ESPELHOS

Contos

Remi Bastos

Janeiro de 1969, eu havia sido aprovado no vestibular de Agronomia pela Escola Superior de Agricultura da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Nesse período eu morava por amizade na casa de um amigo, Enio Souza, ali na Avenida Norte próximo a Vila dos Comerciários, o qual tive a sorte de conhecer no ano anterior por intermédio de outro amigo parceiro de estudo chamado Jerônimo de Moura Ferro. O Jerônimo, alagoano de Minador do Negrão era uma pessoa de comportamento totalmente diferente do meu. Enquanto eu me apresentava como um ser brincalhão típico de um santanense que gosta de sorrir e brincar, o meu amigo era compenetrado em tudo aquilo que fazia. O seu tino religioso buscado na essência da Igreja Batista o caracterizava como um indivíduo voltado para os ensinamentos bíblicos. Vez por outra em nossos momentos de estudo procurava fazer um pequeno intervalo para meditar sobre alguns textos do Novo Testamento. Criticava a veneração às imagens e professava a crença por um Deus único e verdadeiro. Costumava dizer que do mesmo material em que foi esculpido uma imagem poderia também ter sido construído um banco.
Por infelicidade não conseguimos ser aprovados no vestibular de 1968 e, por decisão própria Jerônimo decidiu se transferir para São Paulo onde iria trabalhar e tentar outra vez o vestibular de Agronomia. Naquele fevereiro de 1968 nos despedimos, eu senti ali o peso da distância desabar sobre mim, pois, aquela seria a última vez que eu poderia abraçar aquele que foi um amigo e conselheiro espiritual nos momentos que eu mais precisava face a minha condição de vida. Com a sua saída eu passei a ocupar o posto na casa da Avenida Norte.

Decorreu o ano de 1968, nenhuma notícia do Jerônimo. Continuei em Recife me dedicando aos estudos, mas, sem perder as emoções de retornar a Santana do Ipanema, minha cidade fincada no Sertão Alagoano e quase sempre nas caronas bem aceitas de Milton de Seu Miguel Francisco, mas conhecido nas rodas dos amigos santanenses como “Milton Ventão”. Era a única carona que eu fazia questão de aceitar por que o proprietário do carro arcava com as despesas durante a viagem. Certa vez em uma de minhas idas a Santana, nessa época eu estava cursando o primeiro ano de Agronomia, e por ironia do destino e da intuição fui localizar o dono da Mercedinha na fábrica de Cerveja Antártica, à Avenida Brasil no Bairro de Peixinhos. Fiquei aguardando por duas horas em frente à Antártica quando surge o Milton no pátio da fábrica já de posse das notas ficais. Antes que ele ligasse o motor do carro eu me apresentei e fui logo fazendo uma pergunta um tanto idiota: “MILTON ESTÁ INDO À SANTANA”? E Para surpresa fui atendido com um tratamento diferenciado: “OI DOUTOR, TÔ INDO AGORA COM FÉ EM MEU PADRINHO CIÇO”. Nessas alturas eu já estava abrindo a porta do passageiro e pondo a minha bagagem no colo uma bolsa de mão contendo no seu interior três cuecas samba canção, meio sabonete eucalol, quatro camisas sendo duas de propaganda política que dizia assim: “Para Prefeito, o melhor é Henaldo Bulhões”, dois pares de meias de algodão compradas na torda de Seu Antônio Delfino, duas calças coringa e uma sandália havaiana. Demos partida, a hora era mais ou menos 16h30min. Minha barriga cantava a cada cinco minutos, a fome era tamanha, pois, a última refeição que eu havia feito naquele dia foi por volta das 7 horas da manhã, um cachorro quente à seco. A Mercedinha era a única que se alimentava, comia estrada, enquanto o piloto concentrado no volante só abria boca para soltar à fumaça do cigarro. Foi aí que o Milton me questiou: “NEGÃO JÁ ESTÁS JÁ ESTÁ PERTO DE SE FORMAR”? E eu lhe respondi com o maior cinismo: “CONSPÍCUO CAMINHONEIRO E DISCÍPULO DE ARTUZINHO ALÉCIO, DEVO DIZER-LHE QUE FALTAM APENAS DOIS MESES”. Como se fosse nos moldes do ensino de hoje eu estaria no primeiro período. “E o Milton complementou: NEGÃO EU SÓ QUERO VER SE VOCÊ NÃO VAI ME DAR UMA MÃOZINHA”. “PODE DEIXAR VENTÃO QUE EU VOU TORNAR VOCÊ O MAIOR ABASTECEDOR DE CERVEJA E COCA COLA DO SERTÃO ALAGOANO”. E a resposta do amigo foi: “DEUS TE OIÇA E MEU PADRINHO CIÇO TAMBÉM”. E seguimos a viagem com mais algumas ocorrências.

Voltando a narrativa do amigo Jerônimo de Moura Ferro. Somente obtive notícias suas um ano depois, por telegrama, informando a sua aprovação no vestibular de Agronomia, da mesma forma em que lhe retribui também com a minha aprovação.
A última notícia que tive foi através de um convite para a sua formatura, e mais uma vez lhe retribui com um convite também. Hoje estamos a quase 39 anos de formados e nunca mais nos comunicamos. Não sei por onde ele anda, tenho a impressão de que já esteja aposentado e possivelmente residindo em Alagoas. Gostaria muito de reencontrar este AMIGO.

Aracaju, 23/09/2011.

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