BURACO DE ENTULHOS

Contos

Goretti Brandão

A cama onde durmo não me serve. Levanto com todas as articulações doendo.
Hoje olhei o dia pela janela. Faz um solzinho frio, e a paisagem é calma. Notei uma borboleta de um amarelo-quase-ocre, com lindas listras pretas, cumprindo fielmente a sua natureza de invertebrado. Tive um desejo enorme de ser inseto, de encher as patinhas de pólen, de voar de flor em flor, por entre as buganvílias aqui de casa. A Deus, o maior mistérios entre todos os outros, tenho o hábito de pedir, porque já é um hábito que a minha avó, sabida, me ensinou: Ô Margarida minha filha, a Deus a gente pede é o dom da sabedoria, assim como fez Salomão! Foi o rei mais sábio da Bíblia!. Foi mesmo, vovó?. Levei a vida toda só insistindo: Ô meu Deus, me dê sabedoria, vá... Acostumei. Todo dia, de chuva ou de sol, que nem o dia de hoje, claro, iluminado e cheio de borboletas, chateio Deus pedindo o precioso dom. Minha avó deve estar lá, pertinho Dele, vendo que eu, que me esforcei o tempo todo, desde pequena, para não desapontá-la, continuo 'implorando' a mesmíssima graça. De uns dias para cá, uma pessoa, aqui bem dentro de mim, com a mesma voz da minha avó, me disse assim: Ô Margarida, agora peça paciência. Me assustei. Pensei, pensei, e sondei a voz que me falava. Fechei os olhos e mergulhei por mim, entrei no meu silêncio. 'Ah! Meu Deus, que eu encontre o caminho da voz que me fala, porque tenho medo de cair em labirintos e não saber voltar' É verdade, dentro de mim tem muito lugar que não conheço, mas me aventuro na benevolência do Altíssimo, toda vez que vasculho as coisas do meu silêncio. Há em mim grandes salões escuros. É deles que vêm a maioria das vozes que me desafiam. 'Ô Margarida, peça paciência'! Logo eu, que desde menina peço sabedoria?. Lembrei do meu amigo, frei Toinho, que quando soube da minha devoção à Santa Rita, ficou vexado, me chamou num cantinho da igreja e disse assim: Margarida, aqui pra nós, aceita conselhos? Troque de devoção. Outros santos podem interceder por você, sem cobrar tão caro. Como assim? Que tal Santa Teresinha do Menino Jesus? Santa Rita intercede, mas o devoto sofre muito. Padece como ela padeceu. Desconfiei de frei Toinho, meu grande amigo, doido por Santa Teresinha como ele é, e eu sei. Desconfiei da sua voz, da sua interferência na minha confiança à Santa Rita. Olhei bem no fundo dos olhos dele, tentando ver o inimigo, mas não vi. Me falta discernimento para enxergar, na hora, as investidas do mal. Também não arrefeci: Frei Toinho, sinto muito, mas não posso. Santa Rita e eu nos conhecemos há muito tempo. Não posso acabar assim a minha devoção, sem mais nem menos. Não posso. 'Você não precisa largar a santa de uma vez. Vai deixando aos pouquinhos, devagar'. Nessas horas, se não me vem intuição, se o meu coração rejeita a idéia, finco o pé. 'Isso eu não faço' Fui pra casa indignada. No caminho, tentando me distraí, olhei as frondosas árvores plantadas nas praças, olhei as flores brancas silvestres, as formigas, o céu azulzinho cheio de nuvens. 'Assim como não foi impossível curardes uma ferida em cinco minutos. Nada para vós é impossível' Ô Santa Rita, me perdoe por essa dúvida que agora me achata. Estimula-me a possibilidade de sofrer menos. Fui picada pelo desejo de ser feliz sem pagar tributo. Sou pequena, sou influenciável. Não duvido que tenho um monte de sabedoria acumulada de tanto que incomodo a Deus por ela, mas não sei em que parte de mim, meu tesouro está guardado. Sonho encontrando pérolas, turquesas, anéis brilhantes, em buracos cheios de entulhos. Estou numa pequena igreja vazia, sem altar, sem imagens, toda forrada de ouro puríssimo. Em meus sonhos sei onde está o que Deus me concede. As dores nas articulações entrevadas e o dia amanhecido, me fazem perder esse lugar. A vida me enche de dúvidas. Frei Toinho me encheu de dúvidas. A minha condição humana é maleável, plantada em areia movediça, ela me coa, sozinha, na peneira dos conflitos. Sou mero pó de café no fundo do coador. Minhas certezas escoam no decorrer das horas.

É isso ou aquilo? Felizmente aprendi a suportar a tensão dos opostos. Aguardo a solução, impaciente, sofrendo como bicho encurralado. A acreditar que tenho a sabedoria, me habilito a crer nela e que virá em meu socorro. Sou nadinha, mas do meu vazio, Deus me fala enquanto observo as borboletas. Voltei do meu silêncio com a resposta. A fala mansa, feminina, na voz da minha avó, é divina. Reconheço. 'Peça paciência'. Foi assim, parecido com isso, que entendi a minha devoção à Santa Rita. O recebimento acrescido ao sofrimento é graça de Deus. E dobrada. É no conflito, que Deus me diz quem sou, e quem posso vir a ser. É essa a prestação que me cobra a santa dos impossíveis, porque me possibilita experimentar a minha própria condição de necessitada. A chave do impossível é um buraco de entulhos cheios de pedras preciosas. É o jardim onde florescem as pérolas, turquesas e anéis da sabedoria. É o lugar da condição do possível. 'Ô Meu Deus, não posso aceitar o meu destino como sina. Me ensina, a partir da minha ansiedade rude de gente, a tecer o mais sincero bordado da paciência'.

Turquesa, anéis ou pérola, quaisquer que sejam, vindos dos sonhos, é nesse dia de hoje, borboleta voando ao redor das buganvílias. É o símbolo da sabedoria que delicadamente visita o meu jardim e me dá ânsias de ser leve e boa. É sobre os entulhos que Santa Rita passeia dizendo "Oh amado Jesus, aumenta minha paciência na medida em que aumenta meus sofrimentos".

Tudo é tão suave e tão pesado. 'Ô vovó, porque a senhora tinha que me iniciar nos caminhos misteriosos de Deus'?

Comentários