Era grande o número de pessoas que se aglomeravam em frente à de Casa São Vicente. Desde a boquinha da noite que aquele vai e vem de gente se processava. Uns entravam, outros saiam. E o empurra-empurra aumentava. Todos queriam ver o morto. A sala estava apinhada. Sinhá Mercedes, impaciente, com o seu nervosismo de velha recalcada, gritava palavrões às pessoas, mandando-as ao olho da rua. Mas ninguém lhe dava importância. Suas esculhambações eram como se fossem folhas secas levadas pela ventania em tardes armadas de trovoada. Cada qual lutava por uma brechinha para dar uma espiadela ao defunto. E lá no meio da casa, estendido no cimento, estava Coleta, alumiado por uma chama mortiça do candeeiro, inchado, amarelo, de uma palidez espantosa, botando água por todos os buracos da cara, pelos ouvidos, boca, nariz e olhos. Nazinha, acocorada, fazia flexões nos seus braços e empurrava o coro da barriga, ao que se seguia um jato d´água pela boca a fora.
Coleta, de canelas esticadas, não percebia nada. Parecia num sono tão ferrenho, que não estivesse com vontade de acordar. O nevoeiro crescia cada vez mais. Os gritos de Sinhá Mercedes tornavam-se insistentes. Porém nada o importunava. Estava completamente teso. A água da barriga se esvaziara toda quando Nazinha o colocara de bruços. E quem não o soubesse morto tinha a impressão de que estava num de seus dias de cachaçadas violentas. Só que agora não conversava, não murmulhava palavra alguma, não balbuciava o nome de Alba, entre vômitos frequentes que se espalhavam sobra a sua roupa esmulambada e suja.
Pela primeira vez aquele nome de mulher estivera ausente das suas cenas representadas no chão após as fortes bebedeiras. Desaparecera para sempre. E ninguém em Santana do Ipanema conseguia desvendar o seu drama doloroso. Só Coleta mesmo conhecia sua vida e mais nenhuma pessoa ali. Somente ele sabia quem era Alba e as recordações que lhe proporcionavam. No momento, entretanto, dela conseguira se livrar. Não mais sofreria por sua causa. Para tudo há um limite e Coleta chegara aos extremos de sua tragédia. Estava livre, completamente divorciado da figura daquela mulher bela, morena de olhos verdes e carinhosa, dotada de uma maneira especial para fazer afagos, que o transtornara e a quem ele nunca pudera olvidar.
Fora numa das sessões noturnas do Cine Plaza, em Maceió, que Adroaldo a vira pela primeira vez. Com aquele seu jeito frívolo de fazer-se cercar de apaixonados, Alba conseguira atraí-lo, usando simplesmente as armas que uma mulher utilizaria para fisgar um homem, sem precisar recorrer a maiores recursos. E de repente o tem aos seus pés, amando-a com o mais ardoroso e sincero amor que se pode imaginar. Meses depois, subiram os dois ao altar, apesar das admoestações que fizeram os amigos de Adroaldo, mostrando-lhe ser a noiva uma das jovens mais faladas da cidade.
Sua primeira decepção se fez sentir quando verificou que Alba já não era “moça”. Todavia, a estas alturas, o amor que a ela dedicava constituía-se uma de suas razões de viver. E nas promessas dramáticas, nas desculpas lacrimosas, nas lastimações tocantes, nas juras de fidelidade, ele procurava reencontrar o sossego, a paz de espírito. Tudo continua ao normal. Constituíram-se um casal perfeito, bastante comentado nas rodas sociais. A loja que Adroaldo instalara na rua Primeiro de Março, com a herança do tio Juvenal, ia dando bons resultados. A renda mensal lhe possibilitava satisfazer os caprichos da esposa, que, como toda mulher vaidosa, não se contentava com nada. Queria sempre mais.
Aquela crise que avassalara todo o comércio maceioense foi portadora de más novas para Adroaldo. Suas dificuldades financeiras principiavam a se acentuar. Não tivera pulso forte para contornar a situação. Os gastos do lar atingiram extremos indesejáveis. E um clima de insatisfação começou a se manifestar quando ele recusava terminantemente a comparecer a festas, a fim de não acarretar maiores despesas. Alba não se conformou com aquela situação, tão acostumada estava à vida em sociedade. Foi-se entediando pouco a pouco. E em represália intensificava os amores clandestinos que nunca deixava de conservar, sem que o marido, ludibriado soubesse.
Adroaldo em sua fisionomia mostrava com clareza o infortúnio que o envolvia. Sua falência estava eminente. Os credores esperavam o dia de lhe confiscar todos os bens. E quando fora comunicar a ocorrência à esposa recebe o mais rude golpe que poderia suportar. A carta que Alba escrevera às pressas resumia uma verdade, da qual ele nunca ousaria suspeitar. Fizera o papel de imbecil o tempo todo, vivendo com uma mulher que o enganava constantemente. Para cúmulo da sua dor, percebe que ela nunca o amara e a única coisa que a fascinava era o seu dinheiro. Mesmo assim ele a adorava ainda, e a perdoaria se voltasse a viver de novo ao seu lado. Alba avionara para o Rio com um amante rico, que lhe daria todo o conforto, agora impossível ao marido.
Fracassado totalmente Adroaldo envereda por caminhos escabrosos. Para esquecer tudo, procura lenitivo na bebida. Utiliza o álcool para fugir à realidade e nunca mais a ela voltar. Transforma-se subitamente num peregrino, vivendo de déu em déu, tendo como amigo inseparável um copo.
E logo depois disso Adroaldo chegou a Santana. Bêbado tremendo, rasgado, em cima de um caminhão procedente de Palmeira dos Índios. Pouco a pouco foi se tornando figura conhecida, por nunca ter sido encontrado, senão ébrio. Vivia perambulando pelas ruas. De bodega em bodega, de bar em bar, a solicitar um copo de cachaça. A turma de desocupados da cidade, que leva o tempo alisando os bancos dos bares, passou a utilizá-lo como meio de brincadeiras. E fazia coletas de dinheiro para pagar o seu grogue, com a condição de competir na beberagem com Camilo, outro cachaceiro famoso da localidade. Sempre vencia o páreo. Se bem que depois, à noite, fosse encontrado dormindo pelas calçadas, ao relento, muitas vezes suportando as chuvas finas que gostavam de cair pela madrugada.
Nunca ninguém soubera o seu verdadeiro nome e procedência. Conheciam-no apenasmente por Coleta, alcunha que a maloqueirada de Santana lhe havia atribuído, desde que as arrecadações para o pagamento da sua bebida se tinham tornado frequentes, quase sempre no café de Antônio e no bar de Maneca, sob as algazarras da rapaziada.
Naquele sábado, desde a manhã, Coleta bebia. Andara por todos os botequins e toldas da feira. Do bar de Miguel da Maravilha à venda de Oséas. Os botequins da rua Nova, do Sebo e Camoxinga ele também percorrera. E à tardinha, cai aqui, levanta acolá, encontrava-se no beco de São Sebastião, em rumo ao Ipanema, fugindo de uma corja de maloqueiros, que o importunavam, dirigindo pornografias bem pesadas.
Momentos depois o seu corpo, numa rede, era levado para a Casa de São Vicente. A população se alarmou com o acontecimento e o lamentou bastante. Não fora Pedro Baia, que estava perto do Poço dos Homens e vira quando Coleta tropeçara numa pedra e caíra n´água, a ocorrência não teria sido pressentida tão logo. Os esforços de Pedro para salvá-lo foram em vão. Quando mergulhou e conseguiu agarrá-lo pelos cabelos, voltando à tona, já não havia mais remédio. Coleta estava morto.
E agora ali encontrava-se ele, alvo da curiosidade popular. Pelo menos se libertara da imagem de Alba que o acompanhara por todo o resto da vida. Bebia para esquecer e procurando esquecer morreu.
No dia seguinte, logo cedinho, o caixão da caridade descia pela rua do Velame, levado pelos varredores da rua. Como o dia não tivesse amanhecido de vez, o féretro passou despercebido. Só as mulheres da gandaia de Artur Morais, meio ressacadas, prolongando as orgias da noite anterior, acorreram à porta quando o enterro percorreu a rua do Fogo, em passo apressado, pois outro cadáver, esperava na Casa de São Vicente para ser levado ao cemitério.
(*) Conto publicado originalmente no jornal O Curso. Recife, Curso Torres (1960) e republicano no livro “VESTÍGIOS DA TRAVESSIA – Da Imprensa à Internet – 50 anos de Jornalismo” editado pelas editoras EDUFAL e PAULUS – 2009.
Comentários