Durante toda à tarde do dia 15 de setembro de 1979, grupos e mais grupos de estudantes, trabalhadores, comerciantes, agricultores, desocupados, desempregados, políticos, homens e mulheres foram ocupando os espaços do Largo de Santo Amaro, na zona norte da capital pernambucana Recife, a Veneza Brasileira, sempre vermelha e à esquerda.
Muitos estavam com a roupa do trabalho ou fardamento, pois vinham diretamente da empresa ou da escola, mas a grande maioria estava portando bandeirolas e vestindo camisas que estampavam o motivo da manifestação: “ARRAESTAÍ”. Outros vestiam camisas brancas com a frase do poema de Carlos Drummond de Andrade: “O homem marcado pelas duas mãos e o sentimento do mundo” que Arraes utilizou em campanha. Anos depois, em 1998, utilizou outro slogan “Abaixo de Deus, só Arraes na defesa desse povo sem sonho”.
Miguel Arraes de Alencar. Ao longo da semana anterior, os muros, os postes, os vidros dos carros, a carroceria dos ônibus, as paredes das casas ficaram com os panfletos colados marcando o dia, local e hora do retorno do seu mito maior com a chamada: “Arraestaí”. Como naqueles tempos, Recife e Pernambuco estavam fervilhando de expectativa, tensão e ansiedade.
Em um lado da praça estavam estacionados os caminhões que compunham o grande palanque improvisado, onde mais tarde, à noite, inúmeros políticos entre eles, Jarbas Vasconcelos, Marcos Freire, Fernando Lyra, Teotônio Vilela (pai), Tancredo Neves, Ulisses Guimarães e outros líderes discursaram, saudando o retorno do exílio de Miguel Arraes, sob o manto da Lei da Anistia, após a suspensão da pena de 23 anos de prisão por crime de subversão, não cumprida, em razão de ter conseguido asilo político na Argélia. Saudavam o ex-Secretário da Fazenda, ex-Deputado Estadual, ex-Deputado Federal e ex-Governador do Estado de Pernambuco (o único Governador do Estado a ser eleito para três mandatos).
Aquela noite de setembro chegou quente. Guardo, ainda, na memória todos os momentos daquela noite, desde a minha saída da Universidade Católica, andando entre a multidão no Largo de Santo Amaro com o grupo de colegas do curso de Química Industrial (Leozildo, Verônica, Marcos, Vanuzia, Ronaldo) e chegando ao apartamento da Rua Fernandes Vieira no início da madrugada. Era a noite que Recife ia receber de volta aquele que o povo carinhosamente chamava de “Pai Arraia”.
As conversas, o zunzum, as batucadas e a zoada da praça foram pouco a pouco cessando, sendo substituídas pelo murmúrio crescente, cada vez mais crescente, até se transformar numa única palavra, ritmada, de toda a multidão: “Arraestaí”, “Arraestaí”, “Arraestaí”. Foi a maior manifestação política de que eu participei em minha vida. Totalmente arrepiado.
Em um lado do Largo: o palanque improvisado com os políticos e lideranças. Em todo o Largo de Santo Amaro: o povo. No outro lado: Arraes vindo nos braços do povo. Literalmente carregado nos braços pelos anônimos que o idolatravam, ouvindo 60.000 mil pessoas numa só voz e um só refrão: “Arraestaí”.
Ao ler a notícia do seu enterro, estava escrito que no momento da saída do corpo do Palácio dos Campos das Princesas, onde foi velado, “a multidão começou a entoar o grito que marcou a cerimônia fúnebre: Arraes guerreiro do povo brasileiro”. Discordei da sua forma de gestão no seu último governo. Mas as imagens da sua liderança, carisma e da voz rouca do povo naquela noite setembrina voltaram-me à mente, deixando uma certeza: morreu um cidadão brasileiro apaixonado pelo seu povo.
A sua morte encerra um ciclo de líderes que dominaram o cenário político do Brasil, que vai desde Getúlio, Juscelino, Jango, Jânio, Lacerda, Tancredo, Ulisses, Brizola e termina com a sua partida definitiva.
Maceió, 15 de outubro de 2005.
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