LEMBRANÇAS DA MINHA INFÂNCIA

Contos

Vandete Alves dos Santos

LEMBRANÇAS DA MINHA INFÂNCIA


A minha mãe contou-me que foi abandonada pelo meu pai, grávida de seis meses quando eu estava apenas com oito meses e meu primeiro irmão já tinha falecido logo que nasceu. Fomos morar com meus avós maternos, que me deram muito carinho, proteção e muito apoio. Cresci trabalhando de roça, plantando e colhendo, com muitas dificuldades. Como se não bastasse, com dez anos de idade meu avó faleceu e com dois meses e sete dias, minha avó também nos deixou, percebo que a perda, a separação e a saudade levou ela para morte também. Para mim naquela época o mundo tinha desabado, chorava em todos os velórios, até mais que os parentes dos mortos, acredito hoje que necessitava de um psicólogo, se tivesse condições financeiras. Fiquei com minha mãe, uma tia viúva e duas primas que perderam a mãe muito cedo e o pai casando-se de novo as abandonou, foi neste momento que minha mãe as acolheu e ficamos eu, minhas duas irmãs adotivas, minha tia e mamãe, sem nada para sobreviver, em uma casa de taipa e terra para plantar.

E assim o fizemos, a colheita era boa, as terras eram adubadas e plantávamos de tudo. Só que um dia eu disse: Eu tenho que estudar, quero ser uma professora e minha mãe disse: O que eu não aprendi por que tinha que trabalhar na roça e o meu pai não me deixou estudar, vou fazer tudo por você e aprenderá a ler, escrever e contar. Tinha um vizinho que dizia para minha mãe: Leitura em mulher é como passada em besta, não servia para nada, só tinha serventia em escrever para rapazes ruins, o melhor era ir trabalhar na roça. Minha mãe persistia dizendo, depois que ela aprender, pode escrever para quem quiser, a minha parte eu farei.

E assim, na carta de A B C, eu comecei a ler a partir da última página, que dizia assim: É meu pai , eu vou ler, eu já sei, faz mui bem, vou ler mais. Passei para a Cartilha, A Cartilha do Povo e continuei nas escolas da zona rural, chegando ao 3º ano, necessitava de uma gramática da Língua Portuguesa, e uma Aritmética, minha mãe não tinha como comprar. Tomei emprestado os dois livros já usados a Professora Djanira casada com Miguel da barriguda. Cobri os livros com papel de embrulho para não estragar pois, no final do ano, teria que devolvê-los do mesmo jeito que recebi. E assim o fiz. Naquela época já existia o Grupo Escolar Padre Francisco Correia, que me acolheu para estudar o 4º ano primário. Como eu não podia comprar o fardamento escolar, o prefeito de nossa cidade era Dr. Hélio Cabral de Vasconcelos, que doou vários fardamentos para a diretora, Maria Audite Wanderley, distribuir com os alunos que vinham do sítio e não tinham como comprar. E assim, recebi dois fardamentos. Tiramos as medidas e recebemos os tecidos. Imaginem minha alegria neste dia. Conclui o 4º ano as classes eram separadas, o masculino em uma, o femenino em outra sala. O filho do Sr. Marinheiro, comerciante de Santana, chamado de Valdemar, obteve no final do ano a melhor nota, o 1º lugar, iria discursar para o público, na festa de formatura. E eu, conquistei na classe femenina, também o 1º lugar e discursaria também. A minha professora era a Senhora Alzira Mazony de Almeida, do município de Pão de Açúcar, elaborou um discurso para mim e foi uma grande festa, no pátio da escola, que jamais esquecerei.

Como aprendi a ler e escrever? Eu tinha umas colegas no sítio que compravam revistas de quadrinhos e eu pedia sempre emprestado para ler, devolvia umas e levava outras. Enaura Soares, Elza Soares e Mariza eram muito estudiosas, minha mãe fazia compras na bodega do Senhor Antonio Soares, pai das minhas colegas, que muitas vezes ia para escola com elas. Naquela época os gêneros alimentícios eram embrulhados em papel de embrulho e jornais e chegando em casa eu retirava , desamassava e lia tudo dos jornais, várias vezes para aprender as manchetes. E o papel limpo dobrava para resolver cálculos matemáticos e escrever palavras. Me matriculei no Projeto Minerva, assistia aulas no Grupo Escolar Ormindo Barros, e fiz provas em Bom Conselho, Pernambuco, fiz todas as provas em dois dias, fui aprovada e me matriculei no Colégio Estadual Deraldo Campos, já casada, com um filho e muita dificuldade para estudar. Quando a Professora Maria Salete Bulhões, solicitava um livro de literatura para um resumo e características dos personagens, eu pedia a minhas colegas e muitas vezes elas compravam os livros como Escrava Izaura, Luzia Homem, Éramos Seis e outros. Eu lia, fazia um resumo e já entregava pronto, para a dona do livro e assim, eu sabia melhor de todas as característica dos personagens e ambientes que se passavam as historias pois lia com muita atenção. E assim, conclui o Curso Pedagógico ou seja Magistério . Foi uma festa belíssima, mais uma etapa da minha vida que não desejo esquecer.

Nunca parei de estudar, gosto de ler e descobrir o novo, as palavras desconhecidas. E quando a Escola Superior do Sertão ESSER, realizou o primeiro vestibular, eu e meu querido filho Ronaldo, fizemos as provas, fomos aprovados e iniciamos o curso de Pedagogia na mesma sala de aula, agora eu me sentia uma leoa, vencedora, era uma universitária, com boas notas, meia noite quando chegava da Faculdade, mesmo cansada, ia pesquisar nos dicionários, as palavras desconhecidas, os termos científicos, para no dia seguinte ter mais segurança nos conteúdos abordados pelos professores. Neste período já era Diretora do Colégio Estadual, tinha sido Diretora Adjunta do Cepinha e quando a escola desmembrou-se do Estadual, fui nomeada Diretora geral da Escola Estadual Professor Aloízio Ernande Bandão, nosso saudoso professor. E assim fui diretora das duas unidades escolares por treze anos e meio. Na Faculdade esteve vários professores que marcaram a minha vida. O saudoso Roberval Menezes, que muito contribuiu para minha formação, as professoras de Arapiraca, Maria Ângela e Juracilene, deram uma contribuição muito grande em metodologias diversificadas, para minha profissão de educadora, como aprendi, como cresci intelectualmente e ainda fiz uma pós graduação em Administração Escolar, logo depois da graduação.

Verificando ainda a minha infância, recordo as minhas brincadeiras, no Sítio Passagem do Trapiá, fui criada residindo a margem esquerda do rio Ipanema, onde tomei muitos banhos, pescando com litros de vidro furados no fundo para as piabas entrarem e também tirei muitos pitus das locas de pedras com as mãos, sem me preocupar com o perigo de ser mordida pelas cobras. Quando a cheia do rio acontecia, ia esperar a mesma chegar, a poluição que tinha era quase nada, só restos de vegetais e alguns animais mortos das margens do rio, pois, nesta época não existia bolsas pláticas e garrafas pete como hoje. A água era muito limpa e todos tomavam muito banho. O rio era quase perene quando ia secando, vinham as trovoadas e tornava a encher, todo final de ano ele estava muito cheio, descendo troncos das árvores nas águas. Gostava de pescar e admirar a quantidade de peixes que tinha nos jequis, feito de varas finas, com embira das árvores uma tradição indigena. E as cachoeiras com o barulho das águas nas pedras iluminadas pelo claro do luar.

Nossas brincadeiras prediletas: jogar peteca feita de palha de milho, saltar corda, brincar com cinco mucunãs, jogava tanto que criava calos nas mãos. A brincadeira conhecida hoje como amarelinha, era chamada de avião e o céu aparecia um círculo no final, no qual voltava para reiniciar o jogo e ao lado colocava-se os números das casas do avião. Na frente da minha casa tinha um grande pé de mulungu que fazia sombra e eu e minhas irmãs brincávamos muito e mais tarde na casca da árvore, com uma faca escrevi o nome dos meus namorados deixando marcado as minhas paixões.

Hoje recordo das minhas historinhas infantis que , ouvia de minha avó. A Branca de neve e os sete Anões, João e Maria, A Bela e a Fera, A Bela Adormecida e outras. Sempre fui louca por cordéis, ia à feira popular daqui de Santana e em frente a Igreja Matriz , tinha bancas com cordões e pendurados vários cordéis: O Cego Aderaldo e Zé Pretinho, A Chegada de Lampião no céu, Maria Bonita e Lampião. Nunca esqueci, comprava os cordéis e lia oito, dez vezes para assimilar as histórias, aprender a ler e escrever palavras. Lia historinhas do mundo acabar e anoite sonhava com o céu pegando fogo, com imagens de santos impressionada com o que havia lido durante o dia. Uma noite de ano novo, 31 de dezembro, minha mãe e minha tia foram para festa na cidade. Eu e minha avó ficamos acordadas a noite inteira, pois nos disseram que o mundo ia acabar com istrondos e quem estivesse dormindo morreria. Lembro-me que não dormimos, esperando o mundo acabar. Era uma linda noite de luar e assim o dia clareou e nada aconteceu.

Atualmente sou feliz, tenho meu emprego, meus filhos e marido, graças a Deus minha mãe também, hoje posso comprar todos os livros que desejo ler, tenho sede de conhecimento, me sinto uma pessoa realizada, sou feliz com o que tenho. Graças a Deus o que não me falta é vontade de lutar para vencer, só os fracos desistem com facilidade.

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