movimento que indica, gesto que orienta. Para a criança surda, aprendendo a ler, o pensamento se elabora a partir da Língua de Sinais (visoespacial) que ela usa. A linguagem desenvolve-se por meio da interação com a criança surda, igualmente a aprendizagem por meio da mediação do professor.
Há recurso didático digital como meio pedagógico ao professor que não fala Língua de Sinais e tem na aula uma criança surda para ensiná-la a ler. Cabe ao professore fazer as adaptações pedagógicas de acordo com cada nível de entendimento do processo de ensino-aprendizagem. Com a inteligência artificial por meio desta ferramenta, virtual, a criança ouvinte, aprendendo a ler na mesma turma da criança surda, consegue se comunicar com a criança surda, interagindo com ela em seu processo de aprendizagem, considerando a teoria de Vygotsky para o qual a aprendizagem ocorre pela interação históricossocial.
Me pergunto por que todos não leem?
Durante o processo de alfabetização e letramento da criança surda são considerados os classificadores da Língua de Sinais no trabalho pedagógico do professor.
Enquanto o classificador descritivo descreve a sala de aula, por exemplo, descreve a imagem da escola, os especificadores são necessários para descrições em detalhes (textura, forma etc.); e outro classificador que se usa durante o processo de alfabetização e letramento é o plural nas configurações de sinais, configurações de mãos com as quais se descrevem repetidas vezes – transmitindo o classificador plural.
Há um classificador instrumental, usado na aprendizagem da criança surda, que representa certo instrumento. Outro classificador descreve a ação por meio corpofacial de seres agindo em seu habitat (um peixe; um pássaro ao usar o bico descascando uma vagem de feijão-de-corda) etc.
Vidas tornam-se secas quando não se descobrem vidas nos livros.
Sabe-se que a criança surda aprendendo a ler, ela está formando o seu léxico, isto acontece no processo de aprendizagem de uma criança ouvinte. Na Educação Básica, a criança surda matriculada para aprender a ler, dificilmente tem domínio da Língua de Sinais, isto porque ela é, em geral, filha de pais ouvintes; e nem sempre a Educação Básica, por exemplo, oferece matrículas em escolas bilíngues.
Há mais de quatorze mil sinais existentes na Libras para se comunicar. Esta é uma disciplina obrigatória, na universidade, na formação fonoaudióloga ou de professores; e, historicamente, o curso de Letras Libras, no Brasil, inicia-se na UFSC.
Não há tradução exata da Língua Portuguesa à Libras, como não há outra língua oral para a Língua de Sinais; além da presença das variações diatópicas – em cada lugar há sinais diferentes, regionalizam o contexto comunicativo da cultura surda. Esta possui o jeito surdo de ser, de perceber, de sentir, de vivenciar, de comunicar e de transformar o mundo escolar em Santana e em outros lugares mundo afora.
Falar sobre livros é uma fala que percorre grande sertão: veredas.

(*)Autor do livro “A crônica filha de Cronos: a divindade mítica do tempo em Santana... - proposição a uma educação multipluritransdisiciplinar no Ensino Fundamental”

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