Os anos passaram deixando para trás bolsões de saudade. Saudade que se transformaram em lembranças guardadas com carinho em uma redoma dos momentos vividos. Nesse instante, pego uma carona na nave do tempo e retorno aos anos da minha adolescência.
Santana do Ipanema, 1959, estou sobrevoando a casa onde moro na Avenida Adeildo Nepomuceno Marques. São dois prédios recém-construídos e conjugados que fazem esquina com a Avenida Nossa Senhora de Fátima com frente para o terreno onde posteriormente seria construído o Tênis Clube Santanense, ao lado da casa de Dona Audite Wanderley, talvez sua primeira moradora. Estou agora em terra firme. Caminho lentamente. Nesse momento passo em frente aos domicílios de Seu Antônio Bispo e João de Barros, dois guardas, colegas de trabalho de meu pai. Atrás, há poucos metros, à minha direita, bem nos fundos da casa onde moro, existe um terreno com alicerces definidos para a construção de três casas pertencentes ao Seu Leosinger Marques. Prossigo na minha caminhada, a chuva fina banha o meu rosto, é inverno. Lá adiante, numa depressão do terreno cruzo a Baixinha. Paro por um instante, veios d'água descem a estrada de barro limitada pela casa de Seu Antonio Redondo, pai de Omir e o cercado de Seu Antônio Vicente, rumo ao açude de Seu Antônio Carneiro. Faço um barquinho de papel e cuidadosamente lanço-o na trilha da enxurrada. Em seguida acompanho aquela pequena embarcação de papel, num compasso binário entoando repetidas vezes a modinha, “Marcha soldado, cabeça de papel/Se não marchar direito vai ser preso no quartel”, até ser lançada ao açude pela sinuosidade dos carneiros que se formam com impacto das águas e recebida pela sinfonia dos anuros saudando o inverno. Da margem do pequeno lago observo o barquinho tomar o destino do barreiro de Seu Abílio Pereira, impulsionado pela força da correnteza, até perdesse de vista. Retomo a minha caminhada por um caminho vicinal margeando a cerca de aveloz e o cercado de Seu Antonio Vicente, pelo lado poente. Mais adiante, à minha esquerda fica a casa de Benedito. Sua mãe Dona Soledade está varrendo o quintal com uma vassoura de piaçaba, enquanto no outro lado da estrada, Seu Antonio Delfino prepara a charrete com algumas mercadorias para a feira de Guariba, um pequeno lugarejo nas vizinhanças de Santana do Ipanema.
Mais algumas passadas, após atravessar uma estrada secundária, espécie de atalho, encontro-me em frente ao sítio de Seu Miguel Bulhões. Na entrada uma simples porteira entre cercas de arame farpado e aveloz, dá as boas vindas. Do lado de fora vejo a casa de taipa quase destruída, conjugada com um pequeno depósito também em fase terminal. No interior da propriedade, nas adjacências da velha casa algumas fruteiras denunciam o local. Mangueiras, pinheiras, laranjeiras, limoeiros, cajueiros, dezenas de pés de ouricuri, além de um terreno conjugado, decorado com vários pés de angicos que servem de recantos para os nhambus e juritis, nos limites com as terras de Seu Zé Ilias. Mais adiante, duas ou três vaquinhas crioulas são alimentadas com palma forrageira e pastagens nativas. Seu Miguel costuma todos os dias, pela manhã e a tarde, vir ao seu sítio, às vezes só, às vezes em companhia de seu filho Nivaldo, meu colega de sala no Grupo Escolar Padre Francisco Correia, para evitar que os meninos invadam sua propriedade a fim furtar alguns frutos ou petecar os passarinhos. Homem de poucas palavras, sério e de uma personalidade forte. Seu jeito calado e andar apressado sempre impressiona os moleques do bairro que têm por ele medo e respeito. Porém, Seu Miguel tem outra atividade na qual se dedica com mais determinação, a música. Maestro conhecedor das notas musicais e de suas distribuições nas pautas, sempre dispõe de um tempo para por em prática os seus dons musicais como professor e formador de novos músicos através da sua escola singular de música, situada nos fundos do prédio onde funciona a “Voz do Município” levado ao ar por com Darras Nóia e Zé Pinto Preto. Anos depois, o maestro Miguel Bulhões formava a sua banda musical (Banda Fanfarra) com alunos da sua escola de música. Lembro-me de sua presença em todos os eventos realizados na cidade. A sua bandinha como era denominada pelos leigos, sempre surgia na avenida empolgando a todos com seus lindos dobrados como “Cisne Branco”, dobrado 220, etc. Quantas vezes presenciamos o maestro Miguel Bulhões comandando a sua banda nos novenários de Senhora Santana e nas procissões, executando o hino da nossa excelsa padroeira sobre o entusiasmo do saudoso Padre Cirilo e os fiéis de Senhora Santana. Ainda hoje o maestro Miguel Bulhões continua vivo na memória do santanense. Sua vida passou, mas não passaram os dobrados e as marchinhas de carnaval que executou com tamanha maestria. Miguel Bulhões o maestro que não passou.
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