Nos tempos idos de Santana do Ipanema, os primeiros sinais de que o natal se aproximava, era inicialmente percebido na igreja. Durante os sermões, o padre avisava que se encerrava o tempo comum com a chegada do advento. Tempo de preparação para a vinda do messias. Nada dessas explicações, nem o altar tingido de roxo, tinha a menor importância para os meninos que iam pra igreja muito mais por imposição dos pais. Gostavam desse tempo por conta do presépio. O retratar da cena do nascimento de Jesus. Os camelos ricamente ornados, as ovelhas branquinhas, o boi e o jumento, os reis magos. O olhar de admiração dos meninos, ora repousava sobre o da manjedoura, ora sobre o anjo perto da estrela de Belém, a boca sempre dizendo ó, com os olhinhos num misto de resignação e espanto revirados pra cima. Eram assim como se encontrava os deles, naquele momento. Só muitos anos depois, entenderia que o amigo alado, que no lugar de pernas tinha nuvem, pronunciava o glória. Ou será que se iniciava a dizer hosana?
A cidade pouco a pouco ia remodelando seu cenário. As árvores do passeio pareciam revestidas de um verde mais exuberante. Os pardais alvissareiros pipilavam nos umbrais dos prédios. Em casa também mudanças iam se fazendo. Inácia, a empregada, tinha seus afazeres redobrados, lustrar os móveis, arear todas as peças de alumínio da cozinha, encerar todo o cimentado. Lavar e engomar o terno branco de papai pra missa do galo. Feito uma bola de algodão resplandecente, as vestes solenes expostas ao sol pra expulsar o cheiro forte de naftalina. Há tanto tempo guardadas, usadas pela última vez no batizado de Silvano, o caçula. De velhas caixas de papelão empoeiradas guardadas na dispensa saía nossa árvore de natal, as bolas coloridas, uma gravura de um papai Noel sorridente de bochechas rosadas. E uma guirlanda que me lembrava tia Maria. Lembrar-me-ei toda vez que vê-la, porque teve um ano que ela ajudava a montar a lapinha e enquanto segurava aquela guirlanda, tia Maria desmaiou. Foi levada pra Maceió, e teve que ficar internada. Natal e ano novo na Santa Casa, tinha rubéola. Acordados de sua hibernação de um ano, lá estavam os animais da lapinha. Tio Antonio em outro natal me contara uma história sobre os animais do presépio, coisa que eu não esqueceria jamais; a galinha castigada por ter ciscado o capim da manjedoura, ficaria assim com pés tão feios. O cabrito por comer da relva da gamela messiânica, teria por castigo apetite insaciável. O menino Jesus como qualquer menino traquino, fez das suas, fixaria com jato de mijo, uma cruz no lombo do jumento, e os pelos do queixo do bode com um puxão dar-lhes-ia barbicha.
Toda véspera de natal uma festa em família. Embaixo de um frondoso trapiazeiro detrás de casa, gambiarra e mesas. Os meus tios vinham de muito longe participar, pareciam os três reis magos, Belchior, Baltazar e... esqueço-me toda vez o nome do terceiro, mas ao ver tio Gerson, lembrava-me de Gaspar por causa do “G”. Tio Enéas esse ano, não veio do Rio. Sempre havia de ter um leitão grelhado inteiro. Antes da ceia, uma oração, e abria-se um champanhe. E por toda a noite, se bebia muito vinho. Os pequenos só podiam tomar groselha e comer as rabanadas, que depois de orvalho da madrugada ficavam moles e enjoadas. Um queijo fino, que vinha em uma lata redonda e vermelha era servido em pequenos cubos alfinetados com azeitonas. A lata vazia Seu Fernando depois usaria pra encher dágua as ancoretas no Ipanema. E aquela sobra do natal ficaria por muitos anos pendurada na cangalha do jumento de Seu Fernando.
-Papai porque a missa do natal se chama missa do galo?
-Vocês repararam a imagem de Nossa Senhora tinha cabelos de verdade, dizem que foi uma promessa que uma mãe desesperada fez pela doença da filha, deu o cabelo da menina em dádiva pela graça de uma cura alcançada.
Papai não respondeu por que a missa chama-se missa do galo. Só, muitos, muitos anos depois o mistério se dissiparia. Se papai tivesse aqui eu contaria pra ele. Por tempo, pensou que as pessoas levavam galos pra igreja, numa celebração entrecortada vez outra pelos magníficos cocoricós. Quando foi pela primeira vez, achou cansativo acompanhar à tão reverenciada missa do anunciador de aurora, especialmente pra quem tinha o dia tão, tão cheio. O cheiro de incenso parecia dar ainda mais sono. Nunca mais, mesmo crescido, tal impressão o deixaria. Lembrava a cama fofinha, a mamãe penteando os cabelos ainda molhados, colocando alfazema. Cantando canção natalina. As velas acesas tremulavam com as vozes do coral que recitava a ladainha.
Ave Maria, gratia plena, sancta Maria, Maria, ora
Pronobis, nobis pecatoribus, nunc, et in
Hora mortis, in hora mortis nostrae
Amém, amém
Seu Leôncio tinha uma loja de roupas e sapatos no início da Barão do Rio Branco. Por essa época ele tirava os manequins da vitrine e ali montava um presépio, o mais bonito que Santana do Ipanema já vira. Perto da loja de Seu Leôncio ficava a padaria de Seu Álvaro, que era viúvo e tinha três filhas. Três mocinhas. Sempre, no natal as três meninas com seus lindos rabos de cavalo bem cuidados, vestiam vestidos de estampas e cores iguais. E lá iam as três, com seus novelos de algodão doce cor de rosa na mão, olhar a vitrine do presépio da loja de Seu Leôncio.
Noite Feliz...
Fabio Campos 30/11/2010 É Professor em S. do Ipanema- AL.
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