Amigos, amigos, inimigos à parte

Outras Peças Literárias

por Fernando Soares Campos(*)

´´Julga-se um homem tanto por seus inimigos quanto por seus amigos.``

[Joseph Conrad - escritor polonês]


´´Não caminhe atrás de mim; eu posso não liderar.

Não caminhe na minha frente; eu posso não o seguir.

Se possível, caminhe ao meu lado e seja meu amigo.``

[Albert Camus - filósofo francês nascido na Argélia]


Costumamos julgar nossos inimigos como se fossem umas antas, geralmente os tratamos por indigentes intelectuais. Entretanto, esses a quem assim classificamos são, o mais das vezes, apenas tentáculos do verdadeiro inimigo, aquele com quem nunca nos relacionamos diretamente ou mesmo indiretamente. Alguns a gente conhece de "ouvi falar"; outros, nem isso. Por isso mesmo invariavelmente centramos nosso fogo-fátuo (ou seria flato?) nos "tabelinhas", os pernas-de-pau que se sentem craques, aqueles que recebem a bola cheia e repassam murcha.

Os sofistas do baixo escalão não são propriamente sofistas, são animais híbridos, "antagaios", cruzamento de anta com papagaio; não falam, palreiam e o fazem supostamente convictos de que estão sendo autênticos. Quando citam seus mentores, o fazem apenas com o intuito de promoverem a si próprios, tentando exibir erudição, mas fazendo interpretações enviesadas. Às vezes, esses "hermeneutas", mesmo diante de argumentações inconsistentes do mestre, acabam dando parecer ainda mais esdrúxulo.

As redações dos órgãos midiáticos de cunho empresarial estão aí mesmo para confirmar o que estou dizendo. Os jornalistas e colunistas da chamada grande imprensa leem as ordens do dia... quer dizer... os editoriais formulados pelos seus patrões, interpretam-nos a suas maneiras e, em muitos casos, reproduzem as idéias e intenções do chefe de forma ainda mais grave do que aquilo que foi determinado nas prescrições absurdas que lhes foram ditadas.

Assim, os "focas" oriundos das faculdades de Comunicação (e até mesmo as velhas raposas empíricas) tentam ser originais, querem aparentar independência. Muitas vezes dão palpites aos seus chefes, a fim de marcarem presença, distinguirem-se no todo, mas fazem isso fundamentados nas idéias originais da chefia, apenas reforçam suas fidelidades ao maquiavelismo da empresa. Nunca são autênticos ─ apesar de que, a meu ver, nesses casos, revelamos autenticidade apenas quando nos expressarmos de forma parafrástica, mas tentando oferecer uma nova visão do tema abordado, ou seja, criando paráfrases "autênticas", metáfrases que digam a mesma coisa do original, porém com objetividade e, se possível, com inteligibilidade, a mais abrangente possível.

O general Golbery do Couto e Silva, eminência parda dos governos da ditadura civil-militar que se instalou no Brasil em 1964, dizia que "o problema não é o general, mas, sim, o inspetor de quarteirão". Acho que, com isso, ele queria dizer que os "excessos" cometidos pelo regime deveriam ser imputados aos subordinados que não interpretavam corretamente as vozes de comando dos seus superiores. É uma forma de alguém se eximir de culpa, tirar o asterisco da reta, chamar os outros de analfabetos funcionais.

Mas as tropas de choque são formadas com buchas de canhão, fanáticos e inocentes úteis, todos instruídos e comandados por patrioteiros ou mercenários.

Crença incondicional ou ceticismo renitente?

O que se constitui em pior atitude: acreditar em tudo ou não acreditar em mais nada?

Eu mesmo não sei.

Mas podemos arriscar uma análise palpitante...

Acreditar em tudo é um comportamento infantil, pois é próprio das crianças acreditarem em tudo que lhes digam, ou se espelharem em tudo que os adultos fazem, considerando aquilo como atitudes corretas e dignas de serem imitadas. Mas também é esse o comportamento do adulto imaturo, aquele em quem persistem características psicológicas e emocionais próprias das crianças. Ele acredita em tudo que "dá" na televisão, ou que sai no jornal, na revista, no livro... Até existem os que dizem "vi na internet" e, por isso, aceita o exposto como fato consumado. Existem também aqueles que acreditam em tudo que foi dito por intelectuais, por acadêmicos, por experts em determinadas áreas, por autoridades em determinados assuntos, acatando os dizeres e saberes como verdades in-con-tes-tá-veis! Isto também é uma forma de se acreditar em tudo. Tudo que "alguém" diz. O resto é zé-ninguém, inclusive ele próprio.

Não acreditar em mais nada é característica daqueles que saltaram da infância psicoemocional para a decrepitude, sem passar por um estágio de autoanálise das suas vivenciadas experiências, não praticando o "conhece-te a ti mesmo", aquilo que nos conduz gradativamente à maturidade. Mas engana-se quem pensar que decrépitos, nesse caso, são apenas os que estão caducando em decorrência de uma idade muito avançada. Existem "moços" já relativamente decrépitos. São, invariavelmente, pessoas que viveram longo período em condições maniqueístas ("Deus é Deus, e Nicuri é o diabo!"), sem atentar para as variantes das verdades tangíveis ou para as nuances das realidades perceptíveis. São indivíduos facilmente manipuláveis e que, por conveniência ou preguiça mental, se deixaram manipular durante muito tempo; até que, cansados por não verem suas expectativas tornarem-se realidade, se decepcionaram com seus ícones voláteis: políticos demagogos e corruptos, empresários gananciosos, militares mercenários, religiosos pervertidos e tantos outros "monstros" que "dilaceraram suas esperanças". Ele agora é aquele cara que grita veemente: "É tudo farinha do mesmo saco!" "São todos iguais!" "Se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão!" Honesto, verdadeiro, sincero, inteligente, em todo o mundo, só restou ele próprio. Mas não se surpreenda se vir um desses sujeitos "militando" em favor da "desmilitância" geral: "Voto nulo!" "Ninguém merece!"

Portanto, a meu ver, acreditar em tudo é uma condição infantil que pode levar o indivíduo a saltar etapas evolutivas, passando daí direto para uma caduquice precoce ─ estado em que não se acredita mais em nada.

Quando lemos ou ouvimos alguém não podemos medir o grau de convicção do autor ou do discursista, menos ainda perceber claramente o alvo de suas intenções. Não somos dotados de "convictômetro" ou "intenciômetro". E se tivéssemos um detector de convicções instalado em nossas consciências, ele dispararia o alarme a cada momento em que disséssemos a nós mesmos que acreditamos piamente nisso ou naquilo. Quanto ao verificador de intenções, precisamos entender que bem-intencionado é o sujeito que deve ser perdoado quando erra, apesar de ter agido exatamente como o mal-intencionado agiria. Mas podemos e devemos sempre ligar o "desconfiômetro". Ter um pé ligeiramente recuado não é uma atitude paranoica, mas tão somente uma indispensável precaução diante das realidades em confronto com as verdades acessíveis.

Mas... o que essa lengalenga toda tem a ver com amigos e inimigos?

Acontece que muitos dos nossos amigos dão algum crédito àquilo que expomos sob a condição de conjunto sistemático de opinião, mas de caráter hipotético. São pessoas que encontraram traços de lógica naquilo que estamos expondo, por isso se dispõem a aprofundar nossas análises. Essas pessoas costumam nos brindar com retornos surpreendentes: concordando, parcial ou integralmente, com aquilo que teorizamos, acrescentando dados que desconhecíamos, indo bem mais fundo do que seríamos capazes. Ou, muito pelo contrário, discordando da totalidade de nossos hipotéticos raciocínios, apontando os erros de nossas presunções. Em ambos os casos somos beneficiados, porém este segundo resultado nos é muito mais proveitoso. Somente quando reconhecemos nossos erros e nos dispomos a modificar nossos comportamentos é que evoluímos, partimos para novas descobertas com a visão um pouco mais ampliada. Entretanto isso não é tão fácil de se pôr em prática, dado a fatores íntimos, tais como o orgulho, a vaidade, o egoísmo... os quais nem sempre nos permitem reconhecer nossos próprios erros.

Quanto aos nossos inimigos, esses não têm apenas um pé ligeiramente recuado em relação ao que dizemos ou fazemos: estão sempre em posição de carateca pronto para atacar ou se defender. Se forem inimigos motivados por questões no âmbito da política ou da ideologia (nesses casos deveriam ser simplesmente opositores), aí, tudo que dissermos, mesmo que confirmado por fatos evidentes, irrefutáveis, será visto como "teoria da conspiração".

Mas amizade não determina que tenhamos que viver passando a mão na cabeça dos amigos, inflando-lhes o ego. Quando dizemos apenas coisas amáveis aos nossos amigos e duras verdades aos inimigos, estamos falseando os verdadeiros propósitos de uma amizade.

Amizade requer sinceridade. Claro que franqueza excessiva é falta de educação, pode ser até arrogância. Mas, para mim, delicadeza só é sinônimo de debilidade quando agimos com pieguice, com sentimentalismo exagerado. Precisamos, sim, ser naturalmente delicados no trato com os amigos e, se possível, até com os inimigos. Não com o receio de melindrá-los com atitudes aparentemente mais ousadas e com isso romper a amizade ou instigar o inimigo. Não, não é nada disso. Devemos ser delicados por ser esta a nossa natureza.

Ao contrário do que muitas vezes tentaram me fazer acreditar, o ser humano não é um bicho feroz, um monstro, um lobo em pele de ovelha, traiçoeiro por excelência, malvado por natureza. Esse é o retrato de uma minoria dentre a Humanidade, mas uma minoria poderosa que faz sua imagem brilhar por todos os cantos da Terra, um brilho intenso, emanando de televisores, monitores e telas de cinema já há muitos anos, terrivelmente fascinante.

Creio que devemos dizer duras verdades de forma amável aos nossos amigos. Mas, quanto aos inimigos, se estes só querem nos falar e não nos ouvir, devemos dizer-lhes as mesmas duras verdades, porém, às vezes, se necessário, de forma grosseira.

Reconciliar-se com o inimigo não quer dizer anuir aos seus propósitos, mas apenas mantê-lo incapacitado, ou ao menos inibido, de nos prejudicar. Acho que é isso que fazem os governantes progressistas, reformadores e até os revolucionários.

O amigo do meu inimigo não deve ser necessariamente meu inimigo. Assim como o inimigo do meu inimigo não é obrigatoriamente meu amigo.

Mas... quem são nossos verdadeiros inimigos?

Não sei! Conheço apenas os que exteriorizaram suas antipatias por mim e se declararam meus inimigos. Mas esses não me parecem ser meus verdadeiros inimigos. Eles têm pinta apenas de buchas de canhão, bolas murchas, pernas-de-pau, teleguiados ou, como diz a minha aspone preferida, a ex-KGB Komila Nakova, matrixiados e mal pagos.

O buraco negro em que meu verdadeiro inimigo, entocado, me espreita é bem mais embaixo.

(*)Fernando Soares Campos é escritor, autor de "Fronteiras da Realidade - contos para meditar e rir... ou chorar" - Chiado Editora - Portugal - 2018.

Comentários