QUEM COMEU DOM PERO FERNANDES SARDINHA?

Crônicas

Por Goretti Brandão

A história da fome alagoana na tragédia moderna de Sávio de Almeida

Em Maceió, sobre o pequeno palco do Teatro de Arena, as personagens vão surgindo protegidas pela iluminação escassa. Antes, um também pequeno coro, posiciona-se no lado direito de onde as cenas se desenrolarão. Belas vozes, belo canto, que nos remete ao passado. A peça Comeram Dom Pero Fernandes Sardinha, escrita pelo historiador e dramaturgo Sávio de Almeida, é debulhada a nossa frente. No primeiro instante e para além dele, há o apelo alegórico nas figuras do folclore alagoano, que trazem cores e alegria para o palco. A luz faz o papel das cortinas. Ora clara, ora dissimulada, busca para a cena, silhuetas que se transformam em personagens .

Entre alegorias e belíssimas metáforas, a vida áspera dos excluídos das Alagoas desfila diante dos nossos sentidos. Esse destino que faz um só, os caminhos da fome e da miséria. São quatro pequenas histórias, diria então, situações, onde ficam desnudas as relações entre o homem e a natureza, o homem e o patrão, o homem e o viver pontiagudo, sob o fio da navalha do cotidiano difícil, até convergir para a personagem central: a fome. A fome debaixo do sol no semi-árido, a frente do nariz empinado do dono da terra. A fome, que migra do corpo para a alma dos homens e envenena as relações. A fome que faz o marido jogar na mulher toda a sua amargura e frustração.

Mas a mim, logo de entrada, na primeira cena, Sávio realiza com toda pujança da dor, a maestria da poética. A força, o esplendor do lirismo às avessas, diga-se assim, nos diálogos que acontece entre pai, mãe e filha, personagens que compõem a cena. As interlocuções entre eles, faz surgir uma dinâmica e um momento absurdamente belo, por assim dizer, de poesia cortante e inquisidora, como o é a vida àquela realidade. Na personagem que faz a mãe trazendo no colo sua filha moribunda, a lucidez das palavras, a revolta, a dor, ultrapassam aquele mundinho miserável, porque a mulher, assim como o marido, conseguem traduzir os dramas da nossa existência. À filha, os sonhos são evocados. Penosos e magníficos. Apocalípticos. Ela faz perguntas que cabe aos nossos representantes políticos responderem.

A fome, a morte e o inferno, assumem características humanas. A primeira é lamuriante, na voz da filha. De desdém, no olhar da morte; de extrema ironia sarcástica, nos meneios do diabo. Às lamúrias chorosas da fome, a plateia tem vontade de calar aquela voz que nos contamina de angústias. A personagem do anjo - como o quarto elemento -, é redentora vindo equilibrar a cena e talvez a nós mesmos, pois parece, como num último recurso, conceder-nos o alívio da fé.

Não foram os índios, mas a fome alagoana, em todos os seus lugares miseráveis, que comeu o bispo Dom Pero Fernandes Sardinha. Metáforas e Alegorias. A poética de Sávio faz a história atual ser sincera.

Em cartaz até 31 de outubro, a peça, dirigida por Homero Cavalcante e com figurinos do artista plástico Edmilson Salles, vale a pena ser vista.

Comentários