Há meio século, na única sala de cinema em Santana, estreia “À volta pela estrada da violência” (1971), de Andrade. O conteúdo sob demanda no Cine Alvorada, que não existe mais, é revistado no smartphone; o filme é revisto por streaming (conteúdo on demand). É a migração do cinema analógico ao digital. Cidade é um lugar de lembranças; Cine Alvorada, em Santana do Ipanema, representa o lugar da sétima arte à memória da cidade sertaneja; nas paredes da sala do cinema os desenhos traçados com simbolismos culturais alagoanos: a história viva, uma exposição artística permanente.
Movie bluetooth now:
o Cine Alvorada agora
cabe na palma da mão;
cinema transfigurado;
e tudo agora é smart:
movie bluetooth now;
informações múltiplas
no mover das pálpebras;
amanhã: filme na retina.
Linguística é uma das ciências que estuda a verbalidade entre os povos. O cinema, ao internalizar a semiótica, e por meio de signos fílmicos, diverte as massas com o que, – para Saussure é a langue (língua: sistema linguístico comum) e a parole (a fala de cada pessoa) nos fenômenos psicossociais –, a fala e a língua capazes de mostrarem ao povo algo que outra arte não alcança.
Cinema faz-se por imagens e sons: arte imagística criada por quadros e planos nos quais objetos e personagens se mostra. Cinéfilos em Santana do Ipanema, vendo o cinema de Hawks, Peckinpah, Leone, por exemplo, conhecem o cinema alagoano com a estreia no Cine Alvorada do longa-metragem “À volta pela estrada da violência”.
No mais distante torrão,
as corujas soltam ruídos;
um pano sendo rasgado;
a noite chega ao Sertão;
param casas de farinha,
as moendas não moem;
logo descem das serras
tropéis: cavalos velozes;
no silêncio da noite:
canto dos carros de bois;
e nessa hora o cinema
contrói o voo das aves,
os mundos possíveis.
Alguns planos na obra cinematográfica reconstroem o voo das aves. No plano geral aéreo, “À volta pela estrada da violência” (prêmio Coruja de Ouro, 1971) há um grupo a cavalo de winchester em punho que circunda uma praça defronte à igreja no centro da cidade, desce a R. Barão do Rio Branco em direção ao Panema e atravessa a ponte nova dialogando com “Rio Bravo” (1959), de Hawks, no plano em que ele mostra quando chega à cidade o bando do fazendeiro Burdette.
Atribui-se ao crítico Bazin a caracterização do gênero western estadunidense como gênero cinematográfico por excelência. O texto cinematográfico preenche as lacunas de fatos com lendas. Mitologia, em seu caráter sociológico, trata-se de narrativas ritualísticas nas quais se perpetuam reverência aos deuses, semideuses e aos heróis.
Cinema Novo (1950) é uma resposta brasileira ao cinema, é a sua dialética à sétima arte; complemento ao que o antropofágico representa à Semana de Arte Moderna (1922). Este gênero mítico, western-spaghetti em Santana com “À volta pela estrada da violência”, começa em 1903 com o princípio do western em “The great train robbery”. Com a disseminação do celular que se multiplica em “Cineastas à vontade”, cabe às escolas a criação de clubes nos quais se propaguem diálogos sobre espaço e tempo presentes na sétima arte e amplie-se o currículo escolar tão classificatório e excludente.
E quase todos possuem
uma câmera na mão;
um sonho sonhado
por Glauber Rocha
torna-se cinerrealidade;
é o fim do velho cinema
no letreiro fine, the end
em Santana do Ipanema;
cada qual sua câmera
(conversa, filma, publica,
compartilha à vontade);
tempo dessemelhança,
e o Cine Alvorada agora
existe só na lembrança.
O tempo em movimento chama-se cinema. Numa sala, em setembro de 1971 “À volta pela estrada da violência” rodado em Santana do Ipanema, Maravilha, Atalaia, Pilar e Maceió; set de filmagem e externas entre o Agreste e a Zona da Mata. E, nesta região alagoana, personagens fictícios armados correm em uma parede de arcos, familiarizam-se ao filme de Peckinpah, “The Wild Bunch” (1969), quando personagens armados surgem na parede de arcos, no reduto de Mapache.
Um destaque, durante as locações, é a sombra dum cavaleiro girando refletido numa poça d’água. No filme, Geracina é personagem que conduz argumento e roteiro; protagonista lembra a mãe no início de “The Godfather Part II” (1974), dirigido por Coppola. Geracina personifica a figura ontológica no teatro épico brechtiano e no cinema ópera de Coppola; uma mãe que interage com a ambiciosa e trágica Lady Macbeth, de Shakespeare.
Intertextualidade do filme em cartaz no Cine Alvorada aproxima-se daqueles dirigidos nos estúdios Cinecittà. Filmes produzidos naqueles estúdios permitem a Leone e a outros realizadores recriarem o gênero que se notabiliza como western-spaghetti faz Santana do Ipanema ver o seu filme que representa o Far Santana West; e nas ruas o seu povo, a sua gente no telão: no fórum, diante dos degraus da igreja pessoas em torno do semovente que traz nos caçuás os filhos de Geracina; e os santanenses ouvem Geracina à maneira do teatro épico brechtiano, à maneira do cinema ópera.
Palavra não faz poesia;
poema é objeto de arte,
objeto linguístico
feito cada efeito Eliot.
Quem é tia Salete?
Não é tia Salete,
é T. S. Eliot...
Que faz da palavra
cinema mudo,
que faz Leone fazer western-spaghetti
e faz Santana ver
nas ruas de pedras,
nas ruas de poeira
o seu filme
“À volta pela estrada da violência.”
Santana do Ipanema,
cidade cenográfica,
cidade cinematográfica
também faz cinema.
A época da realização de “À volta pela estrada da violência” dialoga com a época do western-spaghetti nos estudos da Cinecittà. Leone e outros renovam o gênero western nos estudos da Cinecittà; é equivocado o prefixo de subgênero usado ao se referir ao mítico gênero western que atravessa o Atlântico e renasce na Itália com Leone e outros realizadores.
Mímesis não reaparece em Aristóteles, na “Poética”? Cineastas reinterpretam a própria arte. Leone comunica-se com Kurosawa, há entre Eastwood e Leone comunicação, a comunicação se reconhece entre Tarantino e Corbucci. O Cine Alvorada, em Santana do Ipanema, exibe “Città Violenta” (1970), com direção de Sollima; “Il Grande Silenzio” (1968), dirigido por Corbucci; “Per un pugno di dollari” (1964), na direção de Leone. Sob as cores da retina:
A arquitetura na cidade
nem sempre é abismo;
e o senso do inacabado
é parte da modernidade;
nem sempre retinas veem
os significados simbólicos;
o princípio unificador
na palavra é a poesia;
e tudo é elipse
e se fragmenta;
e Santana do Ipanema
existe na paisagem.
Há parte no filme que parece haver menção a “Deus e o diabo na terra do sol” (1964), de Rocha, que trabalha com figurantes onde se constroem as filmagens. Outro cineasta que trabalha com figurantes nas locações, a exemplo de “Medea” (1969), é Pasolini – e Geracina, em diferentes aspectos, faz lembrar “Medea”, de Pasolini.
Música-tema do gênero western-spaghetti, sob a batuta de Morricone, é outra crônica à parte. Música-tema e título do filme referenciam western-spaghetti dos Sergios Leone, Sollima e Corbucci, também referências de Castellari, Damiani, Baldi, Tessari, Rossetti, Valerii, Petroni, Santi.
É a memória quem preserva a história. Gerações que sucedem gerações, no espaço e no tempo do ex-Cine Alvorada testemunham o filme “À volta pela estrada da violência”; outra geração usa o celular e vai mais longe por meio de registros audiovisuais, nas redes. O fenômeno do bangue-bangue à italiana que influencia Presley, que inclui no elenco o ator ítalo-brasileiro Steffen, chega a Santana; e assim se fotografa uma época do cinema analógico possível revê-la numa plataforma digital: “À volta pela estrada da violência”: western-spaghetti realizado em Santana do Ipanema.
M. Ricardo-Almeida
“À volta pela estrada da violência”: western-spaghetti realizado em Santana do Ipanema
CrônicasM. Ricardo-Almeida 09/01/2022 - 12h 32min

Cartaz do Filme À volta pela estrada da violência
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