Jorge foi um menino gordinho, tinha ódio da gozação dos amigos, inventavam apelidos: barril de chope, bolinha, barriga de merda, balofo, baleia, banhudo, cevado, entre outros. Ele bufava de raiva. Em casa sua mãe dizia ser inveja, não importasse, e enchia-lhe de comida. No futebol quase não corria, pança avantajada, pernas gorduchas, ninguém o queria no seu time. Era uma criança infeliz, achincalhada, humilhada por todos os amigos.
Como em toda turma, havia um jovem metido, o mais esperto, o mais forte, Zé Dalmo era ídolo da moçada, era o cara. Com 14 anos tinha corpo de adulto, brigão, metia medo nos menores. Acontece que despertou ainda cedo em Zé Dalmo uma atração sexual por meninos, quem bobeasse, ele traçava. Certa vez chamou o gordo Jorginho para dar um passeio pela praia. Quando andavam pelo calçadão, no escuro, ele alisou, quis agarrar o gordo, derrubou-o no chão. Jorginho num impulso levantou-se, atravessou a rua, entrou num ônibus. Nunca mais falou com Zé. O assédio ficou como uma mágoa odiosa no coração e na mente. A partir desse dia tornou-se mais triste, mais amargo.
O pai de Jorginho, gerente do Banco do Brasil foi transferido para o Rio de Janeiro. Jorge estudou em um colégio em Ipanema, ao sentir a mesma gozação, gordinho, pediu ao pai, precisava emagrecer. Seguindo as orientações do médico, com força de vontade, Jorginho emagreceu, pegou corpo atlético, passou a ser freqüentador das garotas nas praias do Arpoador e de Ipanema, tornou-se um grande mulherengo. Gostava de matemática, empregou-se em uma corretora de valores, depois de alguns anos era homem rico. Teve vida amorosa atribulada, muitas mulheres, vários filhos.
No início dos anos 2.000, retornou à cidade onde sobreviveu a infância roubada pelas chacotas dos amigos, nunca teve saudade daquela época, o gordinho, o barril de chope, o menino achincalhado e assediado. Entretanto, fez questão de rever seus lugares, seu colégio, a praia onde apreciava as meninas de maiô. Encontrou alguns amigos, surpreenderam-se, o gordinho transformou-se num homem bem vestido, boa aparência. Resolveram convocar outros colegas de infância para um almoço em torno de Jorge. Em uma bela tarde de sábado conseguiram juntar oito amigos. Muitos abraços, relembraram as gozações em cima do gordinho, o que fez aflorar em Jorge o sentimento de raiva recalcado, ele tentava achar graça, entretanto, no fundo, tinha rancor das humilhações da infância. De repente apareceu Zé Dalmo, com o peso da idade, do álcool e da droga, manifestado em sua aparência, um velho gordo enrugado. A tarde se passou com muitas histórias contadas por Jorginho, o jeito malandro de ser, carioca típico, muito conversador, muitas mentiras. Ficaria na cidade até segunda-feira, estava hospedado em um hotel na praia à disposição dos amigos. Apesar de tudo, foi um encontro alegre, Jorginho se sentiu vitorioso, mesmo com as lembranças da infância perdida.
Pela manhã do domingo, na piscina do hotel, Jorginho pensava na tarde anterior, estava de alma lavada, os amigos de infância, admirados, com a metamorfose do gordinho medroso num homem poderoso, rico e elegante. De repente, um recado, estava na portaria Zé Dalmo. Ele foi ao encontro. Cumprimentou-o, foi apresentado aos dois netos e à esposa, uma bela coroa, conservada, o vestido fino mostrada o corpo sensual.
Zé Dalmo pediu um particular. Deixou a mulher com os netos brincando na grama, passearam conversando entre os coqueiros da bela área de lazer. Zé Dalmo foi direto, tinha um grande negócio, precisava emprestados R$ 20 mil, dava como garantia uma casa no valor de R$ 150 mil. Tinha urgência nesse dinheiro para segunda-feira. Tudo mentira, era grana pagar dívida de jogo e de droga, estava metido até o pescoço em jogatina. A garantia da casa era fajuta. Jorginho pensou, olhou ao longe a mulher de Zé Dalmo brincando com os netos. Pediu mais algum tempo para decidir; ele viesse às cinco da tarde. Zé Dalmo e a mulher, sozinhos.
À tarde tomando um uísque na beira da piscina, os três reunidos. Depois de uma conversa divertida para quebrar o gelo, Jorginho foi contundente.
- “Empresto esse dinheiro. Sei que jamais receberei a dívida, conheço todos os tipos de caloteiros. Mas, tem uma condição - apontou para mulher – Se você dormir comigo hoje. Amanhã retorno ao Rio, fica como nada tivesse acontecido”.
Na segunda-feira, Zé Dalmo livrou-se da dívida das jogatinas, e Jorginho, o gordinho, acabou de vez com o recalque renitente. O amargor da infância perdida nunca mais aflorou em sua mente; apaziguou seu coração.
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