Quem nasce no sertão e sobrevivem até os cinco anos, pode ter certeza que chegará aos cinqüenta gozando de boa saúde, isto é, caso se livre dos percalços que iram atravessar sua vida neste longuíssimo qüinqüênio. Ora pra chegar aos cinco anos tive que vencer fortes batalhas que cruzaram meu caminho, não define o acaso como azar ou má sorte, sei que sofri muito por ter nascido frágil, franzino, raquítico, desnutrido de saúde abalada já com destino certo, uma pequena cova de anjo, como se diz lá no sertão: “esse menino não se cria”, além da fragilidade de que dispunha, ainda vieram certas condições que pioraram ainda mais minha situação, fui tratado em casa à base dos remédios caseiros, banhos, rezas, crenças, chás, adivinhações, etc., etc... Vinguei e cheguei à maturidade como uma arvore frondosa a caminho do sexagenário. Talvez se houvesse sido tratado em hospitais não teria me criado apesar da medicina já haver marcado presença naquelas bandas as pessoas não abriam mão do conhecimento da cura popular herdadas dos nossos antepassados desde os tempos da pedra lascada, era compartilhado por todos e seguido religiosamente a cada receita repassada por alguém, e aí de quem duvidasse.
Conto esta história que se não fosse tão trágica séria muito cômica, sabendo-se que é a mais pura das verdades, lembrando de uma toada muito famosa dos poetas José Caetano Erba e Paraíso, que me faz lembrar daqueles tempos sem um pingo de saudades, no final da história entenda o porque.
A TOADA
“Voltando ao tempo vejo mamãe preparando,
Esse ferro, assoprando as brasas do tição;
Depois passava com carinho sem preguiça
Nossas roupinhas de missa, de festa a procissão.
Olho esse ferro do abajur é a claridade
Sinto as brasas da saudade, me queimar o coração,
E o pensamento vai passando meu passado,
No tecido amarrotado de mágoa e solidão!”
Sou filho de Seu Jose D’arca e Dona Nita, morávamos na cidade de Santana do Ipanema pros lados do Bairro chamado Barragem, local tranqüilo por demais, o barulho que se ouvia era o “Rio Panema” descendo nas bueiras da Ponte da Barragem, eu tinha por volta de uns dois anos e pouco de idade lutando para chegar aos cinco, com um currículo de fazer inveja, driblei a morte todos os santos dias, aliais, os santos quem me livraram da morte todos os dias, depois das diarréias, febres, desnutrição, sarampo, catapora, varíola, tosse braba, papêra, icterícia, anemia, etc. etc. etc., todas as doenças curadas graças aos chazinho de minha santa mãezinha, de quem eu tanto me orgulho.
A medicina popular que tudo cura, tem suas raízes no conhecimento do povo, fruto de experiências realizadas nas cobaias humanas, o sertanejo procria mais do que mocó, se morre uma cria, “tem problema não, noís faís outro”, e cobaia e o que não falta, eu mesmo fui cobaia de algumas dessas experiências, algumas deram erradas, porem minha Mãe sempre tinha outra pra concertar a primeira, se nada desse certo ela fazia uma reza complementar, então tudo se resolvia em nome da fé.
Em uma tarde de domingo de quase década de 60, minha mãe olhava por sobre a janela a cada instante em que alisava o Ferro de Brasa sobre a peça de roupa militar de meu Pai, de lá avistava a famosa Ponte da Barragem, orgulho do sertão, passagens de todas as almas, aguardava pela visita de sua irmã, minha tia Zezé, a qual vinha dá uma mãozinha nos afazeres da casa, ajuda mais que necessária, logo, logo estaria vendo os cabelos negros da mana esvoaçar ao vento da ponte. Dona Nita, lavava, passava, cozinhava, arrumava a casa, limpava a bunda dos filhotes; eu e minha irmã mais velha, isso depois de ter perdido um filho que nasceu depois de mim, não teve a mesma sorte, morreu de um banho que tomou e um vento que deu, pronto pluft deu um negocio e o menino morreu, mais ela já estava grávida novamente, naquela tarde de domingo ela passava ferro na Túnica de meu Pai seu Zé D’arca, policial militar. Túnica era o fardamento usado naquela época, tinha uns quinze quilos de pano, uns três de botões e um quilo de linha zebra, era confeccionada de uma “lona” de cor cáqui, o qual chumbo de espingarda soca-tempero não perfurava, para dar um aspecto nobre a passadeira tinha que gastar uns dois quilos de goma, a bicha tinha que ficar bem “engomada” no sentido exato da palavra, a calça do fardamento era umedecida em goma e o teste era ela ficar em pé sozinha, desta forma estava pronta para passar o ferro. Dentre outras atividades inerentes a esposa de militar aquela era com certeza a mais penosa, pois “O Cabra” tinha que se apresentar com esmero, o fardamento era o painel de frente do soldado. Lembro muito bem de minha Mãe fazendo aquela seção de engoma com muito esmero durante muitos anos.
O ritual transcorria normalmente, eu deitado no chão à brisa que vinha da serra, minha mãe alisava a roupa com o Ferro de Brasa, soprava pelo fundo do ferro que a fumaça subia, mais tinha um momento em que ela o colocava no beiral da janela para esquentar ao vento. O Ferro de Passar era uma caixa de ferro fundido movido a energia de carvão, era necessário técnica especial para que instrumento funcionasse, depois de passar alguns minutos à janela o bicho se reabastecia de calor ,o cimento do local onde estava depositado o ferro ficava vermelho em brasa.
Tia Zezé chegou sorrindo, alegria contagiante na juventude de seus quinze anos, eu era o sobrinho primogênito sobrevivente preferido, apesar das mazelas contraídas naquela longa vida no sertão, ainda estava lá, respirando sufocadamente, vencendo mais uma doença “o cansaço” mais conhecido hoje em dia como asma. Todo ser humano é dotado de cabeça, tronco e membros, eu era dotado de cabeça com o resto do corpo apregoado, não existem fotografias minhas daquele tempo de bebê, pois eu só tinha “zóio”, “zurêia” e “zôvo, não havia motivo para registrar aquele quadro. No entanto minha Tia Zezé me achava lindo, lindo, lindo... assim que entrou na sala me pegou ao colo envolvendo-me naquele metro e meio de cabelo preto-lizo que batia na bunda, dizendo: “mais que coisinha lindinha de morrer”, me beijou na face, levantou-me aos céus como se estivesse me entregando a Deus e se dirigiu a janela e repetiu coisinha linda de morrer e me colocou sentado no peitoral da janela, até aí tudo bem, se não fosse no local de apoio do ferro de brasa o qual minha mãe o havia retirado num instante atrás. Foi um grito tão grande que a ponte estremeceu, o rio Ipanema chorou como uma mãe chora ao filho que perdeu, foi um dor do Cabrunco, foi então que desmaie, minha mãe correu a acudir me tomou nos braços e meteu água, mais o estrago já estava feito.
Tia Zezé sem saber o tinha acontecido chorava feito uma doida diante do ocorrido, minha mãe explicou que sobre o ferro de brasa e o piso aquecido, tinha queimado meus “Zôvos”, a bunda e os possuído. Naqueles tempos o Pronto-socorro era a cozinha, minha mãe viu que a coisa tava feia, já começou o tratamento com a fé, rezou pra papeira-descida, fez promessa pra Sant’Ana, e tascou manteiga de garrafa, não tinha posição que me confortasse, chorei sete dias e sete noites. A vizinhança já estava ansiosa pelo dia do velório, foi aí que veio a “salvação”, coisa séria não é brincadeira, depois de mil remédios... Lavar com água de sete bocas pela manhã, creme de bosta de piaba, pasta de raiz de catingueira rasteira, cêra de ouvido, etc., etc., etc... Apareceu uma nova receita, (PRONTO A SALVAÇÃO) - Dona Nita a senhora já colocou cabelo de gato nessa queimadura? “num tem remédio mió”. Pergunto Dona Menina, - Õxente, isso é besteira. Respondeu Dona Nita, naquela mesma noite seu Zé D’arca, pegou o gato angorá que andava querendo comer seus passarinhos, e trouxe pra ela, minha mãe costureira de mão cheia, versada na arte da tesoura não teve dificuldade para pelar o bichano
Aplicando o remédio: Colocou-me de bunda pra cima com as pernas abertas, minha mãe apanhou um punhado de pêlo de gato tascou em cima da queimadura, abrangência de toda parte baixa e entre pernas, a pomba e o ninho de seus ovos, nádegas, bunda e pernas tudo em carne viva, a ossada aparecendo. O resultado não poderia ser outro se não uma coleção de dor, cada pêlo apregoado na ferida era como um espinho penetrando no coração, se eu não morri da queimadura iria morrer do tratamento, foi mais sete e dias e sete noites de choro incessante. A dona da receita apareceu e vendo a bagaceira esbravejou... - D. Nita que “miséra da gota serena é essa “mulé, era pra torrar o cabelo do gato, bater no pilão até virar pó, colocava uma pitada em cima da queimadura”. A orientação chegara tarde, eu agonizava, cada mijada era dor de trezentas gonorréias, defecar nem pensar, também não podia comer para não cagar... pronto se por acaso sobrevivesse da maleita morreria de fome. De novo D. Nita no seu instinto materno instituiu um novo plano... retirar todos os pêlos a base de pinça de sobrancelhas, mais eram muitos, pra mais de um milhão...quando foi sacado o último pêlo eu abri os olhos, foi sinal de sobrevivência, não teve mais remédios experimentais foi só a goma de passar e água do Ipanema pra lavar a ferida, quando completei cinco anos já estava vestindo calção, a única seqüela que fiquei foi uma dor nas pernas, uma agonia de lascar nos pés subindo pros joelhos descendo pros calcanhares, mais minha santa mãezinha resolveu com um santo remédio: uma fogueira de sabugo de milho, deixava queimar até ficar preto bastante, depois jogava um balde de água, nessa hora eu colocava o pés no vapor...ôxe fiquei curado que só vendo, quanto aos “zovos” nem cozinharam nem ficaram fritos não sei como...só sei que quando tinha doze anos minha mãe subiu a serra do cruzeiro comigo enganchado nas suas costas e fomos a missa de Santana... paga a promessa de minha mãe .Por isso que eu digo: sertanejo além de forte tem cunhão de chumbo se não a raça se extingue, já passei dos cinqüenta anos. Em razão dos “conhecimentos medicinais” de minha querida mãe, e as graças de Senhora Santana fiquei curado e os “Zôvos” novinhos da silva, criaram um couro duro danado, que só rasgaram-se quando fiquei pendurado pelo saco no prego de colocar o Lampião do Posto da Corrente (Fiscalização da Fazenda), mais isso é outro historia depois conto.
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