Não foi sem-mais-nem-menos que Violeta recorreu aos antigos álbuns de família. Há dias ela andava procurando achar-se. É que vez por outra a gente se perde da gente mesmo. Foi atrás de um banquinho, colocou-o diante do guardarroupa - ficou muito estranha essa palavra -, subiu, e alcançou suas memórias. Coisa imagética, pontuou, dando novidade à palavra. Memória fotográfica. Melhor, memória imagética. Aprumou-se então. 'Hoje em dia é preciso reciclar até as palavras'!. Lembrou-se então de algumas delas que lhe ocorriam, e que para ela, desgraçadamente, haviam saído de uso: ligeiro, creme rinse, rodeira, serviço de som, palavras que toda vez que falava, causava estranhamento e risos nos filhos. Parecia besteira preocupar-se com essas picuinhas, mas corria-se o risco de ao desconsiderá-las, engrossar as fileiras dos que estão vivendo fora da realidade.
Violeta procurava evitar termos como: 'No meu tempo'. Para ela era um "pecado" que não se devia cometer. Simplesmente porque as pessoas não têm prazo de validade. Nem devem aceitar que lhe dêem prazo de tempo. Gente não é coisa nem produto. Gente é gente. E sendo gente, há sempre a possibilidade dialética da vida. Transformações, ajustes aqui-e-acolá, novas idéias, novos rumos. Envelhecer não é ficar encostado como coisa velha e ultrapassada, sem valor nenhum, pensava ela. Assim pensando, moveu-se até o local onde estavam os seus álbuns de retratos.
O quarto era amplo, iluminado, e apesar dos móveis estarem pedindo para serem mudados, o lugar tinha vida. De posse dos álbuns, Violeta acomodou-se na cama. Embora sentada diante deles, colocou-se pela primeiríssima vez na vida toda, como quem se coloca em profunda genuflexão. Assumiu, por assim dizer, uma postura religiosamente sacramental. Ia rever o passado. Ia ver-se e aos outros. Voltaria para outros cantos por onde havia passado. Retornaria à contemplação da sua vida, o registro dela.
Não obstante, abriu cuidadosamente, e com certo receio, o primeiro álbum. Olhou para cada fotografia, pôs-se em cada circunstância, mediu-se e pesou-se para cada quilo a mais, viu-se em todos os cortes de cabelo, em cada Natal, em cada ano seguinte àquele, em cada acontecimento. Observou atenta os devaneios da moda, e os seus, dentro daquelas roupas ridículas. Ponderou acerca das antigas futilidades, justificando-se. Mas o que mais a chamou a atenção, foram os mortos. Seus parentes, amigos, vizinhos. Ao olhá-los e sem querer, ressuscitou-os um a um. Devagarzinho. Começou por ouviu-lhes os timbres e as vozes, depois seus risos, e adiante não apenas os ouviu, viu a todos e eles que se riam e conversavam. Sentiu os seus cheiros, seus abraços, suas idéias e seus segredos. De repente o seu quarto encheu-se de pessoas invisíveis. Todas saídas, quase que arrancadas das imagens.
Tudo era vivo a partir da sua própria alma. Violeta pode enfim compreender, num insigth maravilhoso, que ninguém estava realmente morto. Todo mundo vivia dentro dela. E retornava, magicamente, da sua saudade ativa, das suas lembranças vívidas, da sua memória que quanto mais lhes era fiel, mais realidade lhes trazia. A cada detalhe, os mortos se enchiam de vida, prosperavam, corria-lhes sangue nas artérias, pulsava-lhes o coração. Coravam, falavam e se riam, numa fartura crescente de vitalidade. Aqueles aos quais ressuscitara, puseram-se a falar de coisas, as quais poderiam ser classificadas como 'no meu tempo'. Porque embora ali, cheios de vida, eles não tinham novidades para contar, senão as coisas daquele dia em que haviam sido fotografados e talvez até o último encontro com ela.
Desse modo, como era de se esperar, os instantes do passado vieram à tona, depois dissiparam-se como poeira, e o que restou, perturbou e ensinou a Violeta, lá dentro, no seu espírito e em sua razão. Compreendeu que à sua memória, mesmo trazendo-os de volta, não dava-lhes as possibilidades dialéticas da vida. Foi-lhe posto um novo limiar para a consciência, daí em diante. Ultrapassar um novo portal. Atuar na vida com maestria. Fazer valer seus próprios episódios. Fazer-se na contínua história cotidiana, ainda que miúda, silenciosa e anônima. Uma coisa, no entanto, confirmara-se. É necessário reciclar as palavras, empreender jornadas heróicas em busca do que é atual, sem perder-se a si. Superar os prazos de validade que lhe estavam sendo impostos. Gente não é coisa. Gente perdura, dura, se eterniza na memória dos outros. Quando a gente se perde da gente mesmo, é quando as possibilidades de crescimento interior estão pedindo expansão.
Ontem é o meu tempo, com as suas palavras, hoje é o meu tempo, com as suas palavras, e amanhã será o meu tempo também, pontificou Violeta. Cheia de si, achou-se de repente, ali no seu quarto, no começo de uma nova estrada. A estrada que por ventura nos leva de volta ao começo de alguma coisa maior em nós mesmos.
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