Não acreditava no que estava acontecendo, aliás não queria acreditar. A verdade era que ele estava morrendo. Precisava aceitar aquela realidade, por mais absurdo que pudesse parecer. Tudo começou com uma pontada no peito, bem do lado do coração. E foi aumentando. Estava tendo um ataque cardíaco. A causa de sua morte por certo, um enfarto fulminante do miocárdio. Ali em plena madrugada, enquanto assistia a tevê, por certo adormecera e agora acordava morrendo. Já habituara-se a assistir filmes, todas as noites e em todos eles pessoas morriam, tão comum já tornara-se ver mortes. Fosse ela natural, por acidente ou mesmo um assassinato. Retratada em filmes, romances, contos, tantas, que lhes parecera às vezes, até poética. Naquele momento em que estava ele morrendo, (a morte) nada tinha de poética.
Era real e agora mesmo ele estava morrendo. Morrer é um fato muito relativo, dizia um filósofo que um dia lera, pra ele (o filósofo) há pessoas que parecem mortos-vivos, falta apenas que alguém as avise de tal condição. Biologicamente talvez seja menos complicado explicar a morte, pois sob a ótica da biologia a morte está em nós desde que nascemos e nos acompanha pelo resto da vida. O coração uma bomba de músculos em contagem regressiva expande e comprime sangue. Células nossas morrem a todo instante, e daí já é morte, parcial, mas morte. Sob a visão religiosa morrer e uma condição metafísica. Não passaria a morte de uma passagem, de um estado ou estágio para outro. Naquele momento para ele, a morte nada tinha de metafísico, nem de biológico muito menos de religioso.
Bom, a verdade é que estava dormindo no meio do sono acordou-se, pois estava morrendo. É até engraçado, ninguém acreditaria se ele contasse, é claro que só poderia contar se não estivesse morrendo. Talvez um dia pudesse dizer a alguém:
- Você acredita que esta noite eu estava dormindo e me acordei porque estava morrendo!
Ora, então cai por terra aqui aquela teoria de que alguém possa morrer dormindo. Não ninguém morre dormindo, quando a morte está chegando acordamos. Sem necessariamente precisar abrir os olhos, apenas vem a consciência de que não mais dormimos. Quando digo ‘quando a morte está chegando’, não me refiro a nenhuma entidade personificada. Não senhor, nem pense que a morte é aquele esqueleto encapuzado trazendo à mão uma enorme foice como na carta de tarô. Nada disso.
Mas que morte mais sem graça estava sendo essa sua. Aliás, morrer não tem graça nenhuma. Lembrou-se das diversas orações que guardava pedindo uma boa morte. Nas orações pedia pra morrer de morte natural. E por acaso tem coisa mais natural do que morrer na cama no meio do sono? Será que estava arrependido de ter pedido esse tipo de morte? Analisou e pensou se ele merecia aquele tipo de morte mesmo. Heróis morrem combatendo. Deve ser lindo morrer em combate. Ora, mortes trágicas são tão traumáticas! Não é nada bacana derramar sangue. Morrer acidentado, ou de facada ou de tiro. Poxa, deve doer pra caramba! O americano Samuel Colt revolucionou o conceito de morte com a invenção do revólver. Põe-nos a pensar como é possível azeitonas de chumbo arremessadas com determinada propulsão de pólvora explodida, ser capaz de, por minúsculos orifícios num corpo pelo impacto, força e intensidade, causar danos a órgãos vitais e por conta disto ocasionar a morte.
O próprio Jesus Cristo teve morte trágica, dolorida. Dizem os cientistas que a causa mortis dele teria sido asfixia. Devido a posição que se encontrava de braços estendidos suspenso apenas por pregos. Eu diria que também porque não resistiu aos ferimentos. O mesmo Jesus que ressuscitou a tantos. Àquela menina ele disse aos pais, ela apenas dorme e lhes trouxe de volta à vida. Os familiares de Lázaro se maravilharam, pois aquele já havia dias que falecera, o corpo já em decomposição. Por que é bíblico o ditado: “ vieste do pó e ao pó tornarás”.
Que dia era aquele? Não queria morrer perto do aniversário da filha, pra que ela não se entristecesse naquela data. Muito menos queria morrer em dia de carnaval. Já pensou estragar pra seus familiares uma festa tão vibrante, ele próprio gostava de carnaval que chato seria pra os que ficariam se entristecer quando lembrassem que foi num dia como aquele que ele morrera. Sabia agora que era assim, desceria ao túmulo colado naquele corpo que lhe acompanhara a vida toda. Não sentia mais cheiros. No velório tem aquele cheiro nauseabundo de laranja-lima e alfazema. Nem calor, nem o incômodo aperto claustrofóbico do caixão e da escuridão do túmulo, nem as insistentes moscas e formigas que passeariam pelo seu corpo.
Preocupava-o pelo menos três coisas com relação à morte. E nem era se ia pro céu ou pro inferno. A data do evento era uma delas, não queria morrer em datas festivas. Um dia bom de morrer é em dia de finados ou ainda na semana santa, quiçá num dia triste do mês de agosto. No inverno é fúnebre mas é também romântico descer a tumba, uma chuvinha fina, propicia um estado de clima providencial a cena. Pensava também na rigidez cadavérica, pois se estava morrendo dormindo, lembrou-se de suas ereções penianas involuntárias. Quão ridículo seria pra os familiares sem conseguir acomodar o defunto na câmara mortuária, por estar pronto pra um ato sexual. Outra preocupação seria:
- E se lhes saísse vermes pelo nariz?
Já ouvira vários casos de crianças e até mesmo adultos estendidos no esquife, à sala de velório, e as pessoas escandalizadas com a cena mórbida, melhor recomendar em vida que lhes coloquem chumaços de algodão nas narinas. Sabia também de casos em que o morto soltara arrotos e até flatulências, alguns só quando vestiam-lhes as mortalhas.
Tinha um conceito próprio de morte. Pensava que morrer era apenas um deixar de respirar, um deixar de bater o coração, um deixar de ver. A vista escurecendo, escurecendo, até cessar de vez sua capacidade de perceber as coisas de enxergar pelos olhos. Bem como perder a percepção dos sons, um estado letárgico e finalmente o nada. E daí viria o vislumbrar de uma visão, não através de uma par de “janelas” chamadas de olhos, mas de todo o seu ser (no caso aqui a alma) que visualizaria por todos os ângulos. E ela veria uma luz intensa no final de um túnel. Luz essa que iria se aproximando, aproximando e lhe envolvendo, pois já não há mais corpo aqui, e a alma seria arrebatada por essa luz para um lugar onde havia seres de luz, muito embora ninguém falasse nada, pois todos já sabiam e entendiam o que havia ocorrido. Bom era essa sua idéia de morte. O mais interessante, é que essa sua idéia não correspondia à realidade do que era a morte. Estava acontecendo com ele naquele exato momento. E era outra coisa totalmente diferente do que ele pensava. Nada parecido também com aquelas histórias de que a alma saía do corpo e que nós conseguimos ver as pessoas em volta do nosso corpo inerte, enquanto a alma da pessoa morta ia subindo, cada vez mais alto em direção a uma luz vinda de cima.
Nascer não teria sido tão fácil, embora pouco nos lembramos de tal ato. Com a morte do mesmo jeito, nada nos lembraremos pra contar. Qualquer coisa dita ou escrita sobre o ato de morrer é mera especulação, pelo medo que temos do desconhecido. Pra quem ainda permanece nesta vida as recordações são parte desse estágio. Pra quem se foi não. E em vida fora feliz? Fazer balanço a essa altura do campeonato talvez seja a coisa mais inútil pro momento, mas se serve de alento só naqueles momentos de entrega total a vida. E diga-se de passagem foram muito poucos o que se viveu realmente. O destino da minha alma caro leitor, disso nada posso dizer pois acabei de morrer. Sei que descerei a mansão dos mortos. Acreditamos que assim como Jesus Cristo, o filho de Deus, por dias ali permaneceremos até vencermos a morte como ele venceu. Até a próxima oportunidade se me for permitida novamente estar com vocês pra contar.
Fabio Campos 28/06/2010 É professor em S. do Ipanema – AL.
Contato: fabiosoacam@yahoo.com
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